segunda-feira, 1 de março de 2010

Curso de Moral em 2 semestres

Arquidiocese do Rio de Janeiro

Escola Diaconal Santo Efrém

EDSE – Teologia Moral

Curso em 2 semestres

Esta Apostila destina-se aos dois semestres de aulas de Teologia Moral do Curso da EDSE. Durante este ano de 2010 ela estará sempre em permanente atualização, devendo o aluno substituir cada cópia antiga, em seu computador, pela mais recente, segundo as datas da última modificação. O número total de páginas também aumentará. Ao final do Curso teremos uma Apostila completa de Teologia Moral, revista e corrigida. Bom proveito!

Nota Preliminar: Homem, Mulher ou Pessoa?

A língua portuguesa tem poucos termos neutros. Por exemplo, a expressão 'os homens' pode tanto designar todas as pessoas humanas, compreendidas as mulheres, ou apenas as pessoas de sexo masculino, ou até excluir as crianças, tal a sua imprecisão. Devido a isto, na tradução brasileira do Missal Romano, foi colocada uma cansativa e interminável repetição de palavras como "santos e santas", "irmãos e irmãs", "filhos e filhas", "homens e mulheres" sobrecarregando com muito mal gosto e deturpando até o sentido das orações mais sublimes. As Pessoas Divinas são masculinas ou femininas? Não são definitivamente nem uma coisa nem outra. A Segunda Pessoa encarnou-se e assumiu a natureza humana na forma masculina, mas fazendo-se membro do povo de Israel, o que é, nas imagens proféticas, ser esposa de Javé. Ele é, antes de tudo, uma Pessoa, ou seja, um ente de identidade definida pelas suas relações livres com outros entes semelhantes. Deus criou tudo o que existe e apenas duas categorias de pessoas, isto é, entes capazes de relação livre com as Pessoas Divinas e entre si. Os anjos, sem corpo e sem sexo (determinação masculina ou feminina) e os humanos, corporais e sexuados. Antes de ser masculino ou feminino cada humano é, criado à imagem das Pessoas Divinas, uma pessoa. Neste texto evitaremos, na medida do possível, o termo impreciso 'homem' e as desagradáveis repetições 'homens e mulheres' e usaremos o termo pessoa, que obviamente se refere às pessoas humanas. Desejamos que esse uso acostume o leitor a pensar a pessoa humana sempre como imagem divina e vocacionada à comunhão de vida com as Pessoas Divinas.

Primeira Parte: Elementos de Teologia Moral Fundamental

1. A vida do homem sobre a Terra: a busca da vida. O que o homem quer e a realidade do seu ser.

Moral refere-se ao agir livre e consciente da pessoa humana. A pessoa humana, ao agir livre e conscientemente sempre age em vista de um bem. Não sempre de um bem objetivo segundo uma lei moral, mas de um bem para a pessoa. Quem faz um pecado, está buscando um bem, algo que ele considera que é um bem pelo qual valeria a pena agir contra a lei moral.

Que bem é esse que norteia o agir da pessoa, que está como meta de todo o agir das pessoas? Podemos usar vários nomes para designá-lo. Felicidade, por exemplo. Todos agem e não podem deixar de agir livremente senão em busca da própria felicidade. Segurança é outro nome. A pessoa age livre e conscientemente em busca sempre de sua segurança, mesmo quando se arrisca. O não se arriscar lhe parece mais insuportável e menos recompensador para a sua segurança como um todo – a afirmação de sua coragem e capacidade de buscar objetivos – do que o risco que corre. Pensemos num mergulhador ou num piloto de testes. Mas podemos adotar o nome mais abrangente de VIDA. Toda pessoa humana age livre e conscientemente pois deseja Vida sempre mais plena e o seu agir lhe parece proporcionar isto.

“1No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. 2Ele estava no princípio junto de Deus. 3Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. 4Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,1-4).

Aí está afirmado que “a vida era a luz dos homens”. É exatamente o que também nós queremos afirmar ao dizer que a meta de todo o agir livre e consciente da pessoa humana é a vida. Tal vida está no Verbo Divino. O drama humano é que a vida lhe é oferecida pela doação que Deus faz do seu Verbo, mas os homens o rejeitam e querem buscar a vida lá onde ela não está: no poder, no dinheiro, no prazer carnal, nas vitórias sobre as criaturas.

O agir humano livre só dará realmente a felicidade, a segurança e a vida que o homem busca se esse agir buscar a vida lá onde ela realmente se encontra. Nem tudo que o homem quer é realmente bom para ele, mesmo que ele o considere assim. Por isso, para agir realmente bem, o homem precisa conhecer a verdade sobre o seu ser.

Nenhuma pessoa humana deu o ser a si mesma. A experiência humana básica é a experiência de existir e da consciência de si, que só ocorre já pelos dois a três anos de idade, após muitas experiências reais da pessoa. Somos criaturas, nosso ser foi pensado e criado por um Outro e não por nós mesmos e portanto nem sempre o que quereríamos que fôssemos corresponde ao que realmente somos. Nós “nos recebemos” de graça. Mas nem sempre conhecemos o que somos, nem sempre conhecemos nossa natureza. Agir por um querer, mas ignorantes da nossa verdadeira natureza, poderá fazer com que o bem que buscamos pelo nosso agir seja na realidade um mal para nós. Mas como poderemos conhecer a nossa natureza?

2. A razão como caminho para o homem superar suas contradições. A Ética Filosófica.

O instrumento que a pessoa humana tem para conhecer quem ela é e qual a sua natureza própria é a razão. Junto com a liberdade de opção no seu agir, com a vontade livre, o ser humano é dotado de razão para conhecer. Estas duas características, intelecção e vontade livre interagem nele e o fazem diferente dos animais da terra. Conhece a realidade, a intelige, porque quer conhecê-la e quer isto porque conhece que assim é melhor para ter vida. Os pensadores cristãos procuraram saber qual das duas características tem a precedência, gerando duas correntes de pensamento: uma corrente intelectualista, mais na linha de São Tomás de Aquino e os dominicanos e uma corrente voluntarista, mais na linha de Santo Agostinho e os franciscanos. Parece um problema insolúvel. O ser humano pode agir mal por ignorância da verdade e por malícia. Se não conhece a verdade, sua vontade livre não é suficientemente iluminada e age mal por falta de conhecimento. Então cairíamos na linha intelectualista: o conhecimento é que ilumina a liberdade; primeiro é preciso conhecer. Os voluntaristas responderão: mas a pessoa, para conhecer, precisa querer conhecer, o que coloca a vontade na precedência; e, mesmo conhecendo, precisa querer agir segundo esse conhecimento, e não ao contrário e o agir por malícia é caracterizado quando a pessoa sabe que determinado comportamento é mau e o assume assim mesmo. Os intelectualistas voltarão a responder que o conhecimento, que permitiu o não querer conhecer mais ou permitiu a malícia era um conhecimento insuficiente e que se uma pessoa conhecer muito a verdade não poderá deixar de agir bem, se conhecer Deus face a face não poderá deixar de amá-Lo. É o estado bem-aventurado das almas que, sem perder a liberdade não podem mais pecar. Mas transitando nesse terreno deixaremos a esfera da experiência moral comum, na qual conhecimento e vontade livre interagem sempre.

Percebendo que suas opções livres nem sempre levavam a um verdadeiro bem, os pensadores de várias culturas, notadamente a grega, inauguraram no pensar racional o tratado da ética, para, pela razão, descobrir o melhor agir para o homem.

Surgiram daí diversas impostações conforme o critério usado para pensar o agir livre. Se o critério fundamental forem as conseqüências últimas do agir em vista de alcançar um estado final de máxima felicidade possível, a “vida boa” – caminho seguido por Aristóteles (384-322 a.C.), chamado eudemonismo – temos uma ética teleológica (de telos=fim). Se o critério fundamental for o senso natural da justiça ou não de cada ato em si, independente das suas conseqüências ou efeitos – caminho seguido por Emanuel Kant (1724-1804) – teremos a assim chamada ética deontológica, uma ética do dever.

Os elementos de que a razão se serve para determinar o melhor agir livre pertencem, na ética filosófica, à experiência sensível, individual e social, e à experiência psicológica. São princípios como este: “o agir de uma pessoa só pode ser bom se todas as outras pessoas puderem agir do mesmo modo sem provocarem males”, ou este: “a liberdade de um termina quando começa a liberdade do outro”. Ou ainda “Não faça ao próximo o que não queres que façam a ti”. De qualquer forma, a Ética Filosófica tem vários modelos, mas nenhum deles suficiente para empenhar a consciência com toda a certeza, pois partem da própria razão da pessoa, restando uma dúvida sobre se os critérios adotados são absolutos ou relativos. Diante de situações que a questionam fortemente a pessoa não tem, ao contar somente com a busca filosófica, uma fonte de convicção superior a esses questionamentos, que, em certos casos podem colocar em questão sua própria vida ou valores bem mais prezados do que a própria filosofia. A frase dos sofistas gregos “o homem é a medida de todas as coisas” deixa tudo num nível relativo, pois aí nem mesmo o que se entende por “homem” é indiscutível. É preciso uma razão maior do que a pessoa, um valor absoluto, que ela não possa questionar em nenhuma situação, que se apresente à sua consciência. Essa necessidade de Absoluto abre evidentemente para a necessidade de Deus.

3. A importância do agir moral

“A Igreja sabe que a instância moral atinge em profundidade cada homem, compromete a todos, inclusive aqueles que não conhecem Cristo e o Seu Evangelho, ou nem mesmo a Deus. Ela sabe que precisamente sobre o caminho da vida moral se abre para todos a via da salvação, como claramente o recordou o Concílio Vaticano II ao escrever: «Aqueles que ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna». E acrescenta: «Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida»” (João Paulo II, Carta Encíclica Veritatis Splendor, 3).

Há uma relação intrínseca entre o ser do homem e o seu agir. O velho adágio «agere sequitur esse», o agir segue o ser, significa que o ser humano age bem se é bom e age mal se é mau. Mas como ser dinâmico o ser humano inverte o adágio, que pode significar também que ao agir bem o homem se torna bom e ao agir mal o homem se torna mau. Se “sobre o caminho da vida moral se abre para todos a via da salvação”, é porque pelo seu agir o homem colabora com Deus no desenvolvimento de seu próprio ser e torna-se imagem de Jesus Cristo (cf. Ef 2,10). Esta é a importância do agir moral segundo a Revelação cristã. Cada sistema ético, baseado em uma concepção filosófica diversa fundamenta diferentemente a importância do agir moral. Por exemplo, a moral kantiana, ao dar o primado ao dever, fundamenta na obrigação a importância do agir moral. O agir moral afirma, na moral kantiana, a coerência da pessoa com o seu dever, conhecido pela consciência e configura assim uma moral de obrigação, chamada também “deontológica”. A moral clássica, aristotélica, fundamentava o agir moral em buscar a “vida boa”, ou seja, a vida mais racionalmente equilibrada, em que a busca do prazer evitava os efeitos desastrosos de muitas coisas prazerosas, como atitudes egoístas etc. Esta fundamentação leva a uma moral de virtudes. Como busca um fim, uma meta, é chamada moral “teleológica”.

Diante da atual crise ética, muitos filósofos morais, entre os quais se destaca o escocês Alaisder McIntyre, propõem a volta a uma moral de tipo aristotélico e a proposição de uma moral de virtudes em substituição à moral de obrigações ou à moral liberal. A moral de virtudes foi muito acolhida também na teologia moral católica tradicional. Já São Paulo, em várias de sua epístolas tem elencos de virtudes e vícios: 1Cor 5,11; 6,9; Ef 5,5; Fl 4,8; 1Tm 3,8. Também as cartas católicas: 2Pd 1,5-8: «5Por estes motivos, esforçai-vos quanto possível por unir à vossa fé a virtude, à virtude a ciência, 6à ciência a temperança, à temperança a paciência, à paciência a piedade, 7à piedade o amor fraterno, e ao amor fraterno a caridade. 8Se estas virtudes se acharem em vós abundantemente, elas não vos deixarão inativos nem infrutuosos no conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo».

Nossa posição, no entanto é que a moral católica supera a moral de virtudes e a volta a uma moral mais evangélica, mais fundamentada na Revelação, dá um fundamento mais profundo do que as virtudes para a moral. As listas de virtudes e de vícios no NT podem conter influências da cultura grega, mas podem também ser interpretadas como simples descrições do comportamento externo aprovado ou reprovado sem fundamentar necessariamente a moral apostólica na aquisição direta das virtudes. Queremos mostrar como a moral cristã é um agir segundo uma realidade sobrenatural que nos é revelada – o Mistério da Encarnação e da Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo – e na qual estamos inseridos e suplanta tanto a moral grega da aquisição das virtudes como a moral veterotestamentária da obediência aos mandamentos, embora no resultado final, o cristão tanto apresenta as virtudes como obedece aos mandamentos. Não deixaremos, entretanto, de fornecer os dados tradicionais, que constam até no recente Catecismo, relativo às virtudes e aos mandamentos.

4. A Revelação do Mistério como auxílio para a razão. A Sabedoria. As diversas formas de sabedoria.

O conhecimento do Absoluto não pode vir simplesmente pela iluminação de um homem que afirme ter sido instruído por Deus, pois assim permaneceria a fonte desse conhecimento uma mente humana que excogitou – mesmo que ela afirme que venha de alguma visão ou divindade – um pensamento ético. Esse é o caso do budismo, por exemplo, ou do islamismo, com seus criadores, Buda e Maomé. A revelação do absoluto nesses casos vem por uma pessoa só. Quais são as razões de credibilidade de que essas revelações venham de um Outro mesmo, de Deus? Essas afirmações podem considerar-se como filosofias que esses líderes propuseram, mesmo se com aparências de religião, como no caso do islamismo, por afirmar um deus. A revelação judaico-cristã, com suas profecias que revelam acontecimentos antes que aconteçam e com sua continuidade por muitas gerações, fala do Deus Verdadeiro que se revelou aos homens em sua história, num longo processo pedagógico, desde seu estado de religião natural, o paganismo, até alcançar o Evangelho, sabedoria de Deus que questiona toda a sabedoria humana, anterior e posterior. A relação com o Absoluto que dá o fundamento ao conhecimento ético maior do que qualquer outro valor que a pessoa possa ter em sua alma, se dá pela fé na Revelação que se apresenta com todas as suas “razões de credibilidade” intrínsecas e extrínsecas. Razões de credibilidade extrínsecas são as profecias e os testemunhos de fenômenos sobrenaturais. Razões de credibilidade intrínsecas surgem da própria experiência de vida em que o relacionamento pessoal com Deus transforma a pessoa, como é patente, nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos, a transformação ocorrida com os Doze, com São Paulo, e outros cristãos, como Santo Estêvão. A Sabedoria é a posse intelectual e volitiva por parte da pessoa do agir segundo a Verdade. A Verdade é o conjunto do que é real, e só Deus conhece todas as coisas como elas realmente são. A pessoa humana faz imagens, que correspondem mais ou menos à realidade. “O homem julga pelas aparências, Deus julga segundo a Verdade” (cf. Is 11,3; Jo 7,24; 8,15-16). No conjunto de tudo o que constitui a Verdade, é básico para entender a Revelação considerar que só Deus criou tudo o que existe e criou a partir do nada. Só Ele é o Mantenedor da existência de tudo que existe e da vida das criaturas vivas, particularmente das pessoas humanas. A criatura humana quer depender de si mesma, mas depende mesmo é de Deus. Esse desencontro entre esse impulso humano e a verdade está no cerne de todo o drama da vida humana. A sabedoria consiste em conhecer e viver segundo a Verdade, mas o impulso humano leva a pessoa a viver segundo uma aparência, como se estivesse em seu poder a manutenção da própria vida.

São Luís Maria de Montfort (1673-1716), em seu livro “O Amor da Sabedoria Eterna” tem um capítulo intitulado “A escolha da verdadeira sabedoria”. Aí distingue três formas de Sabedoria: “Deus tem a sua Sabedoria; é essa a única e a verdadeira que merece ser amada e procurada como um grande tesouro. O mundo corrupto, porém, tem também a sua sabedoria, mas esta dever-se-á condenar e detestar porque iníqua e perniciosa. Também os filósofos têm a sua sabedoria, que é igualmente de desprezar, já que é inútil e, muitas vezes, perigosa para a salvação” (n. 74). A sabedoria mundana constitui a habilidade política e de comunicação para conseguir o sucesso neste mundo e o poder. “E o proprietário admirou a astúcia do administrador, porque os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz no trato com seus semelhantes” (Lc 16,8). Este dito de Jesus ilustra a sabedoria mundana. A sabedoria dos filósofos é a ciência humana e sua técnica. São Luís diz que é inútil não porque não sirva para nada, mas porque em si mesma não aproxima a pessoa de Deus. E é perigosa porque enche o homem de orgulho e prepotência, afastando-se da verdade.

“Naquele mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te porque assim foi do teu agrado” (Lc 10,21).

“Estas coisas” é a sabedoria divina, inacessível aos “sábios e inteligentes” por causa do impulso de colocar no conhecimento filosófico, científico e técnico, a esperança de vida. A Teologia Moral que estudaremos quer nos levar ao conhecimento da lógica divina de “essas coisas” a que Jesus se refere. Jesus é chamado por São João de “Logos”. “No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. (...) Tudo foi feito por Ele e sem Ele nada foi feito” (Jo1,1.3). Geralmente o termo grego Logos é traduzido por Verbo ou Palavra, com grande empobrecimento de sentido. Logos tem uns dezenove sentidos em grego, mas significa principalmente a relação racional que existe nas coisas. Deus, ao criar a pessoa humana à Sua imagem, dotou-a de razão, para, por meio desta faculdade, perceber as relações racionais entre os seres e ser capaz de “dominar a terra” (cf. Gn 1,28). Tudo foi feito com o Logos, significa que todas as coisas tem uma racionalidade, uma “lógica” (lógica vem de logos) acessível à razão humana em certo grau. Inclusive os dados revelados por Deus tem uma lógica. A concepção de que as coisas da fé não tem nada a ver com a razão leva à irracionalidade e à aceitação das maiores superstições, fazendo da religião uma simples mágica, segundo a sabedoria mundana – o paganismo – que nada tem a ver a com a sabedoria divina. Nosso curso quer explicitar a lógica da revelação para se compreender as razões do modo sábio – cristão – de viver.

5. Fé e Razão

É bom entender que não é a fé que é aprovada pela razão, como se a razão fosse a condicionante da fé. Crê-se primeiro, e, uma vez aceita a Revelação, a razão reflete sobre ela e faz perceber melhor sua luz. Assim o conhecimento do real é completado e iluminado pela fé. O conhecimento da realidade é acessível ao homem, em primeiro lugar pelos sentidos. Esses oferecem informações à inteligência humana que reflete sobre eles, faz abstrações, corrige por essas abstrações muitas informações dos sentidos que eram meras aparências e configura uma imagem da realidade. Mas uma imensa gama de informações que o espírito humano deseja não lhe é fornecida pela sua inteligência estimulada pelos sentidos. Saberes como as razões que levaram a existir o homem, sua alma, seu destino após a morte, a origem do sentimento de bem e mal e da consciência humana escapam ao campo de observação dos sentidos e de abstração do espírito humano. Este campo de conhecimento é explorado por especulações filosóficas, a partir da experiência humana, mas estas propostas filosóficas não fornecem o grau de certeza necessário para empenhar a vida daqueles que as acolhem. A Revelação judaico-cristã é a comunicação necessária e certa de Deus acerca dessas realidades fundamentais ao sentido da vida humana racional. O acolhimento desses dados revelados como certezas capazes de empenhar a vida inteira da pessoa humana e das comunidades se dá pela fé. Assim como a razão humana elabora os dados fornecidos a partir dos sentidos e sistematiza o conhecimento do mundo sensível, elabora também os dados fornecidos pela Revelação e constitui assim a sã teologia. Assim a ciência, elaboração racional dos dados sobre a realidade acessíveis aos sentidos, e a teologia, elaboração dos dados fornecidos pela Revelação, devem completar-se e harmonizar-se pois provêm de uma só fonte que é Deus. A verdadeira fé não se opõe à razão humana, não é irracional, mas recebe dados que não seriam acessíveis só pelos instrumentos da razão movida pelos sentidos humanos. Por isso se diz que a fé está acima e não contra a razão. É importante frisar que a teologia se dá porque a razão se aplica também aos dados recebidos da Revelação pela fé. A razão, respeitando os dados originários da Revelação e não os submetendo às limitações da experiência sensível, descobre na Revelação elementos que ajudam a compreender melhor também a natureza sensível. Por exemplo, a Revelação de Deus Uno e Trino nos ajuda a compreender melhor a antropologia, a natureza social e comunitária do ser humano. A determinação dos limites entre o que é dado revelado e o que pertence à experiência sensível nem sempre foi clara e pacífica. Exemplo disso é a antiga interpretação bíblica que, desconhecendo os estilos literários das Escrituras e a antropologia cultural, tendia a ver na Bíblia a garantia de certeza de dados acessíveis aos sentidos e depois desmentidos pela ciência como o sistema astronômico geocêntrico. Com a crítica literária e histórica das Escrituras o discernimento do que realmente pertence à Revelação é bem mais nítido, se bem que está sempre presente a tentação de querer submeter tudo à experiência sensível e negar muitos dados revelados.

Por outro lado, se dizemos que acolhemos os dados fornecidos pela Revelação por meio da fé, devemos considerar que também os dados fornecidos pelos sentidos exigem a fé. A ciência positiva – a física, a química, a biologia e as ciências humanas – a partir de observações sensitivas da realidade elaboram teorias que procuram explicar os fenômenos observados. A aceitação de que essas teorias realmente correspondam aos fenômenos é uma questão de fé. Exemplos disso são: a negação atual da verdade científica de que a vida humana se inicia na fecundação do óvulo feminino pelo esperma masculino; a demora de mais de cento e cinqüenta anos para a aceitação da descoberta científica de que o Sol é o centro do sistema solar e a Terra gira ao redor dele; a dificuldade de se aceitar que a Terra era redonda; a reforma que a teoria de Einstein faz das concepções físicas de Newton, tidas até então como definitivas. Isto levou o pensador católico Gilbert Keith Chesterton (1874-1936) a afirmar:

«É sempre inútil falar da alternativa entre a razão e a fé. A razão já é de per si uma questão de fé. É um ato de fé afirmar que os nossos pensamentos têm qualquer relação com a realidade. Quem for meramente cético acabará, mais cedo ou mais tarde, perguntando a si mesmo: “Por que é que alguma coisa está certa, quer seja uma simples observação ou uma dedução? Por que é que a boa lógica não é tão falaz como a má lógica, se ambas são meros movimentos do cérebro de um macaco desnorteado?” O novo cético diz: “Eu tenho o direito de pensar para mim”. Mas o velho cético, o cético completo, dirá: “Eu não tenho o direito de pensar para mim. Não tenho direito absolutamente algum de pensar» (Ortodoxia, LTr, São Paulo 2001, p. 52).

Todo o pensar é um ato de fé. A idéia de que as verdades da sabedoria cristã são opiniões discutíveis e as afirmações científicas são verdades irrefutáveis é um mito. A experiência da vida santa confirma a verdade da sabedoria cristã. Jesus afirma isso dizendo: “A sabedoria foi justificada por todos os seus filhos” (Lc 7,35; Mt 11,19).

6. Fé e Amor

A Teologia busca a compreensão mais profunda da Revelação. A Revelação é uma comunicação pessoal das Pessoas Divinas às pessoas humanas criadas à imagem delas. É uma comunicação interpessoal. Seguramente é uma Revelação que dá uma compreensão maior da pessoa humana e do mundo em que ela vive, mas é sobretudo uma Revelação para o conhecimento do próprio Deus, que tudo criou do nada e na Criação Se expressou. A fé nessa Revelação, obra do Espírito Unificador, é que fará brotar o amor unificante na pessoa humana, conduzindo-a para seu destino salvífico que é a participação na vida de Deus, pela comunhão na Pessoa do Filho, ou no Corpo do Filho. Conhecer, possuir e entrar em comunhão de amor são quase sinônimos, na linguagem bíblica. A Revelação que Deus faz de Si tem como meta que a pessoa humana O conheça. Da parte de Deus não é uma comunicação de verdades abstratas, mas uma auto-doação. Da parte do homem também não é uma aquisição de idéias teóricas, mas um acolhimento da auto-doação das pessoas divinas (o Pai Se dá pelo Filho, para, acolhido pela pessoa humana, estabelecer a unidade de vida com ela pelo Espírito Santo). O relacionamento que Deus estabelece com as pessoas humanas não é nunca uma transmissão só de conhecimentos, mas de vida. A pessoa humana tem a tendência a valorizar o conhecimento porque este lhe parece dar poder, que ela quer no seu estado de pecado. Quereria ter poder para dominar a natureza (este é o motivo da corrida tecnológica dos últimos séculos, a busca de mais poder ou riquezas, o que é o mesmo), para dominar politicamente outras pessoas e povos e colocar a seu serviço o próprio Deus. Seria importante ler, nesta perspectiva Lc 4,1-13. A ação divina não é nunca, como a ação pecaminosa, uma busca de mais poder ou de conhecimentos de informação. É sempre um relacionamento pessoal de amor, de auto-doação em busca da comunhão pessoal de vida. Estudar Teologia para exibir conhecimentos, citar teólogos, alcançar prestígio intelectual, é um contra-senso. É a vaidade intelectual que leva, em muitas faculdades católicas de Teologia, à desobediência ao Magistério, à heresia e à perda da fé e da espiritualidade católicas.

7. A Teologia. A Teologia Moral.

A pessoa recebe a Revelação Divina, pela pregação da Igreja, e crê. O mesmo Deus que Se revela pela História salvífica – Israel, Jesus Cristo, Igreja – é o Criador que deu inteligência e razão ao homem, criando-o à Sua Imagem. A razão humana crê e procura as razões daquilo e que é revelado. Continua válida a sintética definição de Santo Anselmo d’Aosta: «fides quærens intellectum». A fé provoca o intelecto humano a pensar. Nasce daí a Teologia. Note-se bem que não é o raciocínio que conduz à fé, como se comprovasse o que é revelado, mas primeiro se crê, e já tendo convicção daquilo que é pregado pela Igreja, usa-se a razão e compreende-se com maior profundidade e beleza o que já era tido como verdade indubitável. A pessoa humana, em nossa época de racionalismo cientificista acharia mais razoável a inversão da ordem: primeiro examino com a razão; se a minha razão aprova, então eu daria a minha aprovação e creria. Isto, na verdade, seria crer mais na própria razão do que n’Aquele que Se revela. A pessoa moderna tem essa tendência porque a ciência empírica moderna é uma pesquisa sobre a verdade das coisas da natureza e não um relacionamento pessoal. Até quando estuda a pessoa humana, a ciência moderna a coisifica e, por isso é incapaz de abranger sua característica de pessoa irrepetível e única, e tende a desprezar sua natureza espiritual. A Revelação, porém, é uma comunicação interpessoal, relação Pessoa-pessoa e não pessoa-coisa. Esta relação só se dá numa experiência de confiança que deve preceder o exame crítico da outra pessoa, sob pena de nunca compreendê-la e nunca amá-la, nunca haver uma verdadeira comunicação pessoal. Como disse Antoine de Saint-Éxupery (1900-1944), em seu famoso "O Pequeno Príncipe", "só se vê bem com o coração" e "o essencial é invisível aos olhos" (à razão científica coisificante). Quando se trata de pessoa, ente semelhante às hipóstases divinas, não se pode compreender pela razão para depois, como conseqüência do exame racional, amá-la. A ordem inversa se impõe: ama-se como condição indispensável para compreendê-la e acolhendo-a unir-se a ela. A unidade das Pessoas é atributo divino e não se pode conceber a pessoa senão como destinada à unidade de vida, que é a concreção do amor.

É um perigo mortal para a Teologia e para o bem da pessoa humana, o domínio da razão científica entendida como única forma honesta de uso da razão. A pessoa é, nesse caso, reduzida a coisa. Por isso muitos teólogos, guiados por uma análise cientificista dos textos bíblicos tendem a reduzí-los e não aceitam mais doutrinas como a do pecado original e outras, como os milagres. Não aceitando, por exemplo, a doutrina do pecado original, acabam por não entender o significado da redenção realizada por Jesus Cristo (cf. CIC 388-389). Daí, vão negando todo o conteúdo da Revelação e substituindo-o por anseios do coração humano, segundo uma sabedoria da pessoa mortal, negando a sabedoria divina revelada em Jesus Cristo. Assim se manipula a própria Pessoa de Jesus Cristo para servir a objetivos humanos imanentes. É o que fazem a Teologia da Libertação, a Teologia da Prosperidade e toda falsa piedade exploratória de bênçãos para afastar sofrimentos, como é comum nas devoções de santos padroeiros "da garganta", "da cabeça", "dos endividados", "dos impossíveis" etc.

8. A Teologia Moral, a Ética Filosófica e a unidade da consciência humana

Aurelio Fernández, com toda uma tradição de ensino de teologia moral distingue a moral filosófica (ou ética filosófica) de moral teológica (ou ética teológica ou teologia moral). Escreve: “Com efeito, a «moral filosófica» deduz seus princípios éticos da razão e tende a que o homem, mediante uma conduta adequada, se melhore a si mesmo e consiga a felicidade natural. Ao contrário, a «moral teológica» deriva seus princípios da Revelação e seu fim persegue não só a perfeição e felicidade humanas neste mundo, mas a salvação ou a condenação (sic!) eterna. (…) Apesar desta distinção entre a ética como disciplina filosófica e a moral enquanto saber teológico, existe entre elas uma íntima relação. Com efeito, a teologia moral deduz da disciplina filosófica os conceitos fundamentais e inclusive seu método e até a linguagem. Por sua vez, a ética filosófica deve reconhecer seus próprios limites, e por isso deve estar sempre aberta às exigências éticas da Revelação. Este tema exige um estudo mais detalhado. (… por isso) propomos … três questões complementares. Primeira: os dados da história acerca da relação entre religião e moral. Segunda: o valor da moral derivada de crenças religiosas. Terceira: a teoria de um setor da cultura atual que pretende negar o valor das éticas de origem religiosa. Em concreto: trata-se de formular a síntese entre a crença religiosa e a praxe moral, dado que atualmente assistimos a um vazio de idéias, pois em curto espaço de tempo passou da identificação entre religião e moral à separação radical entre religião e moral a ponto de se negar que possa existir uma ética exclusivamente religiosa”?.

A nossa proposta difere um pouco da desse autor, que é tradicional na exposição da teologia moral católica contemporânea. Diz que a ética filosófica vem da razão e a moral teológica da Revelação. Como vimos, ambos pensamentos vem com o instrumento da razão. Como fazer teologia moral sem a razão? Acontece que um – o filosófico - usa como instrumento de aproximação da realidade só os sentidos - a abstração intelectual é trabalho da razão - e o outro – o teológico - usa também o instrumento da Revelação – sem deixar de, também, aplicar a abstração intelectual. Para nós, porém, o homem é único, como sua consciência é única. Então consideramos que a princípio não pode haver duas disciplinas éticas para a mesma consciência. Uma para fins sobrenaturais e outra para fins terrenos. Essa aceitação de duas éticas desconsidera o verdadeiro peso da Revelação, reduzindo-a a “crenças religiosas”, e privatizando-a, ao modo como o mundo moderno privatiza a religião, empurrando a ética religiosa para o campo da consciência individual e o ambiente social interno das comunidades religiosas, reivindicando a chamada moral laica, sem Deus, para a sociedade e o estado. Crer é ter a Revelação não como “crenças religiosas” mas como uma «revelação» de como as coisas são na verdade. E aceitar por isso o choque com aquele que não sabe de toda a realidade porque não recebeu a Revelação. Por isso é muito importante o caráter racional da Revelação, conforme expusemos acima. A Revelação cristã não é arbitrária como as “crenças religiosas” do paganismo e pode reivindicar essa autoridade. A consciência pagã tem dois compartimentos, um para as práticas religiosas e outro para as práticas morais, que na melhor das hipóteses acompanham a moral filosófica. A consciência cristã tem um só compartimento, uma visão integral da vida, da sociedade, incluindo sempre com muita naturalidade os dados sobrenaturais da Revelação e não pode ter duas leis morais, uma religiosa e outra secular ou laical. Existe, sim a ética de quem crê e a de quem não crê, que necessariamente entram em conflito e este conflito permeia o Evangelho todo.

“Se fôsseis do mundo, o mundo vos amaria como sendo seus. Como, porém, não sois do mundo, mas do mundo vos escolhi, por isso o mundo vos odeia” (Jo 15,19).

“Quem não está comigo, está contra mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Mt 12,30; Lc 11,23).

Por isso o catolicismo, ao anunciar a Revelação, também propõe para que as leis civis sejam de acordo com a Revelação, mesmo sabendo que nem todos na população civil acolhem a Revelação. Proclama, assim, a Revelação como verdade objetiva, os dados conhecidos através da Revelação como plenamente integrantes da realidade e não só uma consciência subjetiva, uma maneira pessoal de ver as coisas. Não se trata de uma imposição da religião católica a quem não quer crer, mas de uma proclamação, um anúncio de uma realidade desconhecida pelos outros. Imagine que uma determinada classe social procure fazer ver aos outros em um parlamento uma realidade que se percebe só no ambiente social em que vive essa classe. Ou um parlamentar que fale sobre as graves implicações de um determinado projeto de lei para a sua província, realidade que os deputados de outra província desconheciam. Ambos discursos pretendem aumentar o conhecimento acerca da realidade de modo a mudar o proceder, a lei civil para adequar-se a essa realidade conhecida por ele e desconhecida pelos outros. Do mesmo modo o católico anuncia uma realidade nova, conhecida em toda sua clareza pela Revelação, mas acessível por analogia à razão e ao bom senso, mesmo a quem ainda não crê diretamente na Revelação. E só a religião cristã católica pode reivindicar esse parentesco com a capacidade racional do homem. O protestantismo e outras vertentes religiosas, adequando-se mais tranqüilamente à moral laica, afirmam, sem o perceberem, o seu caráter simplesmente subjetivo, de interpretação pessoal da realidade e reduzem o caráter fermentador da Revelação. Renuncia a ser sal e luz. Mesmo que o número de protestantes seja muito maior que o de católicos em determinada população, se esses católicos forem assim autenticamente católicos – digo isso porque a filosofia subjetiva penetrou também, infelizmente, no âmbito católico – eles serão sempre muito mais “sal da terra e luz do mundo”, agentes de transformação da realidade, pela carga mais objetiva de sua fé. Por isso também o catolicismo será sempre mais perseguido, estará sempre em maior contraste com o mundo do que essas outras vertentes.

Consideramos que quanto mais é verdade o que disse Aurelio Fernández na frase “a teologia moral deduz da disciplina filosófica os conceitos fundamentais e inclusive seu método e até a linguagem”, mais se reduziu a compreensão da moral católica no que ela tem de original e de surpreendente em confronto com o pensamento humano. Se alguns conceitos fundamentais se tomaram da moral filosófica, essa identificação, às vezes serviu até para confundir a compreensão da originalidade da Revelação e deturpar o sentido dos termos paralelos aplicados à Revelação. Por exemplo, o que a moral filosófica entendia por “justiça” foi aplicado com o mesmo sentido à teologia moral e distorceu a compreensão da moral cristã porque o conceito de justiça na Revelação é bastante diferente do conceito de justiça na moral filosófica. O mesmo pode-se dizer do conceito de liberdade. A presença de Deus faz uma enorme diferença e revoluciona esses conceitos. Quando não revoluciona tanto é porque a Presença de Deus, que nos foi revelada não está sendo suficientemente levada em conta. Fernández, com grande tradição de teologia moral, influenciada pelo método escolástico e depois pelo método científico, ambos racionalistas – note-se que não somos contra a razão, muito pelo contrário, mas também somos a favor da mística e da contemplação, que estes métodos desprezam - coloca a moral revelada usando conceitos, métodos e linguagem da moral filosófica e depois diz que a moral filosófica deve estar aberta às exigências éticas da Revelação. Em razão de que a moral filosófica deveria estar aberta a essas exigências? Se as admite porque não se torna logo uma moral revelada? Se a Revelação traz uma real novidade, porque atenuar essa novidade com o atrelamento da moral revelada a conceitos métodos e linguagens da moral filosófica? Porque não criar novos conceitos, ou ao menos reconhecer a diferença sob os mesmos nomes? Porque não criar novos métodos e linguagens mais adequadas à Revelação? Seriam os conceitos, métodos e linguagens da «moral filosófica» exigências da razão mesma ou muito mais dos métodos racionalistas denunciados pouco acima?

O que a teologia moral tradicional coloca como duas ciências paralelas na mesma consciência, levando em conta ou não a verdade revelada, nós colocamos, por coerência, em duas consciências diferentes, a do que crê objetivamente na Revelação e a do que efetivamente não crê. E aceitamos tranqüilamente o conflito, que o Evangelho prevê, entre o que recebeu a Revelação e o que não a recebeu.

O que aqui afirmamos, não entra em conflito com o que afirmamos acima sobre “dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus”. De fato, a ética filosófica, inspirando o direito, molda a justiça de César, e César pode exigir que cada um respeite o direito do outro, mas não que cada um perdoe a falta do outro, o que é necessário à sua salvação eterna, embora não se possa exigir isso para a vida social. Nesse caso o cristão não pode exigir que todos os homens ajam de acordo com a Presença revelada de Deus, e deve-se fazer justiça, segundo os conceitos da Ética puramente filosófica. Mas quando a autoridade civil usurpa os direitos de Deus, vale o que dizemos neste parágrafo e o cristão católico “revela” que o desígnio de Deus deve ser respeitado a nível civil. É quando a autoridade civil não reconhece a personalidade humana da pessoa ainda embrionária, autorizando o aborto voluntário – a hipócrita “interrupção da gravidez” –, ou quer reconhecer legitimidade à pretensão de duas pessoas de mesmo sexo de constituírem um casal. O católico denuncia que nesses casos estão dando a César o que é de Deus. Nesses casos evidencia-se a unidade de consciência do católico, e como a Revelação divina não pode ser privatizada. Evidencia-se também a omissão dos que pretendendo ser cristãos, não combatem pelo reinado de Deus na sociedade, privatizando e subjetivando a fé e negando, assim um serviço de amor à humanidade, mostrando-se amigos da morte e cúmplices de futuras violências. Se recebemos a Revelação divina, sabemos também que só na medida em que os homens viverem segundo ela haverá verdadeira paz no mundo.

18A linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que foram salvos, para nós, é uma força divina. 19Está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, e anularei a prudência dos prudentes (Is 29,14). 20Onde está o sábio? Onde o erudito? Onde o argumentador deste mundo? Acaso não declarou Deus por loucura a sabedoria deste mundo? 21Já que o mundo, com a sua sabedoria, não reconheceu a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura de sua mensagem. 22Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a sabedoria; 23mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; 24mas, para os eleitos - quer judeus quer gregos -, força de Deus e sabedoria de Deus. 25Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. 26Vede, irmãos, o vosso grupo de eleitos: não há entre vós muitos sábios, humanamente falando, nem muitos poderosos, nem muitos nobres. 27O que é estulto no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraco no mundo, Deus o escolheu para confundir os fortes; 28e o que é vil e desprezível no mundo, Deus o escolheu, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as que são. 29Assim, nenhuma criatura se vangloriará diante de Deus. 30É por sua graça que estais em Jesus Cristo, que, da parte de Deus, se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção, 31para que, como está escrito: quem se gloria, glorie-se no Senhor (cf. Jr 9,23)” (1Cor 1,18-31).

Passagens que testemunham uma oposição e um conflito entre a sabedoria de Deus, participada pelo cristão, com a Revelação, e a sabedoria do “mundo”, ou seja daquele que não acolhe a Revelação: 1Pd 2,7; Rm 9,32-33; Mt 10,22; 11,6; 13,21; 16,23; 24,9; Mc 4,17; 13,9.13; Lc 2,34; 5,5; 6,22; 7,23; 21,12.17; Jo 7,43; Jo 10,33; 12,42; Jo 15,21. Se a teologia moral é a contemplação do Mistério sob o ponto de vista da liberdade do cristão, este não poderá furtar-se a este conflito. A racionalidade da Lei Natural é vista tradicionalmente pelos teólogos morais que a aceitam como o ponto de ligação e acordo entre a moral cristã e a ética filosófica. A Lei Natural é acessível à razão só a partir dos dados naturais dos sentidos sem a Revelação – o que, para alguns é bastante difícil e obscuro, e outros decididamente rejeitam – e é, ao mesmo tempo confirmada pela Revelação. O Evangelho, especialmente o de São João, nos mostra que é o Filho a Verdade, a Luz. Jo 1,9: [O Verbo] “era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem”. Jo 14,6: “Jesus lhe respondeu: Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”. Assim, seja verdade que a Lei Natural é acessível às luzes da razão só iluminada por fontes naturais, o homem decaído tem paixões, tem razões que a razão desconhece para não aceitar a evidência da Lei Natural. É cego para a evidência da Verdade. Jo 9,39: “Jesus então disse: Vim a este mundo para fazer uma discriminação: os que não vêem vejam, e os que vêem se tornem cegos”. De pouco adianta que teoricamente seja admissível a razoabilidade da Lei Natural (cf. Rm 1,18-32; 2, 13-15) se na prática as paixões humanas a turvam ao conhecimento e mesmo conhecida pode não mover a vontade. A “reconciliação” teórica entre a teologia moral e a ética filosófica mostra-se redutora da Revelação, fazendo cair fora da Teologia Moral a fonte do agir moral do cristão, a Graça, que é Luz, Liberdade evangélica, Visão Sobrenatural da realidade, o que, exatamente caracteriza a Revelação. Cai-se no risco de reduzir a Moral Cristã a uma ética da lei, como no Antigo Testamento. Conviria, aqui estudar, o tema da Lei e da Fé na Epístola aos Romanos. Ficamos devendo e o apresentaremos mais tarde.

9. A Verdade e a Imposição da Verdade

A Revelação cristã é a comunicação necessária e certa de Deus acerca dessas realidades fundamentais ao sentido da vida humana racional. Implica isto em uma imposição? Quem afirma que Cristo é a Verdade não denuncia como falsas outras concepções religiosas? Isso não será desrespeitar grupos inteiros de pessoas nos seus valores sagrados? Este debate está bem aceso nos nossos dias. A publicação da Instrução “Dominus Iesus” pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, a 6 de agosto de 2000 foi mal acolhida até por muitos teólogos e círculos que se proclamam católicos. Essa Instrução afirma, com a Escritura, que não há salvação fora de Jesus Cristo e que a verdadeira Igreja de Jesus Cristo é a Igreja Católica Apostólica Romana. Todo o mal estar devido a essas afirmações aparentemente arrogantes da Igreja está ligado a uma fraca compreensão do que seja a Revelação como fonte de conhecimento e de salvação. Não se nega que em outras religiões haja “elementos da verdade” que, conduzidos pela luz da razão e pela inclinação para Deus que está inscrita no coração da pessoa humana – que foi criada por Deus e para encontrar na comunhão divina a sua plenitude –, as pessoas intuíram e se encontram nas filosofias e religiões humanas. Alguns desses elementos as aproximam da Revelação e outros são verdades de ordem natural, acessíveis à razão pelos sentidos e pela abstração racional e não elementos estritamente religiosos ou sobrenaturais. Nestas religiões e filosofias também se encontra muitos elementos de falsidade, diminuidores da liberdade e da dignidade divina que Deus dá à sua criatura humana ao criá-la – sabemo-lo pela Revelação – à Sua Imagem e semelhança. São, portanto, indignos do homem. Alguns desses elementos são, por exemplo, o determinismo, o fatalismo, a concepção da vida como um jogo de sorte e de azar, o endeusamento de seres animais e vegetais, o panteísmo etc. Uma lista completa desses elementos da mentira seria grande demais. Por isso também os “elementos de verdade” não equipara essas filosofias e religiões à Revelação, em que o próprio Verbo de Deus – que é Deus mesmo – se fez carne para nos revelar e redimir.

Os textos de Teologia Moral disponíveis atualmente e muitos outros textos teológicos e pastorais colocam o Evangelho e a moral dele decorrente como uma proposta e não uma imposição, até com uma certa “fobia” da idéia de imposição, que provoca no coração humano uma certa revolta e rejeição, além de impedir a aceitação interior da mensagem, arriscando uma aceitação externa – por causa da imposição – e uma rejeição interior – até mesmo por não se compreender profundamente o que foi proposto ou imposto. A experiência do Estado Católico que vem da Cristandade, pelo menos na América de colonização ibérica – América Latina – até certo ponto levou a essa aceitação exterior, subsistindo com os ritos externos católicos – sacramentos e sacramentais – concepções pagãs e deformações supersticiosas dos significados dos símbolos da fé cristã. A ênfase atual, portanto, está em se falar em “proposta” cristã. Esta linguagem corre, por outro lado o risco de colocar a aceitação da Revelação como algo facultativo, até dispensável, e a fé cristã como mais uma no meio de outras, despojando-a de seu caráter próprio de Revelação Divina a todos os homens. Isto anula o valor da Revelação, coloca os homens numa busca da verdade com suas próprias forças e razões, como se Deus Verdadeiro tivesse continuado mudo e oculto aos homens. Esta mentalidade se manifesta ainda na crise do anúncio missionário católico, substituído por inconcludentes diálogos inter-religiosos. Jesus Cristo muito afirmou mas não se encontra nos Evangelhos nenhum diálogo seu, se por diálogo se entende exposições de pontos-de-vista em busca de uma síntese. Ele se apresenta como a Verdade. A Igreja, seu Corpo, deve afirmar-se da mesma forma, com a mesma segurança, e como Ele, não para dominar como 'dona' da Verdade, mas para servir, como 'serva' da Verdade e ser excluída quando a Verdade é rechaçada.

A própria noção de Verdade se impõe a si própria. A realidade se impõe às pessoas. Estas podem não aceitá-la, mas sofrerão inevitavelmente as conseqüências dessa sua não-aceitação. As pessoas podem querer drogar-se e não querer aceitar que os vegetais entorpecentes danem a sua saúde psíquica e física. Mas esses efeitos acontecerão independente da vontade humana. A Revelação cristã é revelação da Verdade. Ela se impõe por si mesma, mesmo que as pessoas não percebam isso logo. Ao, por uma certa humildade mal compreendida, muitos cristãos não quererem “impôr” sua fé – isto é, anunciarem com “parresía” (cf. At 4,13.29.31; 9,28; Jo 18,20) o Evangelho como o faz a Instrução “Dominus Iesus” – e aceitarem colocá-la como mais uma religião ao lado de outras, ou a Igreja Católica Apostólica Romana como mais uma igreja ao lado de outras considerando-as igualmente legítimas – esses cristãos esquecem-se de que são cristãos pela graça de Deus – Catecismo Maior, Roma 1907, pergunta n.º 1 e 2 – e que pregam o que não lhes pertence. Esquecem que deveriam ser mensageiros do Deus Ùnico, que tem o poder e o direito de impôr-se a todas as pessoas porque foi Ele que as criou a todas e Ele é a própria Verdade. Tomam o que lhes foi confiado de graça como posse própria, reproduzem assim o pecado original (que será explicado mais adiante), e negam a Deus, paradoxalmente com a mais “humilde” das intenções.

A Revelação da Verdade, acolhida pelos cristãos, por sua própria força intrínseca, impõe a estes a missão de propôr o conteúdo da Revelação a todos os homens de todos os povos, culturas (ver abaixo “Moral e Cultura”), religiões, raça etc. Estes propõem o Evangelho como Verdade Revelada. Propõem porque o Evangelho deve ser livremente aceito, a partir de uma adesão interior de cada um à Verdade, que é acessível só por meio dele. Ao mesmo tempo, porém, a Verdade, que o Evangelho anuncia, se impõe, e quem não aceita sua proposta, vai, mais cedo ou mais tarde colocar-se decididamente contra ela. Quem não a rejeita mas a busca, vai, mais cedo ou mais tarde colocar-se a favor dela. É isto que está expresso nos textos bíblicos.

“12Porque a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração. 13Nenhuma criatura lhe é invisível. Tudo é nu e descoberto aos olhos daquele a quem havemos de prestar contas” (Hb 4,12-13; cf. Ap 1,16; 2,12).

“Quem não está comigo está contra mim; quem não recolhe comigo desperdiça” (Mt 12,30; Lc 11,23).

“Quem não está contra nós, está por nós” (Mc 9,40; cf. Lc 9,50; 1Jo 2,19).

18Filhinhos, esta é a última hora. Vós ouvistes dizer que o Anticristo vem. Eis que já há muitos anticristos, por isto conhecemos que é a última hora. 19Eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos. Se tivessem sido dos nossos, ficariam certamente conosco. Mas isto se dá para que se conheça que nem todos são dos nossos. 20Vós, porém, tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. 21Não vos escrevi como se ignorásseis a Verdade, mas porque a conheceis, e porque nenhuma mentira vem da verdade. 22Quem é mentiroso senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Esse é o Anticristo, que nega o Pai e o Filho. 23Todo aquele que nega o Filho não tem o Pai. Todo aquele que proclama o Filho tem também o Pai. 24Que permaneça em vós o que tendes ouvido desde o princípio. Se permanecer em vós o que ouvistes desde o princípio, permanecereis também vós no Filho e no Pai. 25Eis a promessa que ele nos fez: a vida eterna. 26Era isto o que eu vos tinha a escrever a respeito dos que vos seduzem” (1Jo 2,18-26).

O anúncio do Evangelho, e, com ele, a Teologia Moral é profecia, Palavra de Deus que se impõe ao mundo, anunciada por homens frágeis, que são os profetas, os verdadeiros cristãos, e dividirá as pessoas naquelas que são por Deus e aquelas que terminarão se colocando contra Deus. A Igreja não pode calar sua mensagem profética e aqueles que “por humildade” – muitos, na Igreja de hoje, não anunciarem o Evangelho dão provas de não crerem e de não serem “dos nossos” (cf., acima, 1Jo 2,19): “O que vimos e ouvimos nós vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1Jo 1,3). “Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At 4,20).

Referir-se ao Evangelho como uma proposta puramente facultativa é ignorar o seu urgente chamado à única salvação oferecida à humanidade e quase negar o anúncio do Evangelho. A Encarnação, como todo o desígnio salvífico de Deus, é uma determinação divina que se desenrola a despeito da negação dos homens. O mundo rejeita Deus, mas este se impõe ao mundo para salvar os que O quiserem. Deus entra na história dos homens mesmo contra a vontade destes. Filhos de Adão, temos a tendência a expulsar Deus de nosso meio ou fugir dele. O homem coloca sua confiança em si mesmo e em seus projetos e a Presença de Deus obrigar o homem a confiar em Deus – esta é a condição para Ele continuar presente – o que para o ser humano representa um pulo no escuro. Aceitar a Presença de Deus na história é desprender-se das seguranças humanas e confiar-se a Deus, mesmo sob a ameaça da morte. Daí vem para os homens o incômodo das coisas divinas, a necessidade das “obrigações religiosas”, esse Deus incômodo, que “só vem para atrapalhar”.

Resumindo, Deus se impõe ao mundo em seu desígnio salvífico. E se propõe à consciência de cada pessoa, sob pena dela ficar fora da salvação.

Podemos, inclusive, entender que o Reino de Deus acontece antes de sua manifestação escatológica – inevitável, imposta por Deus, por amor aos que se salvarão – justamente quando sua Presença é acolhida livremente pela fé e faz a diferença moral no agir humano: “Eu te odiaria, a ti, que agiu mal para comigo, mas, por causa de Deus, que nos criou e nos ama, e quer a tua salvação, eu te perdôo”.

A Moral Cristã, objeto de nosso estudo, é parte integrante da Verdade, não é facultativa, não é impositiva, não é relativa, mas é coercitiva, pois impõe uma diferença de destinos entre os que a seguem e os que a rechaçam. Mesmo diante do perdão divino, o caminho da sabedoria se distingue do caminho da insensatez.

10. Diferentes abordagens da Teologia

Tendo compreendido o conceito de Teologia e sua relação com a razão humana, podemos compreender que são possíveis diversas abordagens diferentes conforme os diferentes métodos racionais de abordar a experiência da Revelação. Temos a abordagem místico-pastoral-tipológica dos Padres da Igreja. Podemos ter uma teologia espiritual experimental, presente em obras como as de Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz, São Francisco de Sales e outros doutores da Igreja. Mas o que mais se impôs como teologia foi a análise sistemática, principalmente a partir da Escolástica medieval, que foi sofrendo ao longo dos séculos o influxo dos sistemas filosóficos de cada época, mas mantendo sempre seu caráter sistemático. É o que costuma chamar-se Teologia Sistemática, e que por esse seu caráter analítico se divide em diversos tratados. Um desses tratados convencionou-se chamar Teologia Moral. É a reflexão sobre o agir humano a partir da revelação sobrenatural. A filosofia já tinha o seu tratado sobre o agir, chamado comumente, a partir de Aristóteles, Ética. Evidentemente, a reflexão filosófica influenciaria a reflexão teológica sobre o agir. Podemos dizer que foi na área moral que a estrutura filosófica de pensamento mais influenciou a elaboração teológica e mais a distanciou da verdadeira recepção dos dados revelados e que isso continua, de certa maneira, até hoje. O nosso Curso tentará denunciar esse afastamento e aproximar-se sempre mais dos dados revelados, sem tanto compromisso com a ética filosófica, ressaltando melhor as diferenças entre as conclusões sobre o agir humano a partir da experiência sensível e mostrando melhor a sublimidade do dado revelado.

11. A Teologia Moral é abordagem do Mistério de Jesus Cristo

A Teologia Moral é considerada uma parte da Teologia Sistemática. A reflexão sobre o que a Revelação propõe que se creia seria a Teologia Dogmática e a reflexão sobre o que a Revelação propõe que se faça seria a Teologia Moral. A excessiva fragmentação da Teologia em tratados fez com que muitas vezes se tratasse a Teologia Moral quase que só a partir dos mandamentos divinos, segundo o que estes mandamentos indicam que se faça ou se evite fazer, acrescido de certas considerações sobre a natureza da virtude e do pecado e da graça. Essa abordagem desconsiderava grande parte dos dados da fé, que se julgava dever-se tratar apenas na Teologia Dogmática. As “partes” da Teologia eram consideradas como exclusivas, de modo que se um dado era estudado num tratado não seria matéria de outro tratado. Essa maneira de fazer teologia fragmentava e deformava o conhecimento teológico. É melhor considerar o Mistério revelado na sua integridade e considerar os diversos tratados como abordagens ou pontos-de-vista diferentes para contemplar o mesmo Mistério. Assim a Teologia Dogmática é a consideração do Mistério em vista da compreensão da realidade contemplada em si mesma. A Antropologia Teológica, a qual é indispensável para se fazer Teologia Moral, é a consideração do Mistério em vista de compreender a partir dele a natureza da Pessoa Humana e sua participação nesse Mistério. A Teologia Moral é a consideração do Mistério revelado em vista da compreensão da participação da liberdade do homem nesse Mistério.

12. As fontes da Teologia Moral

Por fontes da Teologia Moral entende-se as fontes dos dados revelados sobre os quais a Teologia Moral reflete racionalmente. Estas fontes são as mesmas da Revelação, ou seja, a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério Eclesiástico autorizado. É claro que a Teologia Moral ao trabalhar esses dados serve-se de estruturas de pensamento e de linguagem humanas, coteja esses dados com outros dados fornecidos pela moral filosófica, o direito etc., entra em confronto com as culturas e os acontecimentos históricos, mas isso não significa que esses conhecimentos humanos sejam “fontes” da Teologia Moral. São desafios, obstáculos, meios, mas não “fontes”, ou seja, não estão na origem do saber moral revelado. Essa distinção é importante para que a Teologia Moral conserve seu caráter religioso e não se secularize, o que confundiria a percepção daquilo que vem de Deus com aquilo que é elaboração humana, sacralizando ridiculamente construções do pensamento humano, ou relativizando elementos essenciais do saber moral revelado.

13. As “partes” da Teologia Moral

A Teologia Moral, como é tradicionalmente apresentada, também tem suas “partes”, que não devem, o quanto possível, ficar exclusivas ou estanques. Essas partes são geralmente chamadas de Teologia Moral Fundamental e Teologia Moral Especial. A primeira estuda os conceitos gerais como a dignidade humana, a natureza da lei moral, a liberdade e a consciência humanas etc. A segunda estuda os conteúdos da Revelação nas diversas ordens de atividades humanas, constituindo, por exemplo, a moral pessoal, a moral social, a moral da sexualidade, a moral familiar, a moral econômica e política, a moral médica etc. Como exemplo podemos dizer que a Terceira Parte do Catecismo da Igreja Católica – intitulada “A Vida em Cristo” – compreendendo os números 1691-2557 é a parte moral do catecismo. Nela, a Primeira Seção (1699-2051) constitui um tratado de moral fundamental e a Segunda Seção (2052-2557) constitui um tratado de moral especial.

14. A nossa Teologia Moral é a verdadeira Teologia da Libertação

Do que ficou dito, queremos “dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Não fazemos Teologia Moral por academicismo, mas como consideramos que deve ser toda Teologia: alicerce para o apostolado, diálogo com a razão do homem para que ele se converta, reconheça sua situação de condenado e abra-se à Redenção que Deus lhe proporcionou. É a única razão suficiente para se fazer Teologia. Assim, consideramos, por exemplo, que o tradicional tratado de justiça presente nos manuais de teologia moral baseia-se na Suma Teológica, que por sua vez calca-se em Aristóteles. É um tratado de moral filosófica, mesmo presente na Suma Teológica. Não corresponde à Justiça de que fala o Evangelho. Segundo a justiça natural, o Filho de Deus não deveria sofrer nada. E sim os pecadores. Mas isso não nos libertaria, não mudaria o homem. Então, para a verdadeira justiça, foi necessário assumir a injustiça segundo a natureza – a Paixão e Morte do Filho de Deus – estabelecendo uma nova justiça, superior, a única que leva em conta a Presença de Deus, e por isso, que corresponde à Verdade.

A lei moral natural, ou a moral dos mandamentos divinos só leva em conta Deus como o que impõe uma lei. Temer a Deus, respeitar Deus, levar em conta Deus, nesse caso, significa obedecer à sua lei. Leva-se em conta Deus como autoridade e como juiz. A lei moral natural não testemunha a Presença de Deus, pois sendo acessível à razão humana apenas a partir dos sentidos não supõe a intervenção divina em causa primeira. Nesse caso, a justiça do que obedece – em teoria, porque ninguém o pode fazer com perfeição – não sana a injustiça do que não obedece. E todos estão no grupo dos que não obedecem, pelo menos em alguns casos. Quem nunca peca? A nova justiça, levando em conta a Presença de Deus como Criador, Doador, Recompensador, e não principalmente como juiz ou autor da lei, liberta o homem, pois o torna capaz de assumir sobre si a injustiça, carregar o fardo que o pecado ou a miséria do próximo lhe impõe – e que, por justiça natural não lhe seria devido. E assim sanar a injustiça cometida pelo próximo. Neste caso, “o amor supera o temor” (cf. 1Jo 4,18), ama-se a Deus, espera-se nEle como fonte de uma justiça superior. A Presença de Deus faz a diferença, faz expôr-se à injustiça confiado numa justiça superior, supõe e testemunha a Presença de Deus, faz como que “visível” essa Presença e é nisto que consiste, no plano moral, o que o Evangelho chama o “Reino de Deus”. A alegria da Encarnação, Emanuel, Deus-Conosco.

Segunda Parte: Os Princípios Fundamentais da Moral Cristã

1. A Santíssima Trindade e a semelhança divina da pessoa humana

Deus é infinito e não poderemos descrevê-lo plenamente em nossos raciocínios. Nem a eternidade toda esgotará a riqueza de Deus na contemplação dos Eleitos. Mas d’Ele, pela Revelação, podemos ter uma idéia bem mais exata e, por essa idéia, entender melhor a pessoa humana, criada à imagem de Deus. E entendendo melhor a pessoa humana, entender melhor o agir conveniente à sua verdadeira natureza, que ela deve apresentar.

A revelação mais surpreendente de Deus em Jesus Cristo não é nem mesmo a Ressurreição. Esta poderia ser imaginada pelos homens, sedentos de vida plena. Os judeus, antes de Jesus Cristo, já acreditavam nela (cf. 2Mc 7,9; 12,44). A revelação mais surpreendente é a Santíssima Trindade. A revelação de que há um só Deus – até aí os judeus com seu Iahweh e os muçulmanos com o seu Alah também chegaram – mas que nesse Deus Único há Três Pessoas, e não apenas uma, como imaginam judeus e muçulmanos e muitos outros. Aí ninguém chegara antes. Só Jesus Cristo o revelou (cf. Jo 14).

A revelação da Santíssima Trindade deve estender-se à compreensão da pessoa humana, pois esta foi criada à imagem das Pessoas Divinas e para viver, como elas e com elas, uma vida de comunhão pessoal.

A revelação da Santíssima Trindade renova em nós o conceito de vida. O senso comum está acostumado a admitir que cada pessoa tenha a sua vida, separada da vida dos outros, pois quando um morre o outro continua vivo. A revelação da Santíssima Trindade mostra Três Pessoas vivendo uma só Vida, uma só Essência Divina nas Três. Então não devemos mais admitir que a vida de cada pessoa humana seja própria e não tenha a ver com a vida de outra pessoa humana. Os antigos Padres da Igreja não concebiam a criação da pessoa humana como de pessoas separadas, mas como a criação em conjunto de todo o gênero humano, como uma unidade, na qual Deus quer cada pessoa que dele participa com a sua personalidade própria. Ouçamos o que nos diz o grande teólogo francês Henri de Lubac:

“A dignidade sobrenatural da pessoa batizada, sabemo-lo bem, repousa, mesmo superando-a infinitamente, sobre a dignidade natural do homem: agnosce, christiane, dignitatem tuam. Deus qui humanae substantiae dignitatem mirabilitar condidisti... Assim a unidade do Corpo Místico de Cristo, unidade sobrenatural, supõe uma primeira unidade natural, a unidade do gênero humano. Os Padres da Igreja também, que ao tratar da graça e da salvação tinham constantemente em vista este Corpo de Cristo, tinham igualmente o costume, quando tratavam da Criação, de não fazer menção apenas da formação dos indivíduos, primeiro homem e primeira mulher: amavam contemplar Deus no ato de criar a humanidade como um só todo. Deus, diz por exemplo, Santo Irineu, planta no início dos tempos a vinha do gênero humano; Ele predilige esse gênero humano, propõe-se derramar sobre ele o Espírito Santo e conferir-lhe a adoção filial (Adversus Haereses, passim. Cirilo de Alexandria, in Joannem 1.11,c.11 (P.G. 74, 761)” (Cattolicismo - Aspetti sociali del dogma, 2.ª ed., Editoriale Jaca Book spa, Milano 1992, p. 3).

Em linguagem mais simples pode-se entender, sem erro, que se Deus é Santíssima Trindade, é Três Pessoas numa só essência divina, um só Ser, uma só Vida, e criou o homem à Sua Imagem e semelhança (cf. Gn 1,26-27), criou o homem também na unidade de vida (“uma só carne” cf. Gn 2,24). O pecado original é que faz-nos sentir como tendo cada pessoa uma vida separada, mas a Revelação nos ensina a Verdade: todos somos pessoas distintas, mas participamos de uma só vida. Por isso a queda de Adão e Eva é nossa e a vitória de Jesus Cristo, que assumiu a comunhão de vida com os homens é nossa também (cf. Rm 5,14-19). Essas duas realidades convivem em cada pessoa. Se assim entendermos veremos facilmente que, submetidos ao pecado em Adão e Eva, era-nos absolutamente impossível viver a vida na Verdade de que Deus é que nos criou e nos mantém. O medo da morte e de suas manifestações – dor, sofrimento, humilhação, pobreza etc. – (cf. Hb 2,14-15) faz-nos sempre agir na sensação de que são nossas ações e providências que nos salvam e dão vida, e que a vida de uma pessoa é dela e não de outra. Era necessário que Jesus Cristo nos redimisse, isto é, morresse na Cruz em plena graça, sem nenhum gesto de auto-defesa, esperando a Vida só do Pai, e, sendo uma só Vida conosco (cf. Jo 15,1) nos fizesse participantes dessa sua redenção. A graça santificante é essa participação de toda a humanidade na vitória de Jesus Cristo sobre a morte. A Fé é o conhecimento voluntário dessa participação e o batismo, “que nos confere a graça santificante” é o Sacramento da Aceitação da Fé, da participação na Sua Morte sem-defesa. Vemos assim claramente o primado da Graça (a Encarnação, Paixão e Morte Redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo que nos faz participantes dela = derrama o seu Espírito Santo sobre nós) e a nossa participação livre, que é aceitar a Verdade de depender, como criatura que somos, totalmente de Deus para viver e não colocar a confiança nunca em nossas próprias ações, inteligência, ciência, força etc. Assim todas as pessoas humanas vivem uma participação em uma só vida. A Igreja, como um só Corpo, o Corpo de Cristo, é a restauração da humanidade, fragmentada pelo pecado, na unidade (cf. Ef 2,14-18).

Como se dá essa unidade das Pessoas Divinas? Da mesma forma que se dá a unidade das Pessoas Divinas, dar-se-á a unidade das pessoas humanas, criadas à imagem d’Aquelas. Jesus Cristo é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Encarnou-se, assumindo a natureza humana criada e mortal, mas mostra na sua relação com o Pai, a Primeira Pessoa, em sua vida humana o mesmo dinamismo do relacionamento eterno entre as Pessoas Divinas, e, assim, nos revela a Vida íntima de Deus. O Pai Se dá ao criar (cf. 1Jo 4,8.16; Mt ,17; 35,45; Lc 11,13; 17,5), ama e o Filho acolhe o dom do Pai incondicionalmente, sem reparos ou condições. Quando Se encarnou, o Filho aceitou a vida e a morte humanas, Ele, que é Pessoa Imortal, na sua condição divina (cf. Fl 2,5-11). Jesus não permite a intervenção natural de Simão Pedro que quer fazê-Lo, como as pessoas humanas, aceitar a vida dada por Deus, mas não a morte (cf. Mt 16,21-23). Ao aceitar incondicionalmente o dom do Pai, o Filho coloca-se em total disponibilidade em relação ao Pai e isto é, precisamente uma auto-doação. Acolher a condescendência do Pai é dar-se também a Ele. De forma que cada Pessoa tem a sua Vida, realmente na Outra. O Pai esvazia-Se de Si no Seu Amor pelo Filho, e vive no Filho e pelo Filho. O Filho acolhe o dom do Pai em plena disponibilidade e absoluta dependência, de modo que a Vida do Filho não está nEle, mas no Pai. O Pai envia então o Seu Filho, que assume a natureza humana, aceita a natureza humana com sua vida e sua morte, a convivência com o pecado dos seus semelhantes e todas as demais circunstâncias. Aceita a vida humana de forma incondicional, em total disponibilidade. Na Sua vida humana, o Filho de Deus Se dá às pessoas humanas de maneira semelhante àquela pela qual o Pai Se dá a Ele. E revela aí a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo, o espírito de unidade do Pai e do Filho. O Filho estabelece com as pessoas humanas a mesma relação que tem com o Pai, ou seja, o Espírito Santo. Assim a pessoa humana criada para participar da comunhão de vida das pessoas divinas realiza isto ao acolher plenamente o dom de Deus, como Jesus Cristo acolheu, isto é, seguindo-o, acolhendo a vida e a morte, e todas as circunstâncias da sua personalidade, todos os seus dons, sem compará-los nunca com os dons de outras pessoas. E acolhendo o próprio Jesus Cristo, vivendo d’Ele, que é a Palavra criadora que Se fez carne e que Se faz o Seu Alimento, na Santa Eucaristia. Tendo só n’Ele toda a esperança. Vivendo, por isso, numa plena dependência de Deus, sem nunca pensar ou sonhar em bastar-se a si mesma, ou depender de si mesma, mas vivendo tendo o Pai como seu Criador e Mantenedor a cada momento de sua vida.

2. A Natureza, com suas cadeias ecológicas, traz uma semelhança divina.

De todos os seres vivos na natureza, não há nenhum que não precise, para conservar a vida, alimentar-se de matérias provenientes de outros seres vivos. Essa alimentação pode ser o respirar ou o comer. Os vegetais verdes consomem, pela fotossíntese, o dióxido de carbono e produzem oxigênio. Os animais fazem a operação inversa, uns, portanto, alimentando os outros. Um animal cresce consumindo matérias de outros seres vivos, suas fezes e urina são fonte de alimentação para outros seres vivos e depois pode ser até devorado por um outro animal, formando assim as cadeias ecológicas alimentares. É preciso prestar atenção neste fato, de todo ser vivo ter sua fonte de vida biológica, permanentemente fora de si mesmo, sendo um ser vivo o alimento de outros. Não é difícil entender então que cada ser vivo, na natureza é um ser vivo, mas a biosfera, como um todo, é também um ser vivo, formado por muitos seres vivos que compartilham uma só “vida”. Há uma unidade de vida e percebe-se quando se extingue um animal como seus predadores também morrem até que haja novas adaptações e se forme novas cadeias alimentares. Isso pode ser encarado como um “sacramento” (sinal visível da realidade invisível) do Deus Uno e Trino que criou essa natureza. Há uma só vida, mas vivida por Três Pessoas Distintas. A humanidade criada por Deus também são inúmeras pessoas, mas há uma unidade de vida, e cada pessoa deve fazer-se alimento para a outra, como acontece na sucessão das gerações humanas em que uma geração cuida da seguinte até que esta cresça e se dê pela que a segue. Jesus deu sua vida e afirmou que sua carne doada e seu sangue derramado eram verdadeiramente uma comida e uma bebida. Se cada pessoa se dá assim, no mesmo Espírito de Jesus, da morte voluntária por amor brotará a vida. Do egoísmo, em que cada pessoa, ao invés de dar-se em alimento no serviço ao próximo, se apossa do semelhante explorando-o brotará a morte, pelas revoltas, pelas guerras, pelo ódio.

3. A Graça, o primeiro princípio da moral cristã.

Quem é o Homem? Esta pergunta já encheu muitos grossos volumes. Para nós, fiéis ao nosso método, iremos buscar a resposta nas nossas fontes. A Constituição pastoral do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes indaga “Que é o homem?” ou “Que pensa a Igreja acerca do homem?” e busca uma resposta, do n.º 10 até o n.º 22, que o aluno deve ler. O n.º 22 abre-se com estas palavras: “Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, o primeiro homem, era efetivamente figura daquele futuro (cf. Rm 5,14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime”. Nós, em nosso Curso, iremos buscar, justamente nas figuras de Adão e de Cristo a compreensão da natureza humana segundo a Revelação.

A Bíblia abre-se com o relato da Criação e a Igreja define claramente que esta criação é ex-nihilo, do nada, e absolutamente livre por parte de Deus. Deus não era obrigado a criar nada e criou por soberana e livre vontade. “O eterno Pai, por decisão inteiramente livre e insondável da sua bondade e sabedoria, criou o universo, decretou elevar os homens à participação da sua vida divina…”?. Diz o Catecismo da Igreja Católica, trazendo doutrinas definidas no Concílio Vaticano I: “Cremos que Deus não precisa de nada preexistente nem de nenhuma ajuda para criar. A criação também não é uma emanação necessária da substância divina. Deus cria livremente ‘do nada’”. Como ser criado o ser humano não existe desde sempre. Criado por livre desígnio de bondade, e sendo a existência um bem, aparece o primeiro elemento da relação do homem com Deus: a graça. Conhecendo essa característica de sua origem, o homem deve “ação de graças” a Deus pela existência e deve ter em Deus a fonte e garantia de sua existência. Esta é a atitude básica da moral, que deverá pervadir todos os sentimentos e ações livres do homem. “Eu nada era e agora sou”. A Sagrada Escritura testemunha pela voz da mãe dos sete filhos: “22Ignoro, dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem a alma, nem a vida, e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros. 23Mas o criador do mundo, que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis. … 28Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra; reflete bem: tudo o que vês, Deus criou do nada, assim como todos os homens” (2Mc 7,22-23.28). A atitude de ação de graças se estende também ao fato de que toda a criação está ordenada para o homem, para o bem do homem, ápice da obra da Criação, e única criatura na terra que Deus quis por si mesma.

Tudo que o homem tem, recebeu de graça. “O que há de superior em ti? Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se o não tivesses recebido?” (1Cor 4,7). Tudo o que temos, a vida, os membros do corpo, os afetos e os bens, tudo é pura graça divina e a nada a pessoa tem direitos diante de Deus. Quando foram dizer a João Batista que Jesus fazia mais discípulos do que ele, a resposta de João foi de extrema sabedoria e conforme o princípio que estamos expondo, afastando João todo espírito de competição ou comparação:

26Foram e disseram-lhe: Mestre, aquele que estava contigo além do Jordão, de quem tu deste testemunho, ei-lo que está batizando e todos vão ter com ele... 27João replicou: Ninguém pode atribuir-se a si mesmo senão o que lhe foi dado do céu. 28Vós mesmos me sois testemunhas de que disse: Eu não sou o Cristo, mas fui enviado diante dele. 29Aquele que tem a esposa é o esposo. O amigo do esposo, porém, que está presente e o ouve, regozija-se sobremodo com a voz do esposo. Nisso consiste a minha alegria, que agora se completa. 30Importa que ele cresça e que eu diminua” (Jo 3,26-30).

Pela resposta de São João Batista, tudo de que a pessoa se apossa na sua ganância não chega a ser dela. Só é realmente nosso o que nos é dado pela graça de Deus. De certa forma todas as coisas são nossas, se não nos apegamos e não nos escravizamos a elas. O avarento não possui a riqueza. Não a recebe do Alto. Conquista-a com os meios deste mundo e não a coloca a serviço do corpo da humanidade. É a riqueza que o possui e o escraviza.

A vida segundo a Verdade é, portanto aquela em que o homem sabe que não tem em si próprio, nem em nenhuma criatura sob o seu poder ou fora dele, a garantia de sua vida e existência, mas só em Deus mesmo. E que depende a cada instante de Deus, que o mantém na vida e na existência. Aceita, pois a sua vida e todos os dons recebidos - aqueles que conhece e também os que ainda não tomou consciência de que recebeu - e também a falta de algum dom - como coisa querida por Deus, que é Amor. Submete-se assim inteiramente a Deus, tendo só n’Ele a fonte do seu ser. Nisto consiste também a adoração de Deus. Este é também, podemos dizer, o primeiro princípio da moral cristã.

4. A Unidade na Diversidade de Pessoas - o segundo princípio da Moral Cristã.

Como vimos ao meditar sobre a Santíssima Trindade, na interpretação dos Padres da Igreja, Deus não cria pessoas individualizadamente, mas as cria, distintas, irrepetíveis, numa unidade, a do gênero humano que Ele criou “para ser uma só carne” (cf. Gn 2,24). Esta semelhança do gênero humano com Santíssima Trindade, que é uma só Vida, uma só Essência divina em Três Pessoas distintas, não é suficientemente explicitada geralmente. Mas é essa unidade que dá base metafísica para muitos comportamentos morais aos quais a consciência da humanidade aspira e neles percebe o Bem. Hoje há um clamor por solidariedade, mas se imagina a solidariedade só no nível moral. “Eu me faço solidário com o meu semelhante porque eu quero”. Parece tratar-se de uma questão de boa vontade. Este segundo princípio revela que se há este clamor é porque não agir solidariamente faz mal ao gênero humano, porque a sua natureza própria é ser uma só vida da qual participam bilhões de pessoas. Há, antes da solidariedade moral, uma solidariedade metafísica, que faz parte da natureza da pessoa e do gênero humano. A solidariedade moral faz a pessoa agir segundo a natureza humana e é por isto que “faz bem” à humanidade o agir solidário.

"E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Lv 19,18)" (Mt 22,39). Este preceito básico da moral cristã ganha também um significado mais profundo quando o entendemos de acordo com o segundo princípio da moral cristã. Devo amar o próximo como a eu mesmo, não numa perspectiva subjuntiva, “como se fosse eu mesmo”, para não fazer a ele o que eu não gostaria que me fizessem (cf. Mt 7,12). Devo amar numa perspectiva indicativa, isto é, o meu bem está no bem do meu próximo, ele e eu somos pessoas distintas, mas que participamos de uma só vida.

Todos os dons que cada pessoa recebe, devem ser entendidos como dados para o gênero humano inteiro por meio dessa pessoa, como os órgãos do corpo humano ou de um animal tem função própria, mas são para benefício da totalidade do corpo (cf. 1Cor 12). Se Caim tivesse entendido isso, partilharia a bênção de seu irmão Abel, alegrar-se-ia com ele, e não teria inveja nem ódio dele, não o matando, mas unindo-se a ele (cf. Gn 4,3-8). Este pensamento reforça o caráter metafísico da solidariedade das pessoas humanas, segundo a Verdade. A moral cristã toda deve ser entendida de acordo com este segundo princípio da moral cristã.

A relação da pessoa com o conjunto da humanidade não se dá imediatamente, mas segundo grupos naturais, a família, o clã, a tribo, a cidade, a nação etc. Assim é moralmente impossível a pessoa se relacionar diretamente com a humanidade inteira. Mas ela participa de uma comunidade na unidade, as comunidades se relacionam entre si em comunidades de comunidades e assim até chegar ao concerto das nações, em que cada nação ou comunidade é uma espécie de “pessoa jurídica”, onde a lei da unidade permanece. Cada pessoa (pessoal ou jurídica) existe para ser para as outras pessoas.

A unidade do Corpo de Cristo, que invocamos na Santa Missa (“E nós vos suplicamos que, participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só Corpo” - Missal Romano, Oração Eucarística II), é a restauração da unidade original do gênero humano fragmentado pelo pecado que fez a pessoa humana desconhecer sua própria natureza. A humanidade reencontra sua unidade no Corpo Místico de Cristo.

5. A Ordenação das Coisas em Função de Deus e das Pessoas - o terceiro princípio da moral cristã

21Portanto, ninguém ponha sua glória nos homens. Tudo é vosso: 22Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! 23Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,21-23).

Nestes versículos, em que São Paulo conclui sua resposta para a divisão da comunidade coríntia, em grupos de simpatia pessoal, está contido um princípio fundamental da moral cristã. O fim último, a “glória” da pessoa humana é Deus e só Ele. Todas as coisas que circundam uma pessoa, mesmo as outras pessoas (Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro) são para o bem da pessoa em questão. Mesmo as pessoas que não lhe fazem o bem, se a pessoa conserva sua orientação para Deus, a oposição dessas pessoas ressalta a opção por Deus, como Jesus Cristo foi glorificado no Pai com a intervenção de seus algozes. Todas as coisas são para a pessoa, mas a pessoa é para Deus só e não para outra pessoa.

21Outra vez um dos seus discípulos lhe disse: Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu pai. 22Jesus, porém, lhe respondeu: Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos” (Mt 8,21-22).

Neste caso, os pais são para o bem daquele que quer seguir Jesus, mas a presença do pai não deve ser impecilho na destinação do filho para Deus. As riquezas são para a pessoa, mas não as pessoas são para as riquezas:

21Jesus fixou nele o olhar, amou-o e disse-lhe: Uma só coisa te falta; vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me. 22Ele entristeceu-se com estas palavras e foi-se todo abatido, porque possuía muitos bens. 23E, olhando Jesus em derredor, disse a seus discípulos: Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os ricos!” (Mc 10,21-23).

Aqui o moço rico se escravizou às suas riquezas e por elas desviou a destinação de sua pessoa, que era para Deus. Por este princípio, todas as coisas estão em relação para o bem de cada pessoa considerada isoladamente, mas a pessoa mesma tem a sua destinação, a sua razão de ser, não em desfrutar as outras criaturas, mas somente em Deus, em entrar em comunhão eterna com o Pai, pelo Filho, na unidade do Espírito Santo. São Paulo invoca a liberdade da pessoa em relação às realidades desse mundo e sua destinação para Deus, relacionando-as com a brevidade da figura deste mundo:

29Mas eis o que vos digo, irmãos: o tempo é breve. O que importa é que os que têm mulher vivam como se a não tivessem; 30os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; 31os que usam deste mundo, como se dele não usassem. Porque a figura deste mundo passa” (1Cor 7,29-31).

Este princípio parece contradizer o princípio da unidade ao afirmar a destinação de cada pessoa, isoladamente, em Deus. Mas está em relação orgânica com aquele princípio. A pessoa recebe tudo de Deus pela unidade do corpo da humanidade, por participar dessa unidade. Deve também dar seus dons para o bem de toda a humanidade, segundo os grupos naturais, mas nesse receber e dar, participando da unidade da humanidade, reconhece que recebe de Deus, através de outras pessoas e dá às outras pessoas em nome de Deus, sendo instrumento da Providência divina em todos os seus dons. A relação social e visível é com as pessoas. A relação espiritual e invisível é com Deus, recebendo e se dando a Ele. Assim a relação com os outros é sacramento, sinal tangível, da relação invisível com Deus.

Este terceiro princípio está em relação com os outros dois princípios, porque destinando a pessoa para Deus afirma que a nenhuma criatura deve prender-se como seu gozo e razão de ser. Assim a pessoa, movida pelo mesmo Espírito de Jesus, é livre em relação a todas as coisas e, não se desviando “como seta de arco frouxo” (cf. Sl 77,57) de sua meta divina, dá a verdadeira destinação às demais criaturas. Isto é considerado essencial pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes:

Um duro combate contra os poderes das trevas atravessa, com efeito, toda a história humana; começou no princípio do mundo e, segundo a Palavra do Senhor (cf. Mt 24,13; 13,24-30.36-43), durará até ao último dia. Inserido nesta luta, o homem deve combater constantemente, se quer ser fiel ao bem; e só com grandes esforços e a ajuda da graça de Deus conseguirá realizar a sua própria unidade.

Por isso, a Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, ao mesmo tempo que reconhece que o progresso humano pode servir para a verdadeira felicidade dos homens, não pode deixar de repetir aquela palavra do Apóstolo: ‘não vos conformeis a este mundo’ (Rm 12,2), isto é, com aquele espírito de vaidade e malícia que transforma a atividade humana, destinada ao serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado.

E se alguém quiser saber de que maneira se pode superar essa situação miserável, os cristãos afirmam que todas as atividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo. Porque, remido por Cristo e tornado nova criatura no Espírito Santo, o homem pode e deve amar também as coisas criadas por Deus. Pois recebeu-as de Deus e considera-as e respeita-as como vindas das mãos do Senhor. Dando por elas graças ao Benfeitor e usando e aproveitando as criaturas, em pobreza e liberdade de espírito, é introduzido no verdadeiro senhorio do mundo, como quem nada tem e tudo possui (cf. 2Cor 6,10). ‘Todas as coisas são vossas; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus’ (1Cor 3,22-23)” (GS 37).

Neste trecho se condensam os três princípios descritos acima.

6. A transfiguração. Corolário da vivência da moral cristã.

Toda a vida cristã na terra tem um significado que transcende as aparências visíveis. O Evangelho traz constantemente uma contradição entre a situação da pessoa aos olhos dos homens e a consideração divina sobre a mesma situação. Basta lermos as bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-12; Lc 6,20-26), ou ouvirmos o Cântico de Maria (cf. Lc 1,46-55). Jesus declara que os últimos serão os primeiros (cf. Mt 19,30; 20,16; Mc 10,31; Lc 13,30) e quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (cf. Mt 23,12; Lc 14,11; 18,14; 2Cor 11,7; Tg 4,10). Essa realidade “transfigura” o significado das situações humanas.

Os próprios relatos da ‘transfiguração de Jesus’ (cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-9; Lc 9, 28-36; 2Pd 1,16-18) podem ser considerados uma ‘transfiguração’ da agonia de Jesus no Getsemani. As semelhanças são muitas: os mesmos três discípulos, o sono dos discípulos, Jesus em oração e diante das Escrituras e de sua Paixão. A mesma cena, dolorosa do Getsemani, é uma cena de luz aos olhos do Pai, que pelo sofrimento glorifica o seu Filho. Como se fossem dois diferentes olhares da mesma realidade.

Ao afirmarmos isso, não queremos negar a realidade histórica da transfiguração. É tristemente comum, hoje, exegetas quererem negar a verdade histórica das passagens dos Evangelhos com base em seus próprios raciocínios. O Catecismo da Igreja Católica, 126, afirma, sem hesitação, a historicidade dos Evangelhos. A realidade da passagem da transfiguração é como uma revelação daquilo que estamos defendendo aqui.

As realidades da vida de Jesus são todas transfiguradas pela sua glorificação. O nascimento num curral inspira belos presépios de Natal, ao invés de nos enojar, como aconteceria pela simples consideração de uma mulher grávida ser obrigada a dar à luz seu filho num curral, como os animais. A cruz, de instrumento de crueldade e suplício, se ‘transfigurou’ em sinal de amor e esperança. Assim também os instrumentos dos suplícios dos mártires, como as pedras de Santo Estevão, as flechas de São Sebastião, adquirem um significado transfigurado. Sem tal significado, muitas expressões da arte sacra cristã, ao invés de expressão de beleza seria um espetáculo de exposição de sofrimentos, beirando o sadismo.

A submissão a Deus transfigura o significado negativo das experiências dolorosas. O cristão transfigura a situação de pecado em glória divina. Quando o cristão perdoa de coração, transfigura uma história de maldade e pecado em uma história de perdão e misericórdia, como a mãe que, tendo seu filho assassinado por outro jovem, ia visitar o assassino, no cárcere, como se fora a mãe dele, adotando-o, na prática como um novo filho.ho. Essa senhora transfigurou uma história de assassinato numa história de raro amor. As vidas dos santos são, frequentemente, histórias de transfiguração dos pecados em atos de amor. “Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20). Isso o Filho de Deus realiza não somente em sua encarnação em Jesus Cristo, mas também nos membros do Seu Corpo. O cristão crê que a morte é caminho de vida e por ele Deus transfigura as trevas deste mundo em luz.

7. Resumo dos princípios da vida moral cristã.

A vida cristã tem seus horizontes na vida de Deus, que é relação íntima das Três Pessoas da Santíssima Trindade. Deus é Amor e amor-doação-de-si, e amor-acolhimento-incondicional-da-doação. O cristão recebe de Deus, neste mundo uma vida mortal. Pelo medo da morte, a tendência da pessoa é buscar a conservação de si mesma, contra todo sinal de morte: doença, humilhação, perdas, solidão etc. Isso gera os movimentos da alma que no Evangelho são descritos como “desejos da carne”. Tais desejos levam à comparação e à concorrência com as outras pessoas, ao desejo de dominá-las ou, pelo menos controlá-las (sede de poder) e ao ódio. Levam a pessoa a colocar sua segurança no poder humano sobre as criaturas, pessoas e coisas. Numa palavra, levam à morte. Por mais que a pessoa tenha poder sobre as criaturas, só Deus criou tudo o que existe e só Deus pode dar a vida a qualquer ser. Nunca a vida brota de outra criatura em si mesma. Mas Deus quer dar vida a cada pessoa através da doação livre de outra pessoa. A pessoa que não se doa para se apoiar no seu poder sobre as criaturas não terá vitória sobre a morte, porque Deus, a Vida Subsistente, é amor-doação-de-si. Então vence-se a morte não tentando evitá~la através do poder sobre as criaturas, mas morrendo a cada dia na entrega de si, vivendo a mesma vida das Pessoas Divinas, que vivem se doando umas às outras e se acolhendo incondicionalmente. A pessoa que acolhe plenamente o dom de Deus (“de graça recebestes”) ao se dar gratuitamente (“de graça daí”) torna-se instrumento da graça divina e entra em comunhão com o próprio Deus, comunhão que é, por definição, a própria vida eterna. Então, podemos resumir toda a vida moral cristã com a sentença final do versículo Mt 10,8:

8De graça recebestes, de graça dai” (Mt 10,8c).

E isto está de acordo com os ditos mais “radicais” de Jesus no Evangelho:

“Quem não está comigo está contra mim; e quem não ajunta comigo, espalha” (Mt 12,30). “Quem não está comigo, está contra mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Lc 11,23).

Aqui Jesus declara vãos todos os esforços dos que não seguem a sua orientação de vida, o seu Espírito. “Espalha”, aqui, é o mesmo que “desperdiça, joga fora”.

“Em seguida, Jesus disse a seus discípulos: Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).

Renunciar a si mesmo é deixar de buscar salvar-se por suas próprias forças e poder. É atribuir só a Deus todo o poder e se fazer dependente dele. A cruz é muitas vezes associada aos sofrimentos da vida. Mas é mais profundo considerar que a cruz é o conjunto de circunstâncias pessoais, sociais etc. que Deus permite a cada pessoa viver. Carregar a cruz cada dia corresponde ao primeiro princípio da moral cristã, isto é, a “viver em ação de graças” (cf. 1Ts 5,18), recebendo o dom da vida com alegria, pois a tristeza e a revolta significam uma não-aceitação do dom e algo como colocar condições diante de Deus. Isso corresponde exatamente ao que Santo Inácio de Loyola colocou como “Princípio e Fundamento” de seus famosos “Exercícios Espirituais”:

(1) Princípio e Fundamento

(2) O ser humano é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor
e, mediante isto, salvar a sua alma.

(3) As outras coisas sobre a face da terra são criadas para o ser humano e
para o ajudarem a atingir o fim para o qual é criado.

(4) Daí se segue que ele deve usar das coisas
tanto quanto o ajudam para atingir o seu fim,
e deve privar-se delas tanto quanto o impedem.

(5) Por isso, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas,
em tudo o que é permitido à nossa livre vontade e não lhe é proibido.

(6) De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos
mais saúde que enfermidade,
riqueza que pobreza,
honra que desonra,
vida longa que vida breve,
e assim por diante em tudo o mais,

(7) desejando e escolhendo somente
aquilo que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.

A vida espiritual e moral cristã pode ser medida como com um termômetro. No extremo salutar está a ação de graças pela vida, independente de suas circunstâncias. No extremo “doente” estão os sentimentos de revolta e insatisfação em relação à vida, o dom de Deus.

“Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á” (Mt 10,39).

“Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á” (Mt 16,25).

“Porque o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á” (Mc 8,35).

“Porque, quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á” (Lc 9,24).

“Todo o que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; mas todo o que a perder, encontrá-la-á” (Lc 17,33).

Em três evangelhos sinóticos temos a mesma frase repetida cinco vezes, sinal de sua importância. É morrendo que se vive para a vida eterna. E morrer a cada dia é amar e servir. E nisso fazer unidade de vida com Deus e com o semelhante. Viver em Deus e no semelhante.

Terceira Parte: A Situação da Pessoa decaída pelo Pecado Original

1. A criação da pessoa humana como imagem de Deus e realidade boa

Analisamos as razões do agir de Jesus. Cumpre mostrar agora, para ficar mais claro, que Jesus age como a pessoa no Paraiso - embora tenha vivido vida mortal neste mundo agressivo e pecador - na plena graça de Deus. E que a lógica de seu agir moral é o contrário da lógica da pessoa humana decaída em conseqüência do pecado original.

Segundo Gn 1-2, iluminado pela doutrina da Igreja, temos as verdades:

a) Deus criou tudo livremente, a partir "do nada", por meio da Palavra (cf. Gn 1,3; Jo 1,3).

b) Deus criou a pessoa humana à sua imagem. A primeira semelhança destacada (cf. Gn 1,27) é que Deus a criou homem e mulher (diversidade de pessoas) para serem "uma só carne" (cf. Gn 2,23-24; unidade de vida).

c) A pessoa humana não foi tirada imediatamente "do nada", mas criada a partir do pó da terra. A pessoa 'adam' vem do solo 'adamah'. Tem, pois, um corpo material, mortal (cf. Gn 3,19), e para mantê-lo respira (cf. Gn 2,7) e se alimenta dos frutos e animais da terra (cf. Gn 1,28-30).

d) O homem e a mulher estavam nus e não se envergonhavam (cf. Gn 2,25).

A pessoa humana é criada à imagem de Deus, que cria livremente, podendo, se o quisesse, não criar. Isto fundamenta a certeza de que também a pessoa humana é dotada de liberdade para agir, apesar de muitos condicionamentos influenciarem o seu agir. Esses condicionamentos não destroem totalmente a liberdade humana. Os credos extremo-orientais não professam a existência de Deus Pessoal e O substituem por uma energia inicial da qual emana necessariamente a multiplicidade dos seres da natureza. Com tal concepção, onde nem a origem dos seres foi um ato livre, os orientais tendem a negar a liberdade e a explicar todos os acontecimentos de forma determinista e fatalista.

Ao criar "do nada", expressão também da extrema liberdade de Deus, Deus não tem compromisso com nenhuma criatura, nem mesmo os anjos ou as pessoas humanas, todas devendo tudo a Ele e Ele nada devendo a nenhuma delas. Portanto Deus pode dar dons diferentes a distintas pessoas, não devendo submeter-se a nenhum critério humano de justiça. Deus não deve explicações às suas criaturas. Há religiões, como o espiritismo de Kardec e outros, que mostram sua origem humana ao tentar submeter o Criador a critérios de justiça humanos.

Ao criar a pessoa humana à Sua imagem e criar homem e mulher, embora ambos sejam criados na unidade, tendo uma igualdade de valor como criaturas de Deus. Deus os cria com diferenças fundamentais. O pensamento moderno, condicionado pelo igualitarismo iluminista rejeita diferenças entre pessoas humanas, mas Deus não se submete aos critérios ou aos pensamentos humanos. Sua Sabedoria é infinitamente superior a toda sabedoria humana.

Ao criar a pessoa humana à Sua imagem e, simultaneamente, corpórea e no mundo visível, Deus dá uma estrutura sacramental à Criação. As coisas visíveis serão sinais eficazes das realidades invisíveis. Assim, a pessoa transcende seu corpo, mas o corpo é o 'sacramento', o sinal visível da pessoa, através do qual ela se expressa e se comunica com as outras pessoas. Isto posto, a diferença mais universal que se pode observar entre homem e mulher, que independe de qualquer condicionamento cultural, é que fisicamente o homem fecunda a mulher pelo seu sêmen e a mulher concebe e dá à luz uma nova pessoa humana. Admitindo que o corpo seja 'sacramento', expressão visível da pessoa, esse elemento corporal mostra a característica diferenciada da pessoa do homem e da mulher. Assim, o masculino tem um caráter próprio de fecundar. O feminino em um caráter próprio de ser fecundado.

Se examinarmos a característica masculina ou feminina do gênero humano, tomado como um todo, verificaremos que, diante de Deus, o gênero humano tem uma característica feminina. De fato, Deus fecunda, com seus dons, dos quais o maior é o Seu próprio Espírito Santo, a pessoa humana e esta produz frutos agradáveis a Deus. Por isto, na Sagrada Escritura, o povo de Israel é figurado como a esposa de Iahweh e a Igreja como a Esposa de Cristo.

Em confronto com a natureza, o gênero humano apresenta uma característica masculina, pois fecundada com seu espírito, a natureza produz frutos de poder e beleza que não se manifestariam sem a pessoa humana, como são as obras da arte e da tecnologia humanas.

Se o gênero humano é masculino em relação à terra e feminino em relação a Deus, e a masculinidade ou feminilidade do corpo humano são da pessoa inteira, sendo o corpo 'sacramento' da pessoa, então a mulher, imagem da terra, desejosa de ser fecundada, é mais voltada para Deus, mais espiritual, e o homem, imagem de Deus, desejoso de fecundar é mais voltado para a terra, mais materialista e prático, menos espiritual do que a mulher.

Além disso, na diferenciação antropológica entre homem e mulher há uma semelhança divina. O Pai, no Mistério da Santíssima Trindade, Se dá, e gera eternamente o Filho, consubstancial ao Pai, transmitindo-lhe a vida divina, fecundando-o divinamente, de certa forma. Algo como o Pai sendo um princípio masculino e o Filho, a Palavra, um princípio feminino. O Filho, ao Se encarnar, é ungido pelo sêmen divino, o Espírito Santo, e dá os frutos da redenção. Em relação ao Pai, o Filho recebe o Espírito de Vida - o Sêmen que fecunda - e apresenta, por isso um caráter feminino. Em relação ao gênero humano, o Filho derrama o Espírito e é o Esposo. Apresenta caráter masculino. Assim como a Palavra Eterna apresenta aspectos de feminilidade - ser fecundado - e de masculinidade - fecundar, conforme sua relação seja considerada em relação ao Pai ou à humanidade, a pessoa humana apresenta os mesmos aspectos, em relação a Deus ou à terra. No conceito terra, aqui, se inclui também as outras pessoas humanas. A diversidade, homem e mulher, da pessoa humana é um dos mais belos sinais da semelhança divina na natureza humana.

A nudez original (Gn 2,25) se compreende mais facilmente a partir do pecado original, em que a pessoa humana se envergonha de sua nudez e busca vestir-se.

Analisemos, então, a queda original como origem da escravidão das pessoas humanas e a libertação na Páscoa de Jesus Cristo.

2. A alienação da pessoa humana

Em Gn 3 se narra a queda original da pessoa humana de sua condição criada boa. O anjo maligno - que Jesus, no Evangelho de São João, chama de “príncipe deste mundo” - é representado pela serpente, talvez pelo aspecto traiçoeiro de suas picadas e pela forma de seu corpo (cf. Gn 3,14). A Sagrada Escritura ao atribuir o pecado original da pessoa humana à sugestão de outro ser mostra o caráter relacional da pessoa humana. Sua vida é sua relação de dependência absoluta a Deus, mas ela tem a capacidade de substituir essa relação autêntica por uma relação inautêntica - mentirosa (cf. Jo 8,44) - com outro ser, que não lhe pode dar vida. Toda ação da pessoa humana configura uma relação pessoal seja com Deus, seja com as criaturas. Mesmo quando quer se isolar a pessoa humana está se relacionando e não pode deixar de se relacionar. Por isso é “pessoa”, semelhança das hipóstases divinas, que são intensamente relação, e relação tal que constituem na sua distinção, uma unidade de vida.

O maligno rompe a relação da pessoa humana com seu Criador minando sua confiança n’Ele, sugerindo que Deus mente e tem ciúme da pessoa humana, que não quer verdadeiramente o bem da pessoa humana. Esta sugestão se instalará na alma da pessoa humana e será a razão da sua desgraça. Escreve o famoso diretor de consciências Henri Nouwen:

“Quando João estava batizando as pessoas no rio Jordão, Jesus também foi para ser batizado. ‘E estando em oração, abriu-se o Céu, e desceu sobre ele o Espírito Santo em forma corpórea como uma pomba; e ouviu-se do Céu esta voz: Tu és o meu Filho amado; em Ti pus as minhas complacências» (Lc 3,21-22).

Como cristão, tenho a firme convicção de que o momento decisivo da vida pública de Jesus foi o seu batismo, quando ouviu a afirmação divina «Tu és o meu Filho amado; em Ti pus as minhas complacências». Nessa experiência essencial, Jesus é lembrado sobre quem realmente é de forma muito, muito profunda. (...) As palavras de Deus «Você é o meu amado» revelam a mais íntima verdade sobre todos os seres humanos, pertençam eles ou não a qualquer tradição em particular. A extrema tentação espiritual é duvidar dessa verdade fundamental sobre nós mesmos e crer em identidades alternativas”.

O texto do Gênesis fala da “árvore que está no centro do jardim”, que é a “árvore da ciência do bem e do mal”. Deus proibiu a pessoa humana de comer do fruto dessa árvore sob pena de morte. O fato de estar no “centro” pode significar que a posição em relação a essa árvore define a situação da pessoa humana. Essa árvore é um ponto de orientação que define a posição da pessoa. A posição da pessoa em relação à árvore da ciência do bem e do mal define a relação da pessoa com Deus. O bem é a ordem estabelecida pela própria Criação. Deus é o único Criador e Mantenedor de tudo o que criou. As coisas são criadas, não como as imaginou o grego que engendrou o Demiurgo, um organizador das coisas que transforma o caos, dá ordem às coisas e depois as abandona como se elas pudessem continuar a existir por seu próprio poder. Não! As coisas são criadas a partir do nada e tudo é feito em virtude do Filho (cf. Cl 1,16-17), e, como o Filho é gerado eternamente do Pai (cf. Credo Niceno-Constantinopolitano), as coisas permanecem no tempo pela ação mantenedora de Deus. Jesus até corrige a concepção hebraica do repouso de Deus após a Criação, que sustentava a instituição do “shabbat” (cf. Gn 2,1-3; Ex 20, 8-11) e afirma que seu Pai, o Deus dos hebreus (cf. Jo 8,54) “trabalha sempre” (cf. Jo 5,17). Tudo o que existe depende continuamente da ação mantenedora divina. “Nele vivemos, nos movemos e somos” (cf. At 17,28; 1Cor 8,6; Prefácio dos Domingos do Tempo Comum VI).

Comer da árvore da ciência do bem e do mal é, pois, adquirir poder sobre o bem e sobre o mal. O saber, a ciência, é, tradicionalmente, fonte de poder. Já o afirmava a mitologia grega, com o mito de Prometeu, por exemplo, entre outras mitologias, e a busca atual de pesquisa científica não tem outro motivo maior do que alcançar mais poder. Como o bem verdadeiro é um só, a ordem da Criação, a Verdade, outro bem qualquer, escolhido pela pessoa humana é uma mentira e viver segundo a mentira é uma alienação para a pessoa humana, é desconhecer a si mesma e a seu Criador e Mantenedor. É perder a própria identidade. E desligar-se da única fonte de manutenção da sua vida, que é o seu Criador. Nouwen continua:

“Às vezes respondemos à pergunta ‘quem sou eu?’ com ‘sou o que faço’. (...) Ou podemos dizer ‘Eu sou o que os outros dizem ao meu respeito’ (...) Você também pode dizer ‘Sou o que tenho’. (...) Quanto de nossa energia é empregada na definição de nós mesmos através da decisão de ‘ser o que faço’, ‘ser o que os outros dizem ao meu respeito’ ou ‘ser o que tenho’? Quando é o caso, a vida costuma seguir um movimento repetitivo de altos e baixos. Quando falam bem de mim, quando faço coisas boas e quando tenho muito, fico para cima e feliz. Mas quando começo a perder, quando, de repente, descubro não poder mais cumprir alguma tarefa, quando fico sabendo que os outros falam mal de mim, quando perco meus amigos, então resvalo para o buraco. O que quero dizer a Você é que essa postura em ziguezague é um equívoco. Eu não sou aquilo que faço, nem você é aquilo que faz ou aquilo que os outros dizem sobre Você, nem aquilo que possui. «Você é o amado de Deus!» (...) Certamente não é fácil ouvir essa voz em um mundo cheio de vozes que gritam ‘Você não é bom; você é feio; você é imprestável; você é desprezível; você não é ninguém, a não ser que demonstre o contrário’”.

O pecado original, fonte da alienação da pessoa humana, é, portanto, um ato de poder. A pessoa ao desejar adquirir poder sobre o bem e o mal, faz uma usurpação e passa a viver uma mentira. É criatura dependente, mas toma posse de si mesma, como se não tivesse sido criada livremente por um Outro e tivesse dado origem a si mesma. Não atribui mais todo o poder a Deus, mas vive como se tivesse poder em si mesma, como se dependesse só de suas forças e inteligência para viver. Passa a viver em um supremo orgulho e grande prepotência.

Como, na verdade, a criatura humana não se basta a si mesma - a sugestão maligna convidava a querer ser como Deus, que é o único Ser que se basta a si mesmo - a criatura humana vai buscar a sua subsistência no poder sobre as outras criaturas. Isso cria um permanente estado de luta por poder na alma da pessoa humana. Um permanente estado de defesa pessoal, um conflito permanente. A primeira reação da pessoa humana após o pecado original é cobrir-se com folhas de figueira, fazer para si uma vestimenta rudimentar. Ora, a pessoa humana vivia nua antes. Isto significa um estado de transparência pessoal. Nada tinha a esconder nem defender, pois Deus era sua garantia. Ao cobrir-se, a pessoa humana sinaliza que perdeu sua transparência, passa a ser opaca, desconhecida, em seu interior por si mesma e pelas outras pessoas, e a necessidade de cobrir-se denuncia sua permanente atitude de autodefesa, a perda da percepção da vida recebida totalmente de um Outro - vida em estado de Graça - e o medo permanente de ver a sua própria realidade, de encarar a sua alienação. Por isso, a segunda atitude da pessoa humana após o pecado original é fugir de Deus. A pessoa humana resiste a voltar à verdade do seu ser. Tornou-se escrava de sua alienação, escrava daquele que sugeriu seu pecado, do demônio, e do seu próprio pecado (cf. Jo 8,34). Não poderá libertar-se por si mesma, se não receber um Redentor que a liberte.

As condenações do pecado original em Gn 14.16-24 não devem ser vistas como ações destrutivas de Deus em relação à obra da Criação como que para castigar a pessoa humana que criara. Devem ser interpretadas como descrição da nova situação da pessoa humana após o pecado, descrição das conseqüências do pecado, que por si mesmo já condena a pessoa humana. A idéia de um deus castigador, que destrói o que criou para prejudicar ainda mais a pessoa humana que pecou é antropomórfica - a pessoa humana quando exerce o poder, age contra aquela que vai contra o seu poder - e não resiste ao exame do Deus que Jesus revela em seu Evangelho.

A pessoa humana é corpórea, ainda que a sua pessoa transcenda o seu corpo, pelo seu elemento espiritual. Com a perda da percepção da graça de Deus que a sustenta, a pessoa sente-se dependente só de si mesma, e na sua impotência começa a temer a morte. Como a morte é a destruição do seu corpo - não da sua pessoa - aparece uma fratura interna na pessoa humana. O corpo luta para viver e faz a vontade da pessoa reagir de forma conflituosa com o seu elemento espiritual, munido de razão. Aparece o conflito entre o espírito e a carne, grave divisão interna da pessoa humana, que inutiliza muito do que a sua razão ainda conserva da percepção da verdade. Este é um dos temas centrais da vida moral e espiritual cristã. Não basta que a razão seja iluminada pela verdade, se a pessoa não for libertada do medo da morte, da dor, do sofrimento, da solidão, da ingratidão, da injustiça e de todas as manifestações morais e físicas da morte. E só o acolhimento do Espírito de Deus liberta a pessoa desses medos.

“14Porquanto os filhos participam da mesma natureza, da mesma carne e do sangue, também ele participou, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão” (Hb 2,14-15).

“12Por conseguinte, a lei é santa e o mandamento é santo, e justo, e bom... 13Então o que é bom tornou-se causa de morte para mim? De certo que não. Foi o pecado que, para se mostrar realmente pecado, acarretou para mim a morte por meio do que é bom, a fim de que, pelo mandamento, o pecado se fizesse excessivamente pecaminoso. 14Sabemos, de fato, que a lei é espiritual, mas eu sou carnal, vendido ao pecado. 15Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. 17Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. 19Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. 22Deleito-me na lei de Deus, no íntimo do meu ser. 23Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. 24Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?...

25Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor! 26Assim, pois, de um lado, pelo meu espírito, sou submisso à lei de Deus; de outro lado, por minha carne, sou escravo da lei do pecado” (Rm 7,12-26) .

“5Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. 6O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito. 7Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo. 8O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,5-8).

63O espírito é que vivifica, a carne de nada serve. As palavras que vos tenho dito são espírito e vida” (Jo 6,63).

Com a luta contra a morte aparece na pessoa humana a busca de segurança. Essa segurança que não preocupava a pessoa antes da queda original, pois ela descansava plenamente em sua fonte, que é Deus, ela vai buscar no poder sobre as criaturas, poder que o próprio Deus lhe deu (cf. Gn 1,28). A diferença é que antes a pessoa era chamada a ser senhora das criaturas como sinal visível, sacramento, de Deus, e agora ela busca um poder próprio sobre elas e não um poder sacramental e delegado. Usará as suas capacidades divinas, a razão e a vontade, para ter um poder próprio sobre as criaturas, esperando nelas uma segurança, mas nenhum poder fora de Deus lhe poderá garantir a vida plena nem uma vida que permaneça sempre. Isto também é um sinal da alienação dos homens: crer que podem alcançar vida e glória plenas por meio do poder sobre as criaturas.

3. Análise das condenações do pecado original - descrição da situação da humanidade

Analisemos então as condenações como se encontram em Gn 3,14.16-24.

Em Gn 3,14 há a condenação da serpente. Obviamente não pode ser a condenação do animal irracional, nem do diabo, criatura espiritual, mas referindo à forma do corpo desse animal descreve a situação da pessoa humana escrava do pecado original. Arrasta-se sobre o seu ventre, ou seja, será condicionado pelas necessidades corporais, em particular a alimentação. Como já vimos, a resposta de Jesus à primeira tentação no deserto foi uma rejeição dessa escravidão: “Não só de pão vive o homem” (cf. Dt 8,3; Mt 4,4; Lc 4,4). E come pó todos os dias, isto é, seus meios são pó, são ineficazes para a realização de seus desejos e reais necessidades.

Em Gn 3,16 há a previsão das dores do parto. Ao invés de acreditar que Deus inventou as dores do parto natural nesse momento para castigar ainda mais a pessoa já castigada pelas conseqüências de seu pecado, preferimos ver na mulher, aqui, todo gênero humano, que, já vimos tem uma característica feminina nas suas relações com Deus, que agora só com muitas dores poderá gerar vida, dar frutos de vida que agradem a Deus. Por essa razão o Salvador, que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (cf. Jo 10,10) será “o homem das dores” (cf. Is 53,3; Mt 8,17; Lc 24,26; Gl 4,19; Hb 2,10; Ap 12,2). Há também a previsão de que a mulher terá desejos de unir-se ao homem e isso servirá para o homem dominá-la. Aqui está a denúncia de que com a perda da percepção da graça de Deus a criatura humana sofrerá carências em relação às criaturas e que essas carências serão ocasiões de dominação por parte daqueles que puderem oferecer lenitivo a essas carências. As carências podem ser sexuais, como parece aludir essa passagem, mas podem ser de muitas outras naturezas. O mundo moderno, por exemplo, cria uma série de carências dos produtos industriais que inventa e torna as pessoas escravas do consumismo. Uma das ações do Espírito Santo nas pessoas redimidas será exatamente libertá-las de suas carências para torná-las livres.

Em Gn 3,17-18, não devemos crer que Deus tenha retirado propositalmente a fertilidade do solo para punir sua criatura humana, mas que, dada a insegurança da pessoa humana que nunca estará tranqüila por causa de sua morte, sempre os bens que tira da terra parecerão finitos e insuficientes a ela que foi criada para ser saciada apenas com o Infinito, com Deus. Em Gn 3,19 temos um resumo das condenações e a declaração de inutilidade das ações da pessoa humana sem a graça de Deus. A sua vida se tornará uma luta inglória para viver no corpo, segundo a carne, mas a morte corporal prevalecerá (cf. Jo 15,5c; Mt 12,30; Lc 11,23). É preciso ressaltar esse caráter de luta que caracteriza a vida da pessoa decaída, que se contrapõe à paz da pessoa redimida por Jesus Cristo. A vida na graça de Deus pode ser uma vida de trabalhos, mas não será de luta movida por nenhuma necessidade, nenhum medo, nenhum pavor. A obra dos redimidos é, antes de ser uma ação deles, uma ação de Deus. Daqui que, mesmo convidando à cruz libertadora (cf. Mt 10,38; 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23; 14,27), Jesus anuncia que o fardo de quem O segue é mais leve (cf. Mt 11,28) do que a luta dos que querem ganhar a vida neste mundo.

Gn 3,21, afirmando que Deus vestiu as pessoas humanas, Ele que as tinha criado nuas, na transparência da graça de Deus, quer significar que Deus reconhece uma nova economia da criatura humana decaída. Essa nova economia é o reino de César, que Jesus reconhecerá (Mt 22,21; Mc 12,17; Lc 20,25; Jo 19,10-11; Rm 13,1-7; 1Tm 2,1-3; Tt 3,1; 1Pd 2,13), mas que prevalece legitimamente apenas sob o Reino de Deus, e apenas nos limites deste mundo mortal. Com o reino de César surge uma “justiça deste mundo”, legítima nos limites deste mundo mortal, e que nunca deve ser confundida com a justiça do Reino dos Céus, de natureza muito diferente. Quando o Novo Testamento, especialmente os Evangelhos se referem à justiça, é sempre a justiça do Reino dos Céus, e não a justiça do reino de César.

Gn 3,22-24 afirma, em linguagem simbólica, que a pessoa humana não terá nunca capacidade de viver eternamente por seus próprios esforços, mas somente com a graça de Deus que lhe dará o Redentor, Jesus Cristo, e o Santificador, o Espírito.

A história das condenações da pessoa humana continua nos capítulos subseqüentes do Livro do Gênesis, até o capítulo 11. Comentemos os aspectos mais salientes.

Em Gn 4 temos a famosa história de Caim e Abel, com o primeiro homicídio, um fratricídio. Deus dá um dom a Abel - a preferência de Deus pelos menores, pelos mais fracos, percorrerá toda a tradição bíblica - e não o dá igual a Caim. Hb 11,4; 1Jo 3,12 e Jd 1,11 colocam no mérito humano a causa dessa diferença de tratamento que Deus estabelece entre Caim e Abel. Mas referem-se a um fato que ocorreu depois da ação divina, o assassinato de Abel. Numa perspectiva evangélica, em que Deus é livre de distribuir seus dons como quiser (cf. Mt 20,15; 25,15) não julgamos Caim por antecipação, apenas Deus quis dar dons diferentes a Caim e a Abel. A pessoa de Caim e tudo o que ele tinha era graça de Deus. Ao abençoar Abel, Deus nada retirara de tudo o que tinha dado a Caim. Caim, porém, sob o efeito do pecado original está em permanente luta para prevalecer e é-lhe insuportável a comparação com seu irmão, abençoado por Deus. Na sua insegurança, provocada pela comparação, não resiste à tentação, mesmo advertido por Deus (cf. Gn 4,6-7) e mata seu irmão Abel. Na parábola dos trabalhadores da vinha (Mt 20,1-16) é também a comparação que provoca a revolta dos primeiros trabalhadores contra o dono da vinha. Na justiça de César, na economia do homem decaído, temos que todos devem ter direitos iguais e a justiça só se realiza na igualdade. Mas Deus, o Criador de tudo não tem que se submeter a César e continua sempre livre de dispensar suas graças a quem quer, de escolher Jacó e rejeitar Esaú (cf. Ml 1,3; Rm 9,13) e assim por diante. A volta do caminho de alienação em que fomos colocados pelo pecado original exige esse encontro consigo mesmo como criatura de Deus, reconhecendo-se como única nos dons que Deus fez nos fez e as comparações com os dons do próximo só reforça essa alienação. O princípio de ação de graças exclui toda comparação com os irmãos, para reconhecermos o nosso caminho pessoal para Deus e o princípio de unidade nos diz que na diferença de dons entre uma pessoa e outra, todos os dons, mesmo dados a esta ou àquela pessoa são para o bem da comunidade humana em seu conjunto. Caim, por estes princípios deveria se alegrar com as bênçãos dadas ao seu irmão Abel e fazer unidade espiritual e pessoal com ele, para participar de sua bênção.

Ainda em Gn 4-6 pode-se observar:

a) a crescente vingança presente entre os homens. Caim será vingado sete vezes. Já Lamec, seu descendente, será vingado setenta e sete vezes. As causas de homicídio também se diversificam. No caso de Caim foi a inveja; no caso de Lamec foi a violência, matando covardemente o mais fraco, um menino (cf. Gn 4,15.23-24).

b) a lei natural começa a ser desconhecida; Lamec toma duas mulheres, não podendo dar-se inteiro a nenhuma delas.

c) o desenvolvimento das cidades e das técnicas e artes humanas é atribuído aos descendentes de Caim, chamados “filhos dos homens” (cf. Gn 4,17.20-22) ; a pessoa humana, no pecado, tende a se apoiar nas obras de suas mãos que se tornam para ela instrumentos de poder. Das obras dos “filhos de Deus”, descendentes de Set, só se diz que a partir da descendência de Set, após o nascimento de seu filho Enós, o nome do Senhor passou a ser invocado (cf. Gn 4,26). Os “filhos dos homens” fazem recurso às suas criações. Os “filhos de Deus” invocam o nome do Senhor.

d) a humanidade é dividida entre os “filhos de Deus”, descendentes de Set, e os “filhos dos homens”, descendentes de Caim. Mas a concupiscência da carne faz os “filhos de Deus” se misturarem com os “filhos dos homens” e isso leva à corrupção de toda a humanidade (cf. Gn 6,1-5). Jesus faz uma nítida distinção de seus discípulos, que “não são do mundo” e os outros, que “são do mundo” (cf. Mt 13,38; Lc 12,30; 16,8; Jo 7,7; 8,23; 10,3-5.27; 14,17.19; 15,18-19; 17,14.16; 18,36; 1Jo 2,15; 3,1; 4,5). Embora os seguidores de Jesus estejam no mundo - onde o joio foi misturado com o trigo - não são deste mundo e não podem entrar em acordo com ele. A identidade do cristão exige que seja sinal de contradição (cf. Lc 2,34) como a luz e as trevas se contradizem. A mistura dos “filhos do Reino” com “os do mundo” sempre corrompe os “filhos do Reino”, como já está em Gn 6. A vida moral cristã depende de uma forte consciência de identidade cristã. Assistimos à corrupção seja do clero, seja do laicato católico, pela mistura com o espírito do mundo nos tempos atuais, influenciados por uma mentalidade igualitária, que rejeita as diferenças. Essa é, certamente, uma das maiores fontes de corrupção da Igreja em nossos tempos e em todos os tempos.

e) Em aparente contradição com o que acabamos de afirmar temos em Gn 6,6-9,17 a história do dilúvio universal. Além de todas as interpretações tipológicas em relação ao batismo e à Igreja que essa passagem bíblica já recebeu, podemos perceber aí também uma separação entre “bons” e “maus”. “Bons” são Noé e sua família. Maus são todos os demais. Deus elimina os maus da face da terra (cf. Sl 20,11; 33,17; 100,8; 103,35) mas, afinal de contas nada muda na face da terra (cf. Gn 9,25; 11,4), e o pecado e a corrupção continuam. Este é um sinal de que a humanidade é una na condenação, e a justiça dos pais não passa automaticamente para os filhos. Não se pode culpar uma parte da humanidade pelos males e inocentar a outra. Também aqui se verifica o princípio da unidade de toda a humanidade. Todos são uma só vida, solidários no bem e no mal. Esta mentira também é apregoada pelo mundo atual quando se acusa os nazistas alemães de todos os males, sem querer ver que a sociedade que os eliminou é abortista, manipuladora da vida humana, racista, cruel e também condena à morte milhares de pessoas.

Os seguidores de Jesus são da mesma carne e sangue da humanidade pecadora e não devem considerar-se superiores aos demais pecadores. O que os faz distintos é a fé, a esperança e a caridade (cf. Jo 13,35) e o que os sustenta é a graça divina. A abertura a esta graça deverá fazê-los produzir os frutos do Reino, mas a glória é de Deus e não dos “filhos do reino” (cf. Lc 17,10). Não há, portanto contradição entre as reflexões expostas em (d) e (e).

f) Gn 11,1-9 traz a famosa história da Torre de Babel. Colocada no final da história da corrupção da humanidade (Gn 3-11) é a parábola do orgulho humano. Os homens querem construir uma cidade (cf. reflexão (c) acima) com uma torre que alcance o céu. É o desejo da salvação pelas técnicas e artes humanas, o homem salvando-se a si mesmo, ignorando Deus. A confusão das línguas se impõe, destruindo a unidade, pois só a ação do Espírito Divino que faz a pessoa esvaziar-se de si mesma e dar sua vida pelas outras pessoas é que pode realizar a unidade. No orgulho, as pessoas sempre se dividirão e dispersarão. Os construtores da Torre de Babel queriam não ser dispersos, mas numa perspectiva orgulhosa - ficarem célebres aos olhos das pessoas humanas, aos seus próprios olhos, sendo seus próprios juízes. Na economia da salvação a única grandeza que vale é aquela que o é diante de Deus (cf. Lc 16,19-31; 18,9-14; 1Cor 2,15; 4,3). O resto é vaidade. O mundo atual, com o orgulho da ciência e da tecnologia desenvolvidas principalmente nos últimos três séculos tornou-se extremamente orgulhoso e confiante nos recursos da inteligência humana, tornando-se praticamente ateu. A confusão das línguas é visível em nosso tempo. Estamos vivendo dentro do mito da Torre de Babel. Mito? Ou fato? Jo 15,5: “Sem Mim, nada podeis fazer”. Quando nos convenceremos disto?

4. O proto-evangelho

Inserido entre as condenações do pecado original, temos o chamado proto-evangelho, primeira boa nova de salvação.

15Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu ferirás o calcanhar (Gn 3,15).”

Podemos perguntar: se o pecado foi do homem e da mulher, por que a inimizade é estabelecida entre o demônio e a “mulher” e não com o homem também. Vemos aqui um símbolo. A pessoa humana pecou porque aceitou a sugestão de “ser como Deus” (cf. Gn 3,5). Vimos que, na semelhança divina da distinção dos sexos, o masculino tem um caráter divino, isto é, é fecundador, e o feminino tem um caráter terreno, é fecundado. Então a humanidade, no pecado original, rejeitou a sua característica feminina, a sua relação com Deus como fonte de sua vida, e privilegiou sua própria característica masculina, que a assemelha à potência divina, voltando-se para a terra, esperando alcançar a vida por dominá-la. Então, quando Deus diz que coloca inimizade entre o demônio e a mulher, esta inimizade existe apenas enquanto a humanidade aceita sua característica feminina e espera de Deus a fecundação - o Espírito - que lhe dará vida. Não sendo assim, a humanidade não é inimiga do demônio, aliás, é sua amiga e se faz até filha dele (cf. Jo 8,44). Maria Imaculada é o ícone dessa humanidade feminina, que se coloca sob a dependência exclusiva de Deus, a “serva do senhor” (cf. Lc 1,38), a “cheia de graça” (cf. Lc 1,28), pronta para ser fecundada por ele, a ponto de gerar em seu ventre o Filho de Deus Encarnado. A Igreja também é esta mulher que gera os membros de Jesus Cristo (cf. 1Cor 4,15; Ef 2,10; Fm 1,10). A picada no calcanhar quer mostrar que a auto-entrega da pessoa a Deus nunca é isenta de tentações. A humanidade, na relação do Filho com o Pai, este Filho que se deixa ungir pelo Pai e conduzir pelo Espírito do Pai - isto é, em sua característica feminina deixa-se fecundar pelo Pai - “esmagará a cabeça da serpente”. Diz Jesus preparando Sua Paixão:

31Agora é o juízo deste mundo; agora será lançado fora o príncipe deste mundo (Jo 12,31; cf. Jo 14,30; 16,11).

Cremos que a nossa resposta é coerente aos questionamentos e também à realidade de que muitas pessoas se comportam não como inimigas, mas como servas do demônio.

5. A justiça divina e a justiça humana

Já vimos que após o pecado original, Deus mesmo estabelece uma economia terrena da humanidade decaída e estabelece o que depois pode ser chamado “o reino de César”, isto é, o poder temporal das autoridades humanas sobre as sociedades. Ao estabelecer esse poder, é gerada uma justiça humana, muito distinta da justiça do Reino de Deus. A confusão ou identificação dessas duas justiças leva a muitos equívocos.

O serviço de César, para o qual é investido de autoridade é principalmente a defesa e a proteção dos bons contra o abuso dos maus. Tradicionalmente se diz que é a manutenção da paz social, que é identificada com a “tranqüilidade da ordem”. As duas definições coincidem. O estabelecimento da ordem se faz pelo estabelecimento de leis, regras de convivência, e a conseqüente punição daqueles que infringem as leis. A relação entre a gravidade das infrações e a pena aplicada varia muito, segundo os diversos sistemas de exercício de poder. Já vimos como, no início, aumentou a sede de vingança dos homens. Se Caim seria vingado sete vezes (cf. Gn 4,15), Lamec já seria vingado setenta e sete vezes (cf. Gn 4,24). A lei do talião, estabelecendo a proporção “olho por olho, dente por dente” (cf. Ex 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21), embora a nós pareça dura demais, em sua época foi uma regulação da vontade de vingar desproporcionalmente. Seja qual for o sistema, é preciso, na justiça de César, punir e cercear a liberdade daquele que já demonstrou seus maus intentos, em vista da defesa dos bons e da manutenção da ordem das relações sociais. Isto porque os bens da terra, que sustentam a vida das pessoas são de ordem finita e o que é tirado de alguém, deve, na medida do possível ser devolvido, a pessoa deve ser ressarcida de seus prejuízos. Na economia da humanidade decaída a segurança da vida das pessoas está na posse dos bens da terra, e esses bens são finitos.

O Antigo Testamento, embora conste das Sagradas Escrituras veneradas pelos cristãos, não constitui a religião dos cristãos. A religião dos cristãos não se baseia na Antiga Aliança (=Antigo Testamento), mas na Nova e Eterna Aliança (cf. Mt 26,28; Lc 22,20; 1Cor 11,25; 2Cor 3,6; Gl 4,24-31; Hb 7,22). O Antigo Testamento, estabelecido antes do anúncio do Reino de Deus, refere-se constantemente à justiça dos bens deste mundo. Por isso é muito utilizado seja pela Teologia da Libertação, que recebe sua força da indignação diante das injustiças sociais de nosso tempo, como pelas seitas pentecostais e sua Teologia da Prosperidade, que também não aceita a Nova Aliança e visa aos bens deste mundo.

Jesus Cristo veio estabelecer entre os homens uma Nova Aliança com Deus, o Reino de Deus, que é baseada não nos bens finitos deste mundo, que podem quando muito sustentar uma vida mortal, mas no Dom Infinito de Deus que dá uma Vida Infinita e Eterna. É essa Aliança que estamos estudando. E nossa busca é de uma Teologia Moral que se baseie estritamente na Nova Aliança. A nossa rejeição a algumas outras propostas de textos de Teologia Moral é que esses textos se baseiam na economia dos bens deste mundo e acabam por desconhecer e mesmo anular o anúncio da Nova Aliança, como uma palavra para “pessoas muito santas”, mas não a substância mesma da vida segundo o Espírito.

A justiça do Reino de César baseia-se no fato das pessoas serem dependentes dos bens deste mundo para viver a vida mortal e terem direito ao desfrute desses bens. A vida mortal se nutre dos bens deste mundo. E a pessoa tem direito à vida. Então deve-se justiça às pessoas, respeitando seus bens materiais e morais.

A Justiça do Reino dos Céus baseia-se no fato de que toda vida depende única e exclusivamente de Deus, que é o Criador e o Mantenedor da existência das suas criaturas, e dá vida além da morte, tornando a pessoa humana livre da dependência aos bens deste mundo. Então a Justiça do Reino de Deus é considerar Deus na Sua prerrogativa de Fonte de Vida e esperar d’Ele a graça infinita, a doação de seus bens em quantidade infinita. Ora, o infinito não pode ser contido neste mundo finito. Daí a esperança dos cristãos ter de ser, necessariamente, de um dom transcendente, não imanente.

Quando a pessoa não perdoa um prejuízo finito que seu próximo lhe impôs, está colocando-se como necessitada desse bem finito, desconhecendo a Fonte infinita de bens que é Deus. Por isso, embora seja dever da autoridade civil ressarcir na medida do possível a pessoa prejudicada, no que tange ao Reino de Deus cabe à pessoa prejudicada perdoar a que a prejudicou, esperando na Fonte infinita de bens que é Deus e considerar que o bem que lhe foi tirado era graça de Deus e não posse inalienável sua. Se não faz assim, pratica uma injustiça para com Deus, não esperando em sua bondade e sua Infinitude.

Entre os atos de respeito às autoridades civis que a Nova Aliança pede, está então o de respeitar sua natureza própria e não tentar fazer justiça com as próprias mãos. Esperar a administração da justiça daquele que recebeu de Deus a missão de exercer a justiça humana (cf. Jo 19,11). E na sua liberdade, agir como “filho do Reino de Deus” exercendo a justiça do Reino de Deus, que é considerar tudo como graça de Deus e Deus como Fonte Infinita da qual todo o bem se pode esperar.

Por isso Jesus substitui a justiça dos bens finitos, simbolizada pela lei do talião, pela justiça do Reino de Deus:

38Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. 39Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. 40Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa. 41Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. 42Dá a quem te pede e não te desvies daquele que te quer pedir emprestado.

43Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. 44Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem. 45Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos. 46Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? 47Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?

48Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,38-48).

Às vezes as pessoas não entendem como Deus é Justo e ao mesmo tempo é Misericordioso. Pensam que às vezes Ele age com justiça e outras vezes com misericórdia. Há até orações pedindo a Deus forças para acolher a Sua Misericórdia enquanto é tempo, para depois não ter que enfrentar Sua Justiça. Outras pessoas invocam a Justiça de Deus para realizar suas esperanças de vingança contra seus inimigos. Todas essas concepções baseiam-se em uma confusão entre o agir de Deus e administração da justiça neste mundo. Deus é Amor Infinito, é eternamente auto-doação de Si mesmo, sempre desejoso de transmitir Sua Vida divina. Só encontra obstáculo na liberdade que deu às suas criaturas racionais e livres, que não acolhem essa auto-doação divina. Ser justo para com Deus é abrir-se para receber essa auto-doação permanente de Amor e Vida. Então não há a menor contradição entre a Justiça e a Misericórdia de Deus. A Justiça de Deus é a Sua Misericórdia. Toda ofensa a Deus é apagada instantaneamente quando alguém se abre à acolhida do Dom da Vida que brota de Deus.

39Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós! 40Mas o outro o repreendeu: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? 41Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum. 42E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino! 43Jesus respondeu-lhe: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 39-43).

Não há a menor punição ao segundo ladrão. Ele passa por um processo espiritual. Reconhece o fracasso de suas buscas de felicidade por meio da aquisição - lícita ou não - de bens da terra (“recebemos o que mereceram nossos crimes”), e se coloca na dependência absoluta da misericórdia divina. Esta não se faz esperar. No mesmo dia o ex-ladrão está no Paraíso. E as vítimas do ladrão? Não são ressarcidas por uma condenação divina, mesmo temporária ao seu agressor? Não. A punição foi só a de César, a crucifixão. Da parte de Deus não há nenhuma punição, só salvação, àquele que para ela se abriu. E o primeiro ladrão, a quem nada se prometeu? Deus o puniu? Não. Teria o mesmo destino do segundo se tivesse a mesma atitude. Mas não se abriu à recepção do amor de Deus, esperando de Jesus não o Reino Eterno, o que Jesus quisesse lhe dar, mas impondo a Jesus a sua vontade, cobrando d’Ele o poder neste mundo, como os que debaixo da cruz desafiavam Jesus (cf. Lc 23,35-37). Ficou na mesma lógica que o levou a se tornar ladrão: a busca de poder neste mundo para viver a partir das criaturas, pelo poder sobre elas. Não esperou nada de Deus, não se abriu à auto-doação divina, nada pode receber. Não foi Deus que o condenou, mas ele mesmo, o seu pecado mesmo, o seu orgulho.

É preciso distinguir e colocar em dois planos bem diferentes a justiça do Reino de Deus e a justiça dos magistrados terrenos. São de naturezas diferentes e sua confusão acaba por ignorar a Nova Aliança.

6. O Reino de Deus não é deste mundo

Como conseqüência da substituição da justiça do Reino de Deus, na consciência de muitos, até teólogos, pela justiça dos bens finitos deste mundo, e a apelação, para isto, aos profetas do Antigo Testamento, substituiu-se a noção correta, escatológica, do Reino de Deus, pregado por Jesus, por uma noção terrena. Figurou-se nas últimas décadas uma imagem do Reino de Deus como uma sociedade justa e fraterna, plena de solidariedade, construída pelas pessoas de boa-vontade. Apareceu, inclusive, a expressão, que não tem respaldo nas Escrituras nem nos Padres da Igreja, “construir o Reino de Deus”, que chega a estar presente até em prefácios e orações eucarísticas aprovadas para a Igreja no Brasil.

“Deles recebemos o exemplo
Que nos estimula na caridade,
E a intercessão fraterna,
Que nos ajuda a trabalhar
pela realização do vosso Reino
”.

(Prefácio dos Santos II)

“Neles, chamais novamente os fiéis à santidade original
e a experimentar,
já aqui na terra, construindo o vosso Reino,
os dons reservados para o céu”.

(Prefácio das santas Virgens e Religiosos)

“E a nós, que agora estamos reunidos
e somos povo santo e pecador,
daí força para construirmos juntos

O vosso reino que também é nosso”.

(Oração Eucarística V)

Vossa Igreja seja testemunha viva
da verdade e da liberdade,
da justiça e da paz,

para que toda a humanidade

se abra à esperança de um mundo novo.

Ajudai-nos a criar um mundo novo!”

(Oração Eucarística VI-D)

Esta expressão é, obviamente, herética. O Reino de Deus não é construído por mãos humanas, assim como a justiça das sociedades humanas não é a Justiça do Reino de Deus. Também não é a criatura que cria um mundo novo, pois tudo é graça de Deus. Uma sociedade terrena é sempre sujeita ao pecado e a fé não nos ilude com sonhos utópicos. Sabemos que as pessoas serão tentadas ao mal e pecarão até ao fim do mundo. A esperança de uma futura sociedade estavelmente justa e fraterna não tem respaldo nas Escrituras, especialmente os Evangelhos, que apontam para a Igreja sempre muita perseguição que aumentam ainda mais nos últimos tempos.

3Indo ele assentar-se no monte das Oliveiras, achegaram-se os discípulos e, estando a sós com ele, perguntaram-lhe: Quando acontecerá isto? E qual será o sinal de tua volta e do fim do mundo? 4Respondeu-lhes Jesus: Cuidai que ninguém vos seduza. 5Muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu o Cristo. E seduzirão a muitos. 6Ouvireis falar de guerras e de rumores de guerra. Atenção: que isso não vos perturbe, porque é preciso que isso aconteça. Mas ainda não será o fim. 7Levantar-se-á nação contra nação, reino contra reino, e haverá fome, peste e grandes desgraças em diversos lugares. 8Tudo isto será apenas o início das dores.

9Então sereis entregues aos tormentos, matar-vos-ão e sereis por minha causa objeto de ódio para todas as nações. 10Muitos sucumbirão, trair-se-ão mutuamente e mutuamente se odiarão. 11Levantar-se-ão muitos falsos profetas e seduzirão a muitos. 12E, ante o progresso crescente da iniqüidade, a caridade de muitos esfriará. 13Entretanto, aquele que perseverar até o fim será salvo. 14Este Evangelho do Reino será pregado pelo mundo inteiro para servir de testemunho a todas as nações, e então chegará o fim” (Mt 24,3-14).

A esperança de uma sociedade perfeita no futuro faz parte da mentalidade orgulhosa da humanidade, especialmente no Ocidente, condicionada pelo extraordinário progresso técnico dos últimos quatro séculos, que gerou uma filosofia evolucionista, onde tudo tende a melhorar e aperfeiçoar-se pela própria força do tempo, filosofia que obviamente não tem provas na realidade. A humanidade pode regredir moralmente, e em muitos aspectos observa-se isso em nossos dias. O pecado existirá até o fim do mundo e a ação do demônio entre os homens também. Se uma geração consegue um relativo progresso moral, isto não significa que as gerações seguintes manterão esse progresso. Aliás, uma regra oposta é que se impõe, segundo a história. Um progresso moral em uma sociedade tende a criar um progresso material também. Com o tempo, a abundancia material, com a fraqueza da carne humana, leva a um relaxamento dos costumes que vai deteriorando moralmente aquela sociedade. Santo Agostinho, diante da acusação de muitos de que foi a difusão do Cristianismo que causou a queda do Império Romano, mostra, n’“A Cidade de Deus”, que Roma cresceu devido à prática das virtudes em seus primeiros tempos. Essa prática levou a um crescente poder, com vitórias e dominações sobre outros povos. Nessa abundancia, provinda da exploração de outros povos, os romanos caíram cada vez mais nos vícios e isso levou à queda de seu poderoso império. A ilusão de um progresso moral inexorável e de um Reino de Deus construído pela pessoa humana na terra desconhece a realidade do demônio, do pecado original, e da luta do espírito contra a carne, luta que se instaurou no íntimo da pessoa humana a partir do pecado original. É verdade que, influenciados por uma filosofia iluminista, que vê a pessoa humana como o “bon sauvage” de Rousseau, muitos negam, hereticamente, em nossos dias, a realidade da existência do demônio e do pecado original. O “Catecismo da Igreja Católica”, nn. 388-389, afirma categoricamente que não se pode negar a existência do pecado original sem atentar também contra a obra redentora de Jesus Cristo. Ele deixou claro:

36Respondeu Jesus: O meu Reino não é deste mundo. Se o meu Reino fosse deste mundo, os meus súditos certamente teriam pelejado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36).

O Reino de Cristo não é deste mundo porque se realiza na imortalidade e na divinização da pessoa humana. Não é o Reino do poder que peleja e se impõe. É o Reino onde se domina sobre tudo porque não se é dependente de nada. Como já vimos Deus reconheceu uma “economia da pessoa humana decaída pelo pecado”. Essa economia é a da dependência da criatura dos bens finitos deste mundo, para viver. Isso gera a idéia de poder como domínio sobre as coisas necessárias para manter a vida. Mas se as coisas são necessárias, não só se as domina, mas também se é dominado por elas. No Reino de Cristo, que não é nem pode ser deste mundo, domina-se sobre tudo porque não se tem necessidade de nada. Usa-se de tudo com plena liberdade e nenhuma carência. Isso é antecipado nesta vida por aquelas pessoas libertadas que não considerando nada como indispensável, de nada são escravos, nada tem mas tudo possuem, porque tudo podem dar, a nada se apegam.

Quarta parte: A Redenção, Obra de Jesus Cristo e fonte da Moral Cristã

Interessa muito à Teologia Moral Cristã compreender a lógica verdadeira da relação entre a morte de Jesus Cristo na Cruz e a salvação dos que n’Ele crêem. Isto implica entender a morte de Jesus e o que significa crer em Jesus Cristo.

1. A idéia pagã de “sacrifício”.

Uma idéia muito recorrente a respeito da morte de Jesus Cristo é a de que Jesus teria oferecido ao Pai, com o seu sofrimento, um sacrifício expiador, em vista de "pagar" pelos pecados das pessoas humanas. Algo como uma compensação, uma multa, que aplacaria a justiça divina ofendida (e, de certa maneira, prejudicada) pelos pecados humanos. Este modo de pensar é extremamente antropomórfico. Confunde a justiça divina com a justiça humana. Como se Deus perdesse alguma coisa com pecados dos homens e a recuperasse com o castigo e o sofrimento de alguém.

A idéia de sacrifício é muito co-natural à concepção de religião. Isto vem dos costumes da pessoa decaída pelo pecado. Quando uma tribo primitiva mais forte vencia outra, a saqueava, estuprava ou raptava suas mulheres e fazia outros atos de exploração e destruição. Se a tribo vencida se reconstituía com o tempo, ficava submissa à tribo mais forte. Para evitar novas destruições a tribo dominante impunha tributos, em forma de bens agrícolas, ouro e outras riquezas, animais, mulheres e até homens para aumentar o efetivo do exército ou ser escravo da tribo dominante. Caso não pagasse o tributo, a tribo dominante vinha tomá-lo à força, com novas violências. Ora, o tributo aparecia como um "amansador" da violência do mais forte. Era natural, para as pessoas primitivas associar entidades míticas às forças da natureza e, diante das violências das forças naturais, como relâmpagos, inundações pelas cheias dos rios ou pelas chuvas etc. oferecer tributos a essas entidades imaginárias para acalmá-las, torná-las favoráveis ou propícias. Assim surgiu o costume de oferecer sacrifícios aos "deuses", para “amansá-los”, agradá-los, e obter favores e benefícios. A pessoa humana decaída, carente das criaturas para manter sua vida, criou seus "deuses" à sua imagem e semelhança, e lhes ofereceu sacrifícios. Estes sentimentos e costumes arraigaram-se tão profundamente na alma humana que podem ser observados até hoje e até muitos cristãos não chegaram a compreender que o Deus verdadeiro não se encaixa nessa imagem humana dos “deuses”.

2. A evolução da idéia de “sacrifícios” no Antigo Testamento

No Antigo Testamento, Deus, ao se revelar, parte da concepção dos “deuses” criados à imagem e semelhança da pessoa humana e vai paulatinamente purificando essa concepção até à plenitude de Sua auto-Revelação em Jesus Cristo, o Filho de Deus: “Quem Me vê, vê o Pai” (Jo 14,9).

Antes do dilúvio Deus “se arrepende” de ter criado a pessoa humana (cf. Gn 6,6) num claro antropomorfismo. Se Deus tudo sabe, como pode “se arrepender”, admitir que errou?

Abraão, em Gn 22,2 cogita matar seu filho Isaac para o oferecer a Deus e esse sacrifício é apresentado como exigido pelo próprio Deus; em Jz 11,30-39, Jefté sacrifica, de fato, sua filha, para pagar um voto a Deus.

Moisés estabelece uma religião em que se proscreve os sacrifícios humanos dirigidos ao culto direto de Deus, mas ainda há uma série enorme de sacrifícios de animais, para diversas finalidades humanas e uma série também grande de condenações à morte - sacrifícios de expiação? - para os que ousam infringir as ordens divinas.

De início há uma idéia politeísta, sendo Iahweh o Deus de Israel, mas admitindo que os deuses dos outros povos também existiam. Só aos poucos cresce a convicção monoteísta de que há um só Deus verdadeiro.

Com o passar dos séculos os profetas vão denunciando os costumes dos sacerdotes como insuficientes. Deus é o “dono” de todos os animais do mundo. De que lhe servem os sacrifícios de animais? O que Ele quer é justiça e misericórdia. O processo em direção ao Evangelho vai se aproximando mais da concepção evangélica de sacrifício.

“... porque eu quero o amor mais que os sacrifícios, e o conhecimento de Deus mais que os holocaustos” (Os 6,6).

21Aborreço vossas festas; elas me desgostam; não sinto gosto algum em vossos cultos; 22quando me ofereceis holocaustos e ofertas, não encontro neles prazer algum, e não faço caso de vossos sacrifícios e animais cevados. 23Longe de mim o ruído de vossos cânticos, não quero mais ouvir a música de vossas harpas; 24mas, antes, que jorre a eqüidade como uma fonte e a justiça como torrente que não seca” (Am 5,21-24).

10Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma; escuta a lição de nosso Deus, povo de Gomorra: 11De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas?, diz o Senhor. Já estou farto de holocaustos de cordeiros e da gordura de novilhos cevados. Eu não quero sangue de touros e de bodes. 12quando vindes apresentar-vos diante de mim, quem vos reclamou isto: atropelar os meus átrios? 13De nada serve trazer oferendas; tenho horror da fumaça dos sacrifícios. As luas novas, os sábados, as reuniões de culto, não posso suportar a presença do crime na festa religiosa. 14Eu abomino as vossas luas novas e as vossas festas; elas me são molestas, estou cansado delas. 15Quando estendeis vossas mãos, eu desvio de vós os meus olhos; quando multiplicais vossas preces, não as ouço. Vossas mãos estão cheias de sangue, 16lavai-vos, purificai-vos. Tirai vossas más ações de diante de meus olhos. 17Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem. Respeitai o direito, protegei o oprimido; fazei justiça ao órfão, defendei a viúva” (Is 1,10-17).

20Que me importam o incenso de Sabá e as canas aromáticas de longínquos países? Não me agradam vossos holocaustos, nem me comprazem os sacrifícios” (Jr 6,20).

21Eis aqui o que diz o Senhor dos exércitos, o Deus de Israel: Amontoai holocaustos sobre sacrifícios, e deles comei a carne; 22porquanto não falei a vossos pais e nada lhes prescrevi a respeito de holocaustos e sacrifícios, no dia em que os fiz sair do Egito. 23Foi esta a única ordem que lhes dei: escutai minha voz: serei vosso Deus e vós sereis o meu povo; segui sempre a senda que vos indicar, a fim de que sejais felizes. 24Eles, porém, não escutaram, nem prestaram ouvidos, seguindo os maus conselhos de seus corações empedernidos; voltaram-me as costas em lugar de me apresentarem seus rostos. 25Desde o dia em que vossos pais deixaram o Egito até agora, enviei-vos todos os meus servos, os profetas. Todos os dias sem cessar os mandei. 26Eles, porém, não os escutaram, nem lhes deram atenção; endureceram a cerviz e procederam pior que os pais. 27Quando tudo isso lhes transmitires, também a ti não escutarão. Chamá-los-ás e não obterás resposta. 28Dir-lhes-ás então: Esta é a nação que não escuta a voz do Senhor, seu Deus, e não aceita suas advertências. A lealdade desapareceu, tendo sido banida de sua boca” (Jr 7,21-28).

5 ... e ergueram o lugar alto a Baal para, em honra dele, queimarem os seus filhos em holocausto. Tais coisas não as prescrevi, delas não falei e nem ao pensamento me vieram” (Jr 19,5).

Já vimos que a própria justiça que os profetas exigem no Antigo Testamento corresponde à justiça dos bens finitos deste mundo, é uma “justiça social”. Só no Novo Testamento Deus revela, em Jesus Cristo, a Justiça do Reino dos Céus, em que a pessoa humana não é mais dependente das criaturas deste mundo, mas só de Deus, em absoluta liberdade em relação aos bens que lhe garantem a vida mortal do corpo. Nesta Revelação, Deus se mostra como Amor incondicional, que não precisa de nenhuma oferta humana para ser propício e favorável às suas criaturas humanas. Deus ama até os ingratos e maus. A pessoa humana nada precisa fazer para que Deus lhe seja favorável, pois Ele o é por sua própria natureza. O Deus verdadeiro não é condicionado pela ação dos homens, mas é Fonte de Vida por sua própria natureza divina. È totalmente perfeito e não sofre perdas por causa dos pecados humanos.

Por isso não é possível interpretar a crucificação de Jesus como um “tributo” em compensação - segundo uma justiça de bens finitos - das perdas e danos causados a Deus pelos pecados humanos.

3. A idéia pagã de sacrifício está presente no cristianismo atual

É triste constatar que milhares de pessoas que se pretendem cristãs pensam assim. A teologia protestante se baseia nessa concepção. Não crêem que a pessoa humana possa viver a perfeição, para eles irremediavelmente perdida com o pecado original. Crêem que Jesus, pela Sua Paixão e Morte na Cruz carregou os castigos dos pecados que deveriam recair sobre os pecadores. Tendo Ele assim pago o nosso castigo, ao crer n’Ele, ou “aceitar Jesus como Salvador pessoal” - que equivale a admitir essa “verdade” - a pessoa não sofre mais castigo pelos seus pecados porque Jesus já o sofreu, e é assim salva, mesmo que continue pecadora, ambiciosa etc. Que deus é esse que cobra castigo pelos pecados senão um inventado pela mente humana, condicionada pela miséria que a pessoa humana vive neste mundo de bens finitos? Pode ser um Deus Infinito e ser menor que a pessoa humana que muitas vezes sabe perdoar gratuitamente, sem cobrar compensação? É evidente que esse deus é decalcado dos costumes dos poderosos deste mundo que punem, muitas vezes de forma desproporcional, os que colocam obstáculos ao seu poder. É um deus criado à imagem e semelhança do homem pecador. E o que é essa “salvação” que não salva a pessoa das suas falhas morais e da escravidão de seus apegos neste mundo, de sua dependência às criaturas inferiores a ela? Assim como vimos que a pessoa humana é escrava do pecado por medo da morte corporal, essa “salvação protestante” é mais um medo da condenação do inferno, do qual quer escapar, do que um verdadeiro amor a Deus. Como pode a pessoa estar “salva” se ainda sua alma se apóia nas criaturas e não apenas no Criador, única Fonte de Vida e existência de tudo o que existe? Que criatura pode por si mesmo dar existência a outra criatura viva? Pode-se adorar a Deus, idolatrando os bens deste mundo e as criaturas a que se apega neste mundo o coração humano decaído do estado de graça original?

Também no âmbito do catolicismo está presente a idéia pagã de sacrifício nos costumes de promessas para obter essa ou aquela graça que a sabedoria humana julga necessária, quando o Evangelho nos leva a acolher a vontade de Deus.

28Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena. 29Não se vendem dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai. 30Até os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. 31Não temais, pois! Bem mais que os pássaros valeis vós” (Mt 10,28-31; cf. Lc 12,4-7).

7Nas vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força de palavras. 8Não os imiteis, porque vosso Pai sabe o que vos é necessário, antes que vós lho peçais. 9Eis como deveis rezar: PAI NOSSO, que estais no céu, santificado seja o vosso nome; 10venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6,7-10).

Se não devemos multiplicar as palavras, quanto mais os atos e as promessas. Devemos aceitar confiantemente a amorosa vontade do Pai, expressa na realidade dos fatos, mesmo que isso ultrapasse a nossa capacidade de compreensão.

4. O significado redentor da Paixão e Morte de Jesus Cristo

Se a Paixão e a Morte de Jesus Cristo não são um “sacrifício expiatório”, qual o verdadeiro entendimento da Paixão e Morte de Jesus Cristo na Cruz que corresponde a todas as revelações do Novo Testamento?

Os escritores inspirados do Novo Testamento, por falta de vocabulário mais apropriado, continuam a usar os termos religiosos tradicionais de “sacrifício”, e também “compra” e “resgate”, que sugerem uma idéia de “pagamento a alguém”.

“Assim, meus irmãos, também vós estais mortos para a lei, pelo sacrifício do corpo de Cristo, para pertencerdes a outrem, àquele que ressuscitou dentre os mortos, a fim de que demos frutos para Deus” (Rm 7,4).

“Porque fostes comprados por um grande preço. Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo” (1Cor 6,20).

“Por alto preço fostes comprados, não vos torneis escravos de homens” (1Cor 7,23).

“Progredi na caridade, segundo o exemplo de Cristo, que nos amou e por nós se entregou a Deus como oferenda e sacrifício de agradável odor” (Ef 5,2).

“ ... e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus” (Cl 1,20).

“Do contrário, lhe seria necessário padecer muitas vezes desde o princípio do mundo; quando é certo que apareceu uma só vez ao final dos tempos para destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).

“Cristo ofereceu pelos pecados um único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à direita de Deus” (Hb 10,12).

“Assim como houve entre o povo falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos doutores que introduzirão disfarçadamente seitas perniciosas. Eles, renegando assim o Senhor que os resgatou, atrairão sobre si uma ruína repentina” (2Pd 2,1).

“Cantavam um cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça” (Ap 5,9).

Essas dificuldades de linguagem para descrever o significado do ato redentor de Jesus Cristo contribuíram para difundir nos ambientes cristãos duas idéias erradas:

a) que Jesus Cristo “pagou” ao Pai um “sacrifício” aplacador da sua ira pelos pecados das pessoas humanas.

b) que o sofrimento por si mesmo purifica espiritual e moralmente a alma humana.

Essas idéias ficaram muito arraigadas e parecem muito naturais. O espiritismo kardecista, de larga difusão, se apóia nelas. As pessoas, segundo o espiritismo, sofrem para “pagar” pelos pecados cometidos em outras “vidas” neste mundo e serem purificadas pelo sofrimento. Querem assim explicar o sofrimento dos bons e as diferenças de sorte entre as pessoas. Não se observa, porém, que as pessoas que se possa considerar menos sofredoras - saudáveis, ricas, etc. - sejam as de espírito mais evoluído espiritualmente. As pessoas mais santas são freqüentemente muito sofredoras.

Para entender o significado do ato redentor de Jesus Cristo devemos, portanto, evitar esses dois erros. Fica evidente então que Jesus Cristo nos salva porque se aplica ao seu ato redentor os princípios da moral cristã que vimos acima.

a) Ao encarnar-se a Segunda Pessoa Divina, o Filho ou Logos Divino, entra na unidade do gênero humano (segundo princípio). A sua vitória sobre a tentação e o demônio é uma vitória que é participada por todo o gênero humano.

11Ainda mais: nós nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem desde agora temos recebido a reconciliação! 12Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram... 13De fato, até a lei o mal estava no mundo. Mas o mal não é imputado quando não há lei. 14No entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir). 15Mas, com o dom gratuito, não se dá o mesmo que com a falta. Pois se a falta de um só causou a morte de todos os outros, com muito mais razão o dom de Deus e o benefício da graça obtida por um só homem, Jesus Cristo, foram concedidos copiosamente a todos. 16Nem aconteceu com o dom o mesmo que com as conseqüências do pecado de um só: a falta de um só teve por conseqüência um veredicto de condenação, ao passo que, depois de muitas ofensas, o dom da graça atrai um juízo de justificação. 17Se pelo pecado de um só homem reinou a morte (por esse único homem), muito mais aqueles que receberam a abundância da graça e o dom da justiça reinarão na vida por um só, que é Jesus Cristo! 18Portanto, como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida. 19Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos” (Rm 5,11-19).

b) Jesus Cristo não ofereceu um “pagamento” ao Pai pelos pecados humanos, mas, ao contrário dos filhos de Adão e Eva, aceitou plenamente o dom do Pai, a sua vida encarnada, com morte e sofrimento, sem colocar condições, permanecendo até à morte “em ação de graças”. Não achou que devesse defender-se como se de sua auto-defesa viesse a sua salvação, mas esperou somente na ação d’Aquele que o gerara eternamente e o gerara humanamente no ventre de Maria Santíssima. Esta é a vivência do primeiro princípio da moral cristã. Ao ter tal atitude, Jesus revela também a relação eterna que existe entre o Pai e o Filho. O Pai esvazia-se de Si e se dá ao Filho. Este O acolhe incondicionalmente e neste acolhimento Se dá ao Pai. Receber sem condições é colocar-se em plena disponibilidade diante do Doador.

c) Jesus não nos salvou por causa de seu sofrimento, em si mesmo. Mas porque, no meio dos sofrimentos, que representavam tentações, conservou-se fiel à ação vivificadora que só poderia vir do Pai. O que nos salvou, não foi exatamente o sofrimento de Jesus, mas a sua fidelidade, plena de Amor, ao Pai na extrema dificuldade criada pelos sofrimentos. O sofrimento em si mesmo não purifica ninguém. A fidelidade a Deus, a esperança só em Deus, no meio dos sofrimentos, esta, sim, é que purifica o espírito humano.

d) Jesus rejeitou todo o poder neste mundo e aqui não se prendeu a nenhuma criatura. Na relação com todas recebeu do Pai e serviu ao Pai, tendo só n’Ele a origem, a razão e a meta de sua existência humana. Nisto viveu o que descrevemos como o terceiro princípio da moral cristã.

e) Fomos remidos pela vivência, de Jesus Cristo, daquilo que chamamos os três princípios da moral cristã. Não temos que viver outra coisa na vida terrena, senão a vida de Jesus Cristo, nós, ungidos pela mesma unção d’Ele. Por isso dissemos desde o início deste trabalho que a moral cristã é a vida de Jesus Cristo em nós.

Há também, no Novo Testamento, passagens que sugerem a superação da noção antiga de sacrifício:

“Eis por que, ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo” (Hb 10,5).

“Ora, onde houve plena remissão dos pecados não há por que oferecer sacrifício por eles” (Hb 10,18)

O “sacrifício” cristão não é oferecer nada a Deus. É aceitar plenamente toda a auto-doação de Deus a nós, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida, aquelas internas à pessoa e aquelas externas a ela. Isto leva a uma plena identificação da pessoa consigo mesma, libertada de todo espírito de comparação.

a) O dom da vida mortal é também o dom da morte. Identificar-se totalmente consigo mesmo, acolhendo o que Deus criou em si é aceitar a idéia da própria morte e das realidades que levam a ela: a fraqueza do corpo, a doença etc. Se há uma aceitação prévia, quando essas realidades acontecem, não há um senso de perda ou de derrota. Renunciar a si mesmo (cf. Mt 16,24) não é causa de tristeza, mas realidade e fonte de alegria e paz, de vitória contra a tentação e a própria morte.

b) a aceitação de si mesmo como dom de Deus conduz ao equilíbrio psicológico e à paz, pois a pessoa se aceita na diferença de dons com outras pessoas, não nutrindo complexos de inferioridade ou superioridade, libertando-se da exigência de afirmar o seu ego para ser valorizado pelos outros. Escapa aos padrões de “feio” e “bonito” aceitando seu corpo, sua sexualidade, suas limitações, sem perder nunca o senso do próprio valor pessoal, acreditando plenamente que o que Deus lhe deu - mesmo diferente, menos ou mais do que parece que deu a outros - é o suficiente para realizar tudo o que Deus quer que a pessoa realize nesta vida. Essa percepção é que levará a pessoa a dar os frutos que Deus espera dela.

c) a pessoa aceita a própria história, anterior ao seu nascimento, aceita sua “raça”, país, condição social, família, e outras circunstâncias, sem nenhum sentimento de comparação nem competição com os outros - condição para a fraternidade - e isto também leva ao equilíbrio de sua personalidade.

Ao aceitar-se desta forma como dom de Deus para si mesmo e para os outros a pessoa está se dando a Deus, segundo o que já percebemos: quem aceita incondicionalmente a auto-doação de um outro se disponibiliza totalmente para esse outro, ou seja, se dá a esse outro. Assim, liberto, pela unção do Espírito Santo - a mesma unção de Jesus Cristo - da “luta para viver” instaurada no espírito do homem pelo pecado original, a vida do cristão é uma morte a cada dia pela auto-doação de si mesmo “para que os outros tenham vida” (cf. Jo 10,10). Por isso São Paulo diz que o culto racional cristão - o mesmo culto “em espírito e verdade” descrito por São João (cf. Jo 4,21-24) - é oferecer o próprio corpo mortal como uma hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12,1). É um morrer permanentemente. Isso dá um sentido novo à morte corporal. Ao invés de ser, como parece, a destruição da pessoa humana, é o momento que totaliza a auto-doação da pessoa a Deus, é o “fim” que significa um amor total.

1Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).

13Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos” (Jo 15,13).

22Sereis odiados de todos por causa de meu nome, mas aquele que perseverar até o fim será salvo” (Mt 10,22; 24,13; Mc 13,13).

12Se soubermos perseverar, com ele reinaremos” (2Tm 2,12).

Como Jesus Cristo deu-se ao Pai - e a nós - totalmente só em sua morte, assim a morte do cristão é glorificação também pois sendo o têrmo de uma doação total assemelha a pessoa humana a Deus e a introduz na vida definitiva da Santíssima Trindade.

Quinta Parte: Nossa Vocação à Bem-Aventurança

1. As bem-aventuranças em Mateus correspondem aos princípios da moral cristã

A pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, foi criada para participar da vida divina. Assim como as Pessoas da Santíssima Trindade são Pessoas distintas, mas constituem uma só essência divina, uma só Vida, pelas relações entre elas, A pessoa humana foi criada para estabelecer com Deus, através da Segunda Pessoa da Trindade, a mesma relação de unidade e assim viver a vida eterna das pessoas da Santíssima Trindade. Esta é a vocação fundamental de toda pessoa humana.

Isto é uma felicidade muito acima da imaginável pelos homens na terra. Como já tivemos oportunidade de meditar, os projetos de felicidade das pessoas humanas situam-se ao nível desta vida mortal. O desencontro entre as esperanças dos filhos de Israel e o dom que Jesus, o Messias de Israel veio trazer é exatamente este. Jesus Cristo veio trazer uma vida imortal que se vive a partir de um despojamento, por amor, das seguranças e necessidades da vida mortal e os filhos de Israel, como todas as pessoas queriam satisfazer as necessidades de conservação da vida mortal. O que Deus quis nos dar é tão grande, tão maior que as esperanças cotidianas das pessoas, que estas não entenderam e não acolheram o Dom divino.

As Bem-aventuranças, proclamadas por Jesus Cristo e constantes dos Evangelhos, são descrições da participação antecipada da pessoa humana, já neste mundo, por causa da esperança, na vida divina que viveremos por toda a eternidade. O elemento central das bem-aventuranças é a idéia, contida no que denominamos “primeiro princípio da moral cristã”, de que a pessoa humana deve apoiar sua vida somente em Deus e não nas criaturas, que são apenas instrumentos de que Deus se serve para manter a sua criatura humana e não as verdadeiras seguranças da pessoa humana. Em outras palavras uma vida em que nunca se substitui Deus como fonte e segurança da vida humana pelas criaturas que sustentam a vida humana como instrumentos de Deus. Como se a bem-aventurança básica fosse a seguinte: «Bem-aventurados os que se apóiam só em Deus e tem todas as demais coisas como sinais e graças da benevolência de Deus e não desejam nada mais do que Deus só».

Nesta chave de leitura podemos interpretar todas as bem-aventuranças constantes nos Evangelhos. Podemos até classificar as bem-aventuranças constantes do Sermão da Montanha, na versão mateana, segundo ressaltem mais um ou outro dos três princípios da moral cristã. Assim, entre as que se relacionam mais ao terceiro princípio, que é a destinação divina da pessoa humana, temos:

3Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos céus!” (Mt 5,3).

Quem tem o coração de pobre, ou é pobre em espírito? Aquele que, mesmo tendo todas as coisas neste mundo sente-se pobre por não ter a única coisa necessária, que deseja acima de todas as outras, que é a visão de Deus. Tendo tudo, mas não tendo o que mais quer sente-se pobre em seu íntimo, coração ou espírito. Esta bem-aventurança se assemelha a outra:

8Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!” (Mt 5,8).

O “coração”, na linguagem bíblica é o centro da pessoa, é também o centro de suas relações com as coisas, as outras pessoas e com Deus. É por isso o centro dos desejos da pessoa.

“Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração” (Mt 6,21; Lc 12,34).

“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Mt 12,35; Lc 6,45).

Um coração puro é um coração sem desejos contraditórios, assim como a água pura é água sem mistura de outras substâncias. O puro de coração é o que deseja, acima de tudo, Deus e subordina todos os demais desejos a esse desejo fundamental. Assim, não será escravo de nenhuma necessidade mortal, mas abrirá mão de todas as “necessidades”, em vista de seu objetivo fundamental, que é Deus.

Entre as que se relacionam mais ao segundo princípio da moral cristã, à unidade entre as pessoas, temos:

9Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus! (Mt 5,9).

No Evangelho a condição de filho de Deus não é uma propriedade inalienável da natureza humana. É uma condição adquirida pelo acolhimento da comunhão com o Filho Unigênito de Deus.

9O Verbo era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. 10Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. 11Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. 12Mas a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, 13os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas sim de Deus” (Jo 1,9-13).

João fala de um novo nascimento, que não é “da carne”, mas “de Deus”, que nos torna filhos de Deus. Também em Mateus, a filiação divina depende de uma abertura pessoal a Deus:

43Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. 44Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. 45Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos. 46Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? 47Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos? 48Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,43-48).

O novo nascimento, de que fala João, é uma convicção, dom do Espírito Santo, da unidade das pessoas humanas em Deus, mais forte do que as lutas terrenas que fazem as pessoas inimigas umas das outras. Se, acolhendo a cruz, uma pessoa sofre a inimizade de outra, sofre até injustiças por parte dela, mas não deixa de fazer bem a ela, alcança transfigurar um conflito em paz, e é bem-aventurada, é filha do Altíssimo.

Outra bem-aventurança que se refere ao segundo princípio é:

6Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!” (Mt 5,6).

Em geral, o Evangelho, quando refere-se à justiça, refere-se à justiça, não de César, mas à justiça do Reino de Deus, a justiça dos bens infinitos. Aqui, porém, podemos nos referir, na palavra “justiça” a ambas acepções deste termo, se a sede da justiça de César é uma vivência da justiça do Reino de Deus. Tanto pode ser fome de que Deus seja glorificado nos atos cheios de caridade das pessoas humanas, seja a fome, cheia de auto-doação pessoal, de que os pobres sejam respeitados e os fracos tenham seus direitos humanos considerados. Ao lutar pela justiça humana, não em favor próprio, mas em favor de outros e com doação pessoal, a pessoa está vivendo a justiça divina e é bem-aventurada, vivendo a unidade, colocando seus dons a serviço dos outros e “vivendo nas outras pessoas humanas”, constituindo unidade com elas. Na transição deste segundo princípio para o primeiro temos ainda:

7Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia!” (Mt 5,7).

Esta bem-aventurança toca no mesmo tema que acabamos de desenvolver em relação à “fome e sede de justiça”, mas refere-se mais diretamente à gratuidade da doação. Misericórdia é “fusão de corações”, referindo-se à unidade, ao segundo princípio, mas é um ato de auto-doação gratuito, referindo-se também ao primeiro princípio. Misericordioso é quem dá de graça. A bem-aventurança diz que quem dá de graça, receberá de graça, na inversão comum no Evangelho, como se a ação da pessoa precedesse a ação de Deus. Na verdade, para dar de graça, a pessoa já está admitindo que recebeu de graça. Assim também, no Pai-Nosso parece que Deus perdoará se nós perdoarmos, mas a parábola em Mt 18,23-35 esclarece que o perdão divino é que tem a precedência.

Referindo-se mais diretamente ao primeiro princípio da moral cristã temos:

4Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!” (Mt 5,4).

“Os que choram” ou, em outras traduções “os aflitos”, são aqui os que perderam todas as esperanças dos apoios humanos, dos apoios nas criaturas, e não lhes resta outra alternativa que esperar em Deus. O ladrão à direita de Jesus, no Calvário, é uma boa ilustração destes “aflitos”. Vimos que o pecado original faz a pessoa perder a percepção da graça de Deus e, em vez de apoiar-se n’Ele, passa a apoiar-se no poder sobre as criaturas. A desilusão desse caminho de mentira traz a pessoa, mesmo por uma experiência dolorosa, para a verdade e isso constitui uma bem-aventurança.

5Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra!” (Mt 5,5).

Os mansos são os que não conquistam pelo seu próprio poder os bens deste mundo para apoiar sua segurança neles, mas os que recebem seus bens de Deus. A resposta de João Batista em Jo 3,27 é um belo exemplo da pessoa mansa, que não quer usurpar o que não lhe é dado por Deus. Também em Nm 13-14, o episódio do envio dos doze homens para explorar a terra de Canaã, nos ajuda a compreender essa bem-aventurança. Deus os havia libertado do Egito, uma grande potência militar da época, demonstrando que seu poder é muito superior ao dos impérios humanos. Dez dos doze enviados à terra de Canaã, porém, raciocinaram não segundo a graça, a promessa de Deus de que Ele é que lhes daria a terra de Canaã. Pensaram que os israelitas é que deveriam conquistá-la com suas forças. E, por isso, se atemorizaram. É muito comum a pessoa esquecer que tudo é graça de Deus e considerar que tudo é conquista da força da pessoa humana. Daí vem muitos pecados, fraudes e ódios, para conquistar a terra. Esta bem-aventurança nos diz que se não é Deus que dá algo a alguém, a usurpação será vã e, na verdade, a pessoa não possuirá o que pensa ter conquistado. Toda posse verdadeira é pela graça de Deus.

10Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus!” (Mt 5,10).

A vida na graça de Deus faz com que, muitas vezes, a pessoa não colabore com os interesses daqueles que querem usurpar pelo poder terreno os bens da terra, o prestígio diante de outras pessoas e os interesses mais diversos. Há aí um clima de mentira, também. A pessoa que caminha na graça e na verdade pode acabar atraindo sobre si a perseguição, que autentica sua fidelidade a Deus. Se presta culto ao poder humano para evitar a perseguição, não é mais dela o Reino de Deus, ou seja o reino em que só Deus é que exerce o poder. Ela reconheceu aí o poder humano e se apoiou nele. A pessoa que caminha no reino de deus apóia-se exclusivamente no poder de Deus. Então é dela o Reino de Deus. Ela não crê que o poder humano transmita vida, só o poder divino. Então prefere a morte dada pelo poder humano, apoiando-se no poder de Deus que dá vida. Não confia na conservação de sua vida à custa de se dobrar ao poder humano, como se esse poder fosse capaz de criar alguma coisa. Por isso, nessa bem-aventurança a pessoa atribui só a Deus toda vida e toda graça. Refere-se, portanto, ao primeiro princípio da moral cristã.

A vida cristã é vivência da vida de graça santificante. É vivência antecipada da vida bem-aventurada eterna. É vivência das bem-aventuranças. Por isso, como mostramos, é a vivência dos três princípios da moral cristã que apresentamos.

2. As bem-aventuranças na visão realista de Lucas

Na versão lucana, as bem-aventuranças referem-se menos a um estado espiritual da pessoa que se apóia em Deus, e referem-se mais diretamente à situação social que induz a pessoa a esperar em Deus, na linha da bem-aventurança dos aflitos, de Mateus. Para isso Lucas apresenta também, além de bem-aventuranças, também mal-aventuranças.

20Então ele ergueu os olhos para os seus discípulos e disse: Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus! 21Bem-aventurados vós que agora tendes fome, porque sereis fartos! Bem-aventurados vós que agora chorais, porque vos alegrareis! 22Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos ultrajarem, e quando repelirem o vosso nome como infame por causa do Filho do Homem! 23Alegrai-vos naquele dia e exultai, porque grande é o vosso galardão no céu. Era assim que os pais deles tratavam os profetas.

24Mas ai de vós, ricos, porque tendes a vossa consolação! 25Ai de vós, que estais fartos, porque vireis a ter fome! Ai de vós, que agora rides, porque gemereis e chorareis! 26Ai de vós, quando vos louvarem os homens, porque assim faziam os pais deles aos falsos profetas!” (Lc 6,20-26).

Para Lucas é muito teórico e pouco real que alguém tenha tudo mas seja desapegado e tenha no desejo de ver Deus a sua verdadeira esperança, como descrevemos na bem-aventurança dos pobres em espírito, de Mateus. Para Lucas, a pobreza e o sofrimento real condicionam a pessoa à desilusão em relação a esperar nos bens da terra e induz à esperança em Deus. A riqueza real acaba, para Lucas, fazendo seu possuidor apoiar-se nela e não fazer a experiência da graça de Deus.

3. A vida cristã toda é uma vida bem-aventurada

Há outras declarações de bem-aventuranças nos Evangelhos. Reforçando a bem-aventurança dos perseguidos por causa do Reino de Deus, temos:

11Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo o mal contra vós por causa de mim” (Mt 5,11).

14E até sereis felizes, se padecerdes alguma coisa por causa da justiça!” (1Pd 3,14).

14Se fordes ultrajados pelo nome de Cristo, bem-aventurados sois vós, porque o Espírito de glória, o Espírito de Deus repousa sobre vós” (1Pd 4,14).

É bem-aventurança ver e ouvir Jesus Cristo Salvador e compreender e praticar a Sua Palavra.

16Mas, quanto a vós, bem-aventurados os vossos olhos, porque vêem! Ditosos os vossos ouvidos, porque ouvem!” (Mt 13,16).

28Mas Jesus replicou: Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam!” (Lc 11,28).

17Se compreenderdes estas coisas, sereis felizes, sob condição de as praticardes” (Jo 13,17).

E é mais feliz ainda quem não viu, mas n’Ele crê:

29Disse-lhe Jesus: Creste, porque me viste. Felizes aqueles que crêem sem ter visto!” (Jo 20,29).

A bem-aventurança definitiva, que contém todas as outras, é a perseverança final:

37Bem-aventurados os servos a quem o senhor achar vigiando, quando vier! Em verdade vos digo: cingir-se-á, fá-los-á sentar à mesa e servi-los-á” (Lc 12,37).

38Se vier na segunda ou se vier na terceira vigília e os achar vigilantes, felizes daqueles servos!” (Lc 12,38).

13Eu ouvi uma voz do céu, que dizia: Escreve: Felizes os mortos que doravante morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, descansem dos seus trabalhos, pois as suas obras os seguem” (Ap 14,13).

9Ele me diz, então: Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro. Disse-me ainda: Estas são palavras autênticas de Deus” (Ap 19,9).

7Eis que venho em breve! Felizes aqueles que põem em prática as palavras da profecia deste livro” (Ap 22,7).

7Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas e cujos pecados foram cobertos!” (Rm 4,7).

14Felizes aqueles que lavam as suas vestes para ter direito à árvore da vida e poder entrar na cidade pelas portas” (Ap 22,14).

A experiência da antecipação da felicidade eterna é fundamental na vida cristã, autenticando a vivência da moral cristã. Segundo um velho adágio, atribuído a São Francisco de Sales, “um santo triste é um triste santo”. A vida cristã não é uma vida de facilidades. Mas é a vida mais feliz que uma pessoa humana pode viver. Não se vive verdadeiramente como cristão se não se faz a experiência da felicidade. Da bem-aventurança. Todo cristão é vocacionado a essa experiência.

Sexta Parte: A Liberdade cristã

1. O livre-arbítrio e a natureza da liberdade cristã

A pessoa humana, decaída pelo pecado original não é livre. Por isso, precisa ser libertada. Mas goza de livre-arbítrio. Parece uma contradição, mas não é. O livre-arbítrio é a capacidade, “baseada na razão, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, portanto, de praticar atos deliberados” (CIC, n. 1731). O livre-arbítrio é uma capacidade divina do homem. É parte integrante da imagem divina segundo a qual foi criada pessoa humana. Para entrar na comunhão divina requer-se o amor. O amor só acontece quando há a possibilidade de amar ou não amar. De todos os seres vivos do mundo visível a pessoa humana é a única capaz de não fazer a vontade de Deus. Os outros seres vivos fazem sempre a vontade de Deus e não podem não fazê-lo. Essa sua obediência, não tendo livre-arbítrio, não é amor. Para a pessoa humana poder amá-Lo, Deus a criou à sua imagem, dotada de livre-arbítrio. E a pessoa humana usou o seu livre-arbítrio contra o amor de seu Criador cometendo o pecado original. A partir daí, todas as pessoas, participantes do único gênero humano, se tornaram escravas do mal, com um forte condicionamento para agirem de forma pecaminosa e muita dificuldade, ou mesmo uma impossibilidade, sem uma intervenção divina, de viverem segundo a verdade, segundo a graça de Deus. Por isso a pessoa humana não é livre. Só por uma intervenção divina a pessoa pode reconquistar a liberdade e na sua condição decaída o exercício da liberdade comporta sempre sofrimento - cruz - e simultaneamente uma paz vinda de Deus. Uma das metas da vida moral e espiritual da pessoa é a recuperação da liberdade interior. Recuperando-a a pessoa torna-se capaz de amar a Deus, realizando o destino para o qual foi criada. A liberdade é exatamente a capacidade de sempre agir segundo a verdade, escolhendo sempre o bem e nunca o mal, assim amando o Criador.

A intervenção divina que torna a pessoa capaz de viver segundo a verdade é o fruto da Redenção realizada por Jesus Cristo. É o Dom do Espírito Santo. Envolve a Revelação da Verdade e um novo nascimento, do Alto (cf. Jo 3,3.7), pelo qual a pessoa não mais permanece no medo da morte ou do sofrimento, tornando-se capaz de aceitar todo acontecimento que a realidade lhe apresenta quando vive segundo a Verdade, a vontade de Deus:

14Porquanto os filhos participam da mesma natureza, da mesma carne e do sangue, também ele participou, a fim de destruir pela morte aquele que tinha o império da morte, isto é, o demônio, 15e libertar aqueles que, pelo medo da morte, estavam toda a vida sujeitos a uma verdadeira escravidão” (Hb 2,14-15).

Este é o texto mais explícito do Novo Testamento, que associa a nossa escravidão (falta de liberdade) ao medo da morte corporal. É claro que a morte, aqui, vai acompanhada de todos os seus sinais, que são insegurança, pobreza, humilhação, solidão, injustiça e todas aquelas situações desagradáveis que queremos sempre evitar e que levam a pessoa a temer por si mesma. Pelo medo de sofrer - morrer - a pessoa “luta” para ter vida e nessa “luta”, como vimos no estudo do pecado original, se torna escrava de inúmeras necessidades e escrava do pecado, sem nenhuma percepção da graça divina que, esta sim, lhe dá vida.

3Jesus replicou-lhe: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo (= do Alto) não poderá ver o Reino de Deus. 4Nicodemos perguntou-lhe: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez? 5Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus. 6O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito. 7Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo (= do Alto). 8O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,3-8).

Pelo acolhimento do dom do Espírito Santo, a pessoa não está mais “na carne”, ou seja, na “luta” contra a morte corporal e seus sinais descritos acima, mas nasceu do Alto, ou seja, tem a fonte de sua vida na ação criadora de Deus (= na graça divina) e não mais na “luta para viver”. Isto a torna mais forte do que a tentação, a torna livre, não mais escrava do pecado. O que nasce da carne é o instinto carnal que movendo a pessoa a se defender, a move ao pecado, e com toda essa luta, buscando segurança, riqueza, glórias humanas, não alcança a plenitude da vida. Esses bens nunca saciam a pessoa humana, pois dependem das criaturas e só Deus é fonte de vida e pode dar vida.

28Jesus então lhes disse: Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis quem sou e que nada faço de mim mesmo, mas falo do modo como o Pai me ensinou. 29Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho, porque faço sempre o que é do seu agrado. 30Tendo proferido essas palavras, muitos creram nele. 31E Jesus dizia aos judeus que nele creram: Se permanecerdes na minha palavra, sereis meus verdadeiros discípulos; 32conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. 33Replicaram-lhe: Somos descendentes de Abraão e jamais fomos escravos de alguém. Como dizes tu: Sereis livres? 34Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo. 35Ora, o escravo não fica na casa para sempre, mas o filho sim, fica para sempre. 36Se, portanto, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8,28-36).

Jesus fala de sua liberdade, que é obedecer sempre ao Pai, Ele que é o Ungido (Messias, Cristo) pelo Espírito do Pai. A liberdade é poder agir de acordo com a natureza do próprio ser. Jesus é o Filho, que recebe todo o seu ser do Pai. Então a liberdade de Jesus é viver de acordo também com a sua fonte de vida:

34Disse-lhes Jesus: Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra (Jo 4,34).

E refere-se à sua crucificação (“quando tiverdes levantado o Filho do Homem”) de onde derramará o Espírito para a libertação dos homens, realizando a Redenção do gênero humano. A obediência a Deus (“permanecer na Palavra”) leva ao conhecimento experimental da verdade e à consciência do caminho da libertação da pessoa humana, não mais escrava do pecado, porque não mais temerosa da morte ou de seus sinais. A experiência voluntária da Cruz é a experiência da liberdade humana.

2. A liberdade cristã nos libera dos imperativos da lei pela lei

A liberdade cristã é tratada no Novo Testamento em um contexto de ruptura com o judaísmo baseado na observância estrita da lei mosaica. Isto se observa nos Evangelhos, na questão do sábado, do jejum, dos alimentos impuros etc. e nas Cartas, especialmente as de São Paulo.

Na pedagogia divina, Deus revela-se gradativamente aos homens. No Antigo Testamento ainda estão presentes muitos elementos das religiões pagãs, ou seja, das religiões onde a pessoa humana criou os deuses à sua imagem. Assim, a presença dos sacrifícios. Já vimos que os sacrifícios antigos surgem da projeção ao nível divino dos tributos pagos aos poderosos deste mundo para “amansá-los” e “torná-los propícios”. Outros elementos dos poderosos deste mundo que o Antigo Testamento projeta para Deus é a Lei e o castigo pela infração da Lei. A Lei era a realidade mais sagrada da religião mosaica. Era colocada acima do bem da pessoa humana. Jesus Cristo vem estabelecer a verdadeira vida da pessoa humana com seu Criador e para tal deve libertar a consciência da pessoa humana da sujeição à lei só enquanto lei. A verdadeira “lei” de Jesus Cristo é a realidade da Santíssima Trindade e as relações pessoais a ela inerentes, e a realidade da semelhança divina da pessoa humana, chamada a viver a comunhão trinitária por meio do Filho, pela unidade do Espírito Santo, como ser criado e absolutamente dependente de Deus. Aqui entra também todo o significado sacramental da realidade visível da pessoa humana, homem e mulher, imagem do mistério de Deus. Ou seja, a “lei” é a própria realidade de Deus e da pessoa humana. Tudo o que estiver fora disto é, para Jesus Cristo, arbitrariedade e capricho e não tem mais sentido. A circuncisão, os alimentos impuros, as abluções rituais, as ofertas, os dízimos, tudo perde seu significado depois que se passa da penumbra do Antigo Testamento à plena luz do Novo Testamento.

1A lei, por ser apenas a sombra dos bens futuros, não sua expressão real, é de todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que se renovam indefinidamente cada ano” (Hb 10,1).

5O culto que estes celebram é, aliás, apenas a imagem, sombra das realidades celestiais, como foi revelado a Moisés quando estava para construir o tabernáculo: Olha, foi-lhe dito, faze todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado no monte (Ex 25,40)” (Hb 8,5).

O texto mais claro sobre essa ruptura, parece-nos ser o que se encontra no segundo capítulo da Carta aos Colossenses:

8Estai de sobreaviso, para que ninguém vos engane com filosofias e vãos sofismas baseados nas tradições humanas, nos rudimentos do mundo, em vez de se apoiar em Cristo. 9Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade. 10Tendes tudo plenamente nele, que é a cabeça de todo principado e potestade. 11Nele também fostes circuncidados com circuncisão não feita por mão de homem, mas com a circuncisão de Cristo, que consiste no despojamento do nosso ser carnal. 12Sepultados com ele no batismo, com ele também ressuscitastes por vossa fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos. 13Mortos pelos vossos pecados e pela incircuncisão da vossa carne, chamou-vos novamente à vida em companhia com ele. É ele que nos perdoou todos os pecados, 14cancelando o documento escrito contra nós, cujas prescrições nos condenavam. Aboliu-o definitivamente, ao encravá-lo na cruz. 15Espoliou os principados e potestades, e os expôs ao ridículo, triunfando deles pela cruz. 16Ninguém, pois, vos critique por causa de comida ou bebida, ou espécies de festas ou de luas novas ou de sábados. 17Tudo isto não é mais que sombra do que devia vir. O Corpo é Cristo. 18Ninguém vos roube a seu bel-prazer a palma da corrida, sob pretexto de humildade e culto dos anjos. Desencaminham-se estas pessoas em suas próprias visões e, cheias do vão orgulho de seu espírito materialista, 19não se mantêm unidas à Cabeça, da qual todo o corpo, pela união das junturas e articulações, se alimenta e cresce conforme um crescimento disposto por Deus. 20Se em Cristo estais mortos aos princípios deste mundo, por que ainda vos deixais impor proibições, como se vivêsseis no mundo? 21Não pegues! Não proves! Não toques! 22proibições estas que se tornam perniciosas pelo uso que delas se faz, e que não passam de normas e doutrinas humanas. 23Elas podem, sem dúvida, dar a impressão de sabedoria, enquanto exibem culto voluntário, de humildade e austeridade corporal. Mas não têm nenhum valor real, e só servem para satisfazer a carne” (Cl 2,8-23).

Este texto da Carta aos Colossenses é de importância capital para a compreensão da liberdade e de toda a moral cristã. São Paulo inicia com uma nítida oposição entre a sabedoria de Jesus Cristo e as filosofias e tradições humanas, compreendendo aí inclusive os rituais hebraicos. E afirma, de forma aparentemente paradoxal (cf. Jo 4,24) que, sendo Deus Espírito, em Cristo a divindade está corporalmente.

9Respondeu Jesus: Há tanto tempo que estou convosco e não me conheceste, Filipe! Aquele que me viu, viu também o Pai. Como, pois, dizes: Mostra-nos o Pai... (Jo 14,9).

Então, vendo Jesus Cristo compreendemos o modo de ser das pessoas divinas. O Pai se esvazia de si mesmo e Se dá ao Filho, como Jesus se esvazia de si mesmo (cf. Fl 2,5-11), se encarna e Se dá a nós até à morte de cruz. Assim entendemos que n’Ele habita corporalmente Deus. O seu Corpo revela o modo de ser de Deus.

Em seguida, São Paulo substitui a antiga circuncisão - retirada do prepúcio ao oitavo dia do nascimento - pelo mesmo esvaziamento de Cristo praticado pelo cristão, o despojamento de seu ser carnal. É a mesma doutrina que expõe em outros lugares, ao afirmar que pelo batismo o cristão participa da morte de Jesus Cristo e está sepultado com Ele (cf. Rm 6,3-5) e que o culto racional do cristão é oferecer o próprio corpo mortal como hóstia viva, santa e agradável a Deus (cf. Rm 12,1). Em seguida afirma que a Lei era um instrumento de condenação que Jesus Cristo aboliu cravando-a na cruz. Quem peca contra a Lei, uma vez que pecou, este ato pecaminoso permanece sempre no passado da pessoa acusando-a. Isto é causa de muito sofrimento por falta de compreensão do mistério de Jesus Cristo. Há pessoas que vivem décadas de remorsos de consciência por faltas cometidas. A perda da virgindade por um pecado contra a castidade, especialmente pelas mulheres foi, durante muito tempo, uma chaga incurável. São Paulo então afirma que as observâncias da lei - proibições de comidas, bebidas, festas religiosas e sábados - eram uma sombra, dizemos nós, uma pedagogia para conduzir ao Mistério. A realidade da relação das pessoas humanas com Deus não consiste na Lei, mas no Corpo de Cristo, esta realidade de despojamento pessoal para dar vida ao próximo, que, na unidade do gênero humano constitui com o sujeito uma só vida. Uma vez alcançado este Mistério, o pedagogo pode ser abandonado:

23Antes que viesse a fé, estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei, esperando a revelação da fé. 24Assim a lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo, para sermos justificados pela fé. 25Mas, depois que veio a fé, já não dependemos de pedagogo, 26porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. 27Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo.

Acontece que na progressão moral do cristão é necessário, por causa da fraqueza humana, como o povo de Israel, passar pela etapa da Lei para chegar à maturidade de Jesus Cristo. Por isso, a Igreja, como Mãe e Educadora, orienta os seus fiéis, através dos Mandamentos da Igreja a uma prática ascética que os conduza paulatinamente em direção à liberdade da vivência plena do Mistério. É importante, por isso, valorizar esses mandamentos, mas não colocá-los como parte imprescindível da maturidade cristã, caso em que voltaríamos ao regime da Lei e negaríamos a liberdade cristã.

A liberdade cristã é, em resumo, a vivência da Páscoa de Jesus Cristo, livres da Lei, de qualquer lei, e da escravidão dos instintos de segurança e prazer corporais. Por isso, podemos dizer que o agir cristão se baseia em duas realidades, uma natural e uma sobrenatural. A realidade natural é a natureza humana como criada por Deus - a chamada “lei natural” - e a realidade sobrenatural é a Páscoa de Jesus Cristo, o fato de que é esvaziando-se de si e dando-se para dar vida ao semelhante que entramos em comunhão com Deus e temos a vida divina, que é eterna.

3. A moral e a liberdade cristãs são interiores. A subjetividade do agir cristão.

Na insegurança que a vida mortal - a vida que a pessoa humana herdou fora do Paraíso - tudo é interpretado no prisma de uma “luta ” intensa para evitar a morte e os males que são sinais dela, como os sofrimentos e a doença. Isto gerou muitos comportamentos e proibições que dão “a impressão de sabedoria, enquanto exibem culto voluntário, de humildade e austeridade corporal. Mas não têm nenhum valor real, e só servem para satisfazer a carne” (Cl 2,23). Algumas dessas proibições, no judaísmo, eram de origem higiênica, como a proibição de ingerir carne de porco ou as abluções rituais antes das refeições. Verificando que o consumo da carne de porco - mais facilmente corruptível - provocava doenças e morte, e atribuindo isso a um “castigo divino” deduziu-se, provavelmente, que Deus não queria que se comesse este tipo de carne. Daí, em Israel, a carne de porco provocar impureza legal (cf. Lv 11,7; Dt 14,8). As abluções também eliminavam muitas impurezas que poderiam provocar infecções, evitando-se doenças. Daí se tornarem costumes “desejados por Deus” e não serem mais uma regra higiênica só, mas uma observância religiosa (cf. Mc 7,2-5). O medo do castigo divino levou também a enrijecer a observância do sábado (cf. Mt 12,2; Mc 2,24; 3,2; Lc 6,2.7; 13,14; Jo 5,10.16). Assim como em Israel, em todo o paganismo há muitas ações exteriores proibidas por desagradarem aos deuses, provocando “castigos” da parte deles, ou por a elas se atribuírem fontes de males ou de “azar”. Jesus, que vem justamente libertar a pessoa humana do medo da morte e da escravidão do demônio (cf. Hb 2,14-15), liberta de todas essas leis e traz uma moral baseada somente na “lei natural” - a realidade das coisas como elas são como criadas por Deus através de seu “Logos” - e na Páscoa - a verdade de que é dando de graça a vida que se recebeu de graça que a pessoa participa da vida divina. Jesus traz, então uma moral interior, em que não é o ato exterior que define moralmente o perfil da pessoa, mas a atitude interior do coração.

18... Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode tornar impuro, 19porque não lhe entra no coração, mas vai ao ventre e dali segue sua lei natural? Assim ele declarava puros todos os alimentos. E acrescentava: 20Ora, o que sai do homem, isso é que mancha o homem. 21Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, 22adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. 23Todos estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem (Mc 7,18-23).

Isto aumenta tremendamente a liberdade interior do cristão. Nenhum preceito é puramente exterior, mas é na atitude do coração que a pessoa se relaciona com a Verdade, com Deus. As observâncias exteriores sem atitude interior não agradam a Deus.

37Enquanto Jesus falava, pediu-lhe um fariseu que fosse jantar em sua companhia. Ele entrou e pôs-se à mesa. 38Admirou-se o fariseu de que ele não se tivesse lavado antes de comer. 39Disse-lhe o Senhor: Vós, fariseus, limpais o que está por fora do vaso e do prato, mas o vosso interior está cheio de roubo e maldade! 40Insensatos! Quem fez o exterior não fez também o conteúdo? 41Dai antes em esmola o que possuís, e todas as coisas vos serão limpas (Lc 11,37-41).

Aqui a esmola é sinal da oferta que purifica, ou seja, a atitude de doação gratuita segundo o que já havíamos afirmado antes: o agir cristão tem o seu centro no “de graça recebestes, de graça, daí” (Mt 10,8). Esta atitude também é aplicada por São Paulo ao caso dos alimentos “proibidos”, como as carnes imoladas aos ídolos.

23Tudo é permitido, mas nem tudo é oportuno. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica. 24Ninguém busque o seu interesse, mas o do próximo. 25Comei de tudo o que se vende no açougue, sem indagar de coisa alguma por motivo de consciência. 26Do Senhor é a terra e tudo que ela encerra. 27Se algum infiel vos convidar e quiserdes ir, comei de tudo o que se vos puser diante sem indagar de coisa alguma por motivo de consciência. 28Mas se alguém disser: Isto foi sacrificado aos ídolos, não o comais, em atenção àquele que o advertiu e por motivo de consciência. 29Dizendo consciência, refiro-me não à tua, mas à do outro. Com efeito, por que razão seria regulada a minha liberdade pela consciência alheia? 30Se eu como com ações de graças, por que serei eu censurado por causa do alimento pelo qual rendo graças? (1Cor 10,23-30).

O critério de Jesus Cristo é interpretado por São Paulo como uma liberdade em relação a todas as coisas, buscando somente o que é oportuno e convém para a edificação em Cristo da pessoa que age. Ora, comer ou deixar de comer alguma coisa não muda o coração de ninguém. Então pode-se comer de tudo, até carne imolada aos ídolos, uma vez que os ídolos, na verdade, não existem e tudo só tem um Criador, que é Deus. Mas o mortificar-se para não agredir a consciência do próximo cria unidade e é um ato de liberdade que nos assemelha a Jesus Cristo, que nos suportou nas nossas ignorâncias. Então, não porque a carne fora imolada aos ídolos, mas para ser sinal de Jesus Cristo para o próximo a pessoa deixa de comer a tal carne. Isto é exercício de plena liberdade. Posso comer e posso não comer. Nem uma atitude nem a outra dominam a pessoa agente, mas o bem do outro, do próximo.

Aqui nós temos um aspecto bem subjetivo da liberdade do agir cristão. É a consciência individual que examina a conveniência da atitude para ser fiel ao Espírito Santo que nos leva a viver segundo Jesus Cristo. O agir cristão, porém não é baseado na subjetividade, mas tem uma visão bem objetiva da realidade e os critérios do agir cristão são muito objetivos, como veremos a seguir.

4. Os critérios de moralidade dos atos humanos e o debate moral. A objetividade do agir cristão.

Aqui, para avançarmos na compreensão dos problemas e contestações que o ensino moral cristão sofre no mundo contemporâneo, é mister recorrermos a alguns elementos de filosofia moral. Não que sejam imprescindíveis para a compreensão da moral cristã, mas o são para compreender as contestações modernas à moral cristã.

Para julgar a moralidade de um ato humano - ato decidido pela razão e aprovado pela vontade da pessoa - os filósofos morais estabeleceram o julgamento de três elementos do ato, que são o objeto do ato - a “coisa” em si do ato - as finalidades ou intenções que se busca no ato e as circunstâncias em que é realizado. Se um dos três elementos - objeto, intenções e circunstâncias - não é bom ou conveniente, o ato não é moralmente bom. É necessário que os três elementos sejam considerados bons ou convenientes para que o ato seja considerado bom.

Justamente porque é necessário que os três elementos sejam considerados bons surge a questão do critério pelo qual determinar-se-á se um determinado objeto é bom ou não, se uma determinada intenção é boa ou não, se determinadas circunstâncias são boas ou não. Estes critérios é que dividem as correntes de pensamento moral. Dependem da filosofia que a pessoa vive, da visão da realidade que ela tem. Depende da sabedoria que guia a consciência da pessoa.

A filosofia cristã parte da realidade de que tudo foi criado por Deus, por meio de seu “Logos” (cf. Jo 1,3). Que a razão foi dada à pessoa humana como atributo indispensável à sua semelhança com as Pessoas Divinas, para participar desse “Logos”. Por isso, a verdade sobre a Criação é acessível à razão humana. Assim também o conhecimento da natureza das coisas, ou seja, da bondade ou maldade dos objetos das ações morais. A formação da consciência é justamente a informação sobre a bondade e a maldade dos objetos das ações morais. Quanto mais informada sobre a verdade, mais a consciência cumpre seu papel de levar a pessoa humana a agir segundo a verdade, que é, portanto, cognoscível. O principal dever da consciência moral humana é exatamente buscar conhecer o quanto possível a verdade sobre o bem e sobre o mal. A filosofia moral cristã afirma, portanto, o conhecimento do ser, do objeto das coisas e de sua bondade ou maldade intrínseca.

A filosofia moderna, ao contrário, valoriza a subjetividade da pessoa e a interpretação que cada um dá no seu íntimo aos objetos reais. Então a verdade sobre o objeto das coisas não é realçada, e algumas correntes negam claramente que se possa conhecer a verdade das coisas, a bondade ou maldade intrínseca dos objetos das ações. Assim o que vai dar a conotação de bom ou mal ao ato humano, no modo de pensar contemporâneo, não será, em primeiro lugar, o objeto do ato, mas a intenção subjetiva da pessoa que age.

Essa diferença de perspectiva causará um enorme abismo entre a consciência cristã e a consciência chamada “laica” no mundo contemporâneo, gerando as discussões sobre muitos temas como aborto, eutanásia, contracepção, sexo livre ou seguro etc.

Pode-se perguntar que se a verdade moral sobre o objeto é incognoscível, segundo as correntes de pensamento contemporâneas, que critério julga a bondade ou maldade das intenções, tornadas o critério básico de avaliação moral? Se não se pode conhecer a verdade sobre o objeto, como se pode conhecer a verdade sobre as intenções? Este critério será determinado pela convenção social, o sentimento variável, sujeito às propagandas e pressões publicitárias. Esta é uma das características do mundo contemporâneo. Deixando de basear-se na verdade perene e igual em toda época e lugar, passa a guiar-se por campanhas de “conscientização”, e a consciência é que vai criando os valores morais, ao sabor das paixões do momento. Como a maioria das pessoas não tem liberdade interior para criar seus próprios valores e o caráter social da pessoa humana exige uma certa uniformidade de valores para se viver em sociedade, a moral vai sendo determinada pelos que tem o poder sobre os meios de comunicação social, persuadindo sobre valores - frequentemente contra-valores - morais, e a ditadura do poder humano sobre as pessoas atinge as suas próprias consciências. Aqui César, o poder terreno, usurpa o lugar de Deus e se dá a César o que é de Deus. O cristianismo, proclamando que a verdade moral sobre as coisas é cognoscível, afirma que ela não está sob o poder de nenhuma potência terrena e revela o seu caráter libertador. A autoridade terrena não deve dominar as consciências individuais. Deve-se obedecer antes a Deus do que aos homens (cf. At 4,19).

Assim como o pensamento contemporâneo reconhece que o mundo material tem leis universais, válidas em todos os tempos e lugares, e pesquisa tais leis através da física, da química e da biologia, além de outras ciências, deve reconhecer que o corpo e a alma humanas foram criados pelo mesmo Deus, por meio de seu “Logos”, e por isso tem leis igualmente perenes e universais, não dependentes das paixões do momento. Essa lei é a chamada “lei natural”, dependente da “lei eterna” que está na própria “natureza” do Ser Divino. O não acolher essa verdade é uma reprodução fiel do pecado original tal como narrado no Gênesis, em que a pessoa humana pensa ser “como Deus” atribuindo-se a faculdade de determinar o que é bom e o que é mal.

O agir cristão baseia-se, portanto, na objetividade da natureza das coisas e da pessoa humana e na objetividade da realidade de Jesus Cristo, que é o que É (cf. Ex 3,14) e não o que cada um quer considerar n’Ele. A subjetividade na ação cristã não está em mudar o que é imutável, mas no discernimento dos caminhos pelos quais, respeitando esses dados objetivos que citamos, realizamos nossa semelhança com Jesus Cristo e, assim, com Deus, a cuja imagem fomos criados. A liberdade sempre supõe uma certa subjetividade, mas a subjetividade cristã é bem diferente da subjetividade agnóstica do mundo contemporâneo. É subjetividade, é liberdade, mas nunca é relativismo.

5. A Moralidade das Paixões

As paixões e sentimentos são movimentos da sensibilidade humana que não derivam diretamente da razão, nem da vontade iluminada pela razão, mas movem a vontade por meio de outros elementos do psiquismo humano. Assim, não é só a razão que move a vontade, mas também outras pulsões do psiquismo humano: amores, atrações, medos, repulsões, simpatias e antipatias, ódios e fixações da mente, instintos e desejos vários, inclinações etc.

A condição mortal e a perda da percepção da graça de Deus Criador leva a pessoa humana a fixar seu coração nas criaturas pela sua beleza, pela sua capacidade de proporcionar algum bem ao qual ela é sensível: segurança, prazer, força, emoção etc.

Deste modo não apenas a razão da pessoa humana precisa ser reconduzida à Verdade, mas também a sua sensibilidade. Isto é um tema muito pertinente à vida moral porque a sensibilidade move a vontade humana à ação com mais freqüência do que a razão. Pouca coisa do que a pessoa faz é decidido por um ato reflexo, racional, pesando conveniências e inconveniências. Ela faz muito mais coisas movida por suas inclinações e atrações.

A Teologia Moral pode esclarecer plenamente a razão da pessoa sobre a Verdade, mas se os seus sentimentos não se modificam segundo a Verdade, o seu coração continua com os mesmos impulsos de apego e medo em relação às criaturas, embora sua consciência moral, sua razão, esteja bem esclarecida de que deve amar a Deus acima de todas as criaturas e confiar plenamente n’Ele liberando-se dos medos. Como aquele que diz: “Eu não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. Ou aquele professor que descrevia todos os imensos males do tabagismo e tinha sempre um cigarro na mão, dando suas tragadas com gosto. Assim, nada adianta o esclarecimento da razão sem o exercício espiritual que leva a fazer a experiência prática do amor de Deus. A fé é um conhecimento de Deus, conforme foi revelado por Jesus Cristo. Mas de que serve a fé, esse conhecimento que ilumina a razão e é acolhido pela vontade, se não se desdobra em esperança - que faz a pessoa repousar na paz de Deus - e em caridade, o amor ao Deus no qual se crê, e que leva a pessoa a viver para Deus? De que serve conhecer a Deus intelectualmente, se o coração não espera n’Ele e não O ama? Não O experimenta? É muito triste ver um teólogo que discursa perfeitamente sobre todos os atributos divinos, mas não revela esperança e caridade, mas se enche de orgulho no seu conhecimento intelectual, fazendo da Teologia mais causa de queda do que de ascensão para Deus. O conhecimento da Teologia Moral sem a vida espiritual não vale nada. Aqui coloca-se um importante tema que é o da importância da oração na vida moral do cristão. Pela oração e orientação espiritual orientam-se os afetos do coração e paixões segundo a reta razão e a fé, inclinando-se a personalidade para a realização da vontade divina.

Aqui é importante distinguir também “paixões” de “temperamento”. O temperamento é a configuração da expressão natural de cada pessoa, às vezes também chamado caracter, e é estudado pelo ramo da psicologia aplicada que justamente se chama caracterologia. Uma pessoa pode ser colérica, externar com muita facilidade suas emoções, enquanto a outra é fleumática, e não externa quase nada do que sente. A diferença de temperamento não define moralmente a pessoa. Pode-se ser santo com qualquer dos temperamentos ou caracteres. Não devemos confundir a expressão externa dos sentimentos com a ira, por exemplo. Uma pessoa fleumática pode ter uma ira maior do que uma colérica e, a julgar pela aparência externa, parecer o contrário. O temperamento é apenas uma forma de canalizar a energia interior da pessoa, faz parte da personalidade. A perfeição moral, que exige a mudança das paixões más e o crescimento das paixões boas, não exige a mudança do temperamento, do caracter da pessoa.

Sétima Parte: A Consciência Moral e a Verdade

A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é dotada de razão. Isto a distingue dos animais. Estes sabem diversas coisas, mas não sabem que sabem, não são capazes de pensar sobre seus conhecimentos. Tem certa ciência, mas não tem co-scientia, consciência, como a tem a pessoa humana que sabe que sabe ou que não sabe, isto é, reflete sobre seus conhecimentos e busca deliberadamente novos conhecimentos, questiona seus conhecimentos e os aperfeiçoa. Quando esta capacidade reflexiva da consciência ilumina sobre as decisões da pessoa sobre o seu agir estamos falando de consciência moral. Esta deve colher informações sobre a realidade na qual se vive, sobre o bem a buscar, e assim iluminada indicar à vontade as ações possíveis a realizar e aquelas que se deve evitar. A grandeza moral da pessoa está intimamente ligada a essas duas atividades da consciência. A primeira é a busca da Verdade sobre a realidade humana, sobre o bem a fazer e o mal a evitar, rejeitando os apegos das conveniências do egoísmo, da vaidade e do prazer, com toda imparcialidade, e sobre os males a evitar. Esta atividade da consciência é sumamente importante, a ponto de Jesus Cristo fazer dela a estrada que conduz a pessoa a Ele:

37Perguntou-lhe então Pilatos: És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz (Jo 18,37).

Uma pessoa que vive essa característica tende a ter uma consciência verídica, isto é, que dita à vontade a verdade sobre Deus e sobre a realidade.

A segunda é a fidelidade da vontade ao ditame da consciência. Mesmo que alguém, sem culpa própria, não tenha alcançado ainda o conhecimento da Verdade, mas é fiel ao ditame da consciência em todas as circunstâncias, está, de certo modo, sendo fiel a Deus, dentro dos dons que recebeu. “Quanto mais se confiar a alguém, dele mais se há de exigir” (Lc 12,48). Estas duas atividades da consciência, cada uma a seu modo, são as que mais dignificam moralmente a pessoa humana: busca imparcial da verdade e fidelidade à verdade conhecida como tal. É este o campo onde o Espírito Santo pode mais fecundamente produzir seus frutos de salvação. A negação prática da verdade conhecida como tal pela consciência é exatamente um dos pecados contra o Espírito Santo, que, perdurando na vida da pessoa, “não tem perdão” (cf. Mt 12,31-32; Mc 3,29; Lc 12,10). A pessoa que tem essa segunda característica, diz-se que tem uma consciência reta.

Uma consciência bem formada é verídica e é reta (cf. CIC 1783). A consciência moral compreende, portanto, a percepção da Verdade, na qual estão contidos os princípios da moralidade. Esta percepção dos princípios da moralidade chama-se “sinderese”. Daí parte para a aplicação desses princípios às circunstâncias determinadas na qual a pessoa é chamada a agir, tomando decisões e agindo de acordo com essas decisões. Esse processo determina na pessoa a virtude da prudência, que pode-se chamar a virtude do reto uso da consciência moral.

A consciência, agindo segundo os processos que vimos, unida à liberdade, possibilita à pessoa assumir a responsabilidade pelos atos que pratica. Por isso, uma das principais liberdades que se deve conceder a toda pessoa humana é a liberdade de consciência - respeitados os limites do bem comum. Ninguém deve ser forçado a agir contra a própria consciência nem, respeitado o bem comum, impedido de agir de acordo com a própria consciência. Esses são “direitos” da pessoa em relação à sua consciência. O dever da pessoa em relação à sua consciência seria buscar sempre e imparcialmente a Verdade (cf. Carta Encíclica Veritatis Splendor, 34).

1. A busca da Verdade e a busca da Vida.

A pessoa humana, dispersa, após o pecado original, sobre a face da terra, peregrina, como vimos, numa “luta” permanente contra a morte e seus sinais, como a fome, a insegurança, a solidão etc. A pessoa humana busca instintivamente a vida e isso está de acordo com a sua natureza pois ela foi criada para viver plenamente a vida divina. Jesus Cristo veio para conferir essa vida divina à pessoa humana, mas esta o rejeitou, porque a busca pela vida é marcada na terra pela conservação da vida mortal e não tanto pela busca da vida imortal. Isso é mostrado no Evangelho desta forma:

1No princípio era o Logos, e o Logos estava junto de Deus e o Logos era Deus. 2Ele estava no princípio junto de Deus. 3Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. 4Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. 5A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. 9[O Logos] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. 10Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. 11Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam. 12Mas a todos aqueles que o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus (Jo 1,1-5.9-12).

A vida é a luz dos homens. As pessoas buscam vida melhor, sentirem-se bem. São, na verdade, poucas as pessoas que tem capacidade para buscar a Verdade como tal. Pode-se dizer que é um talento divino a capacidade de reconhecer a Verdade, no meio de tantos sofrimentos e na ânsia por uma vida mais tranqüila. Jesus proclama que Ele é a Verdade e a Vida (cf. Jo 14,6). Mas que quem o escuta é o que é da Verdade (cf. Jo 18,37). O fato é que nas comunidades cristãs o que mais atrai as pessoas não é tanto a proclamação da verdade, mas a caridade que acolhe. As pessoas permanecem nas comunidades por experiências de vida que incluem curas interiores ou físicas, superações de sofrimentos etc. Poucos são os que permanecem por uma convicção doutrinal, ou seja, pela fé mesma. Até mesmo Jesus fez essa experiência, como Ele mesmo afirma:

48Disse-lhe Jesus: Se não virdes milagres e prodígios, não credes... (Jo 4,48).

Por causa dessa diferença de capacidade para alcançar a Verdade é que Jesus Cristo, segundo o desígnio do Pai, constituiu pastores e ovelhas, isto é, que uns os que vêem a Verdade, guiem os que não vêem, mas querem caminhar na Verdade. Isso também é um sinal da unidade do gênero humano, que caminha para a Vida quando os que têm o dom o colocam a serviço dos que não o têm. Como a fé - o conhecimento da Verdade - opera pela caridade (cf. Gl 5,6) e sem ela nada é, porque a fé é o conhecimento das Pessoas Divinas e, como vimos no início deste nosso tratado, a pessoa só pode ser conhecida se é abordada com amor, Jesus coloca o amor a Ele mesmo, o amor a Deus, a caridade, como critério do apascentar as ovelhas.

15Tendo eles comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Respondeu ele: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. 16Perguntou-lhe outra vez: Simão, filho de João, amas-me? Respondeu-lhe: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta os meus cordeiros. 17Perguntou-lhe pela terceira vez: Simão, filho de João, amas-me? Pedro entristeceu-se porque lhe perguntou pela terceira vez: Amas-me?, e respondeu-lhe: Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo. Disse-lhe Jesus: Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21,15-17).

É pelo amor a Deus que se pode conhecer a Deus. Por isso, a Teologia deve ser feita com amor a Deus, objeto do conhecimento da Teologia. Quem ama, tem mais condições de conhecer e de guiar outros no conhecimento de Deus. Foi este o critério pelo qual Jesus Cristo escolheu Simão para confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,31-32). Mas o contrário pode ocorrer também. O que exerce a função de guiar não ama e não conhece a Verdade.

12Então se aproximaram dele seus discípulos e disseram-lhe: Sabes que os fariseus se escandalizaram com as palavras que ouviram? 13Jesus respondeu: Toda planta que meu Pai celeste não plantou será arrancada pela raiz. 14Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala (Mt 15,12-14).

Também na Igreja, atualmente, se o Evangelho de Jesus escandaliza teremos guias cegos guiando outros cegos para o abismo. O caráter eminentemente espiritual da salvação e o Reino “que não é deste mundo” (cf. Jo 18,36) infelizmente escandalizam muitos na Igreja que sofre o influxo de um mundo sob influência de doutrinas materialistas que colocam a realização da pessoa humana mais na justiça social do que na perfeição do amor a Deus. Daí termos hoje muitos guias cegos na Igreja.

Oitava parte: O Cristianismo e as Virtudes Humanas

A Vida Moral Cristã não é construída simplesmente numa aquisição de virtudes morais. O Cristianismo, porém, sempre incentivou os que ouviram sua mensagem à aquisição das virtudes morais.

Podemos dizer que a virtude é a capacidade que uma pessoa possui de assumir comportamentos convenientes à consecução de determinado fim. Quando o fim é a coerência interior da pessoa ou a harmonia social a virtude é considerada virtude moral. Por exemplo, a honestidade, a veracidade, a generosidade. Quando o fim é a comunhão com Deus em Si mesmo pela graça, temos as virtudes infusas ou teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade. Quando o fim é a perfeição profissional temos as virtudes profissionais: a competência, a laboriosidade, a pontualidade, a assiduidade etc. As virtudes teologais têm uma natureza diversa das virtudes humanas. São geradas no homem a partir da autocomunicação de Deus ao homem e não de um esforço de desenvolvimento da pessoa. Por isso podemos dizer, mesmo se o cristianismo, como dissemos, usou sempre um discurso de virtudes, que a vida cristã em si mesma não se desenvolve como uma aquisição progressiva de virtudes, mas como uma iluminação que a Revelação Divina provoca, fazendo a pessoa reconsiderar a sua pessoa, o mundo, o seu destino, a partir de Deus e aí passa a viver segundo essa que é a realidade verdadeira que conheceu pela Revelação e acolheu pela fé, pela esperança e pela caridade. O caminho da aquisição progressiva das virtudes provém das filosofias grega, oriental etc. e não do cristianismo mesmo. Este absorveu esse caminho, não sem prejuízo de sua compreensão, de sua pureza e natureza original.

1. As virtudes como forma de progresso moral pagão

Essa assimilação da vida moral brotada da filosofia fez com que o cristianismo aparecesse, para a grande maioria das pessoas como um difícil aperfeiçoamento moral e não como uma iluminação sobre a Verdade, deformando o próprio conceito de fé, que se afastou do acolhimento e conhecimento da Verdade revelada, para se confundir com certa confiança em Deus, confundindo-se com o conceito de esperança e, em muitos casos, deturpando-o. Isto também está na origem da atual separação entre fé (sentimentos religiosos) e vida (comportamento moral) e na pouca valorização do conhecimento religioso, concebido secularmente como algo necessário somente para pessoas especiais, ministros ordenados etc. Para que conhecer detalhes sobre a Revelação se a pessoa pode sentir confiança (confundida com a fé) em Deus, mesmo sem conhecê-lo em detalhes, sem conhecer o que Ele revela sobre a natureza divina, a natureza humana e a realidade? A ignorância religiosa abre espaço também para o sincretismo religioso, pelo uso da linguagem e dos símbolos cristãos para um culto que, em sua lógica interna, é fundamentalmente pagão. A pessoa humana, decaída do estado de graça pelo pecado original, perdeu o conhecimento do Deus verdadeiro e passa a imagina-lo a partir de si mesma, fazendo inúmeras representações de um “deus criado à imagem da pessoa humana poderosa”. Por isso, não é conhecedora do deus verdadeiro, nem atéia, mas pagã. O paganismo, em todas as suas formas, é a expressão religiosa da pessoa humana mortal em luta para conservar-se e atingir de uma ou outra forma uma segurança material ou psicológica. É como uma religiosidade natural que está no íntimo das pessoas e corresponde a sentimentos que, numa linguagem joanina e paulina, são carnais.

2. As virtudes e a lei são etapas intermediárias para alcançar a vivência do Mistério de Jesus Cristo.

Por que o discurso sobre as virtudes cresceu tanto no ensino da fé cristã?

Mesmo que a vida cristã seja, em sua natureza própria, a vida segundo a Verdade revelada, e a visão da Verdade mude o homem, o cristão é um homem encarnado, inserido em seu contexto vital, sua cultura, e sofre diversos condicionamentos que lhe vem desse ambiente onde vive. Certamente foi pela denúncia contra os ambientes moralmente corrompidos que influenciavam os fiéis e a necessidade de fortalecê-los nos bons costumes, unida à natural dificuldade dos convertidos de viver a partir somente do Espírito, que levou a Igreja a acentuar o caminho da aquisição das virtudes morais.

Outra “pedagogia” que a Igreja utiliza é a da lei. Deus mesmo, antes de revelar a Graça e a Verdade (cf. Jo 1,17), a Sua Vida íntima de Santíssima Trindade, para participar da qual a pessoa humana foi criada, dirigiu sua comunicação à pessoa humana no seu paganismo e estabeleceu com ela, em Israel, uma Aliança baseada na Lei. Só depois de um grande amadurecimento e muitos profetas Deus revelou a Verdade de Sua Vida Divina. Este processo se dá não apenas com Israel, mas com cada pessoa. A pessoa tem em sua carne, latente, o paganismo. Passa a ser educada na fé e, no terreno moral é educada pela Lei. Só depois de um crescimento e amadurecimento pode deixar a dependência da Lei para viver a maturidade da Graça. Nessa pedagogia, ao lado da Lei, a Igreja usou também a moral das virtudes. Por isso, a Igreja, mesmo pregando que o Espírito supera a Lei e o cristão não está mais sob a Lei (cf. Rm 6,14; Gl 4,5; 5,18), devido à fraqueza de seus filhos estabeleceu os “mandamentos da Igreja” e numerosas disciplinas em relação aos sacramentos e à vida moral em geral. São necessárias por causa da fraqueza humana. A pessoa, porém, é chamada a crescer, para viver no Espírito de Cristo a sua Páscoa, a sua “kenosis” pessoal é nela comunhão divina e antecipação da vida eterna. Não é mais por causa da lei que o cristão vive a lei, os dez mandamentos, mas os supera pelo Espírito de Jesus Cristo que vive nele. No Evangelho de Mateus, no Sermão da Montanha, Jesus dá uma interpretação superior dos mandamentos, usando as expressões: “Ouvistes o que foi dito aos antigos...” e “Eu, porém, vos digo...” (cf. Mt 5,21-22.27-28.31-32.33-34.38-39.43-44). As atitudes que Jesus Cristo determina nos “Eu, porém, vos digo...” são as atitudes da semelhança divina que a pessoa humana é chamada viver e ser para ser “filho de Deus” (cf. Mt 5,45) filho no Filho, na comunhão divina.

3. As virtudes no mundo moderno

A atual crise moral que abrange as sociedades no mundo inteiro tem sua razão de ser no condicionamento que o ambiente exerce sobre cada pessoa. Mas esse condicionamento tem raízes em transformações profundas que, mudando a civilização, afetaram profundamente a alma humana.

Uma dessas transformações foi o extraordinário progresso tecnológico com o uso de novas energias e a descoberta da origem das doenças com a conseqüente cura, que caracterizou as idades moderna e contemporânea. O ser humano, que era refém da natureza, sentiu-se poderoso sobre ela. A impotência diante da natureza, levava as pessoas a uma busca de recurso no mundo sobrenatural. A descoberta das curas e o domínio de novas energias (vapor, elétrica, combustíveis fósseis, solar, nuclear) fizeram diminuir muito o impulso à busca de salvação sobrenatural e aumentou o sentimento de auto-suficiência, ou seja, o orgulho do homem. Enfraquecendo o impulso sobrenatural, atrofiou também o temor de Deus, que era uma das colunas mestras que sustentava o exercício da virtude. O impacto do progresso do domínio sobre a natureza foi tal que as filosofias atéias, que em Demócrito jamais haviam conseguido ser populares, começaram a encontrar acolhimento no meio popular em muitos países, junto com um cientificismo ingênuo.

Outra grande transformação foi a implantação dos meios de comunicação social eletrônicos, o desenvolvimento da imprensa e o surgimento da cultura de massas, provinda, não da alma popular, mas das minorias materialistas e atéias, mas poderosas financeiramente, que controlam esses meios. Criou-se uma cultura sem Deus e foi se perdendo de vista, paulatinamente, as razões que sustentavam o comportamento virtuoso, que, animando a razão humana, levavam o espírito humano a controlar e dominar os impulsos da carne. Os valores morais passaram a ser considerados ‘tabus’ a serem derrubados e foi implantada uma cultura de satisfação dos instintos da carne, na qual a razão tem pouco espaço. Os lemas dessa ‘revolução’ eram, por exemplo, “É proibido proibir”, “Não se reprima” etc.; essa cultura enfraqueceu a vontade das pessoas, tornando-as incapazes de se controlarem a si mesmas, descendo a níveis sub-animalescos de que é sinal a enorme quantidade de dependentes de drogas, com um exorbitante índice de consumo e violência pública em todos os lugares. O ser humano, orgulhoso de ser senhor da natureza, percebeu que não era senhor nem de si mesmo e se tornou incapaz de conviver socialmente em harmonia. Tornou-se um homem sem virtude.

Concomitantemente com essa evolução dos fatos, a cultura tornou-se também performática. O importante passou a ser superar metas, alcançar maiores índices, seja no caso de um atleta que busca estabelecer novo recorde, seja no caso de uma empresa que quer conquistar uma fatia sempre maior do mercado. Esta busca de objetivos e auto-superação leva a pessoa a desenvolver em si determinadas virtudes, submeter-se a uma verdadeira ascese, em vista de aumentar sua capacidade de alcançar tais ‘performances’. Isto mostra que a busca de virtudes não é algo do passado, mas é muito exigida pelo mundo moderno, haja vista, por exemplo, o rigor das exigências que se faz na seleção de candidatos para um emprego. E quanto mais excelente o emprego, maiores virtudes se exige. A busca da excelência e da produtividade nas empresas fez desenvolver ciências como a psicologia do trabalho, as relações humanas no trabalho e fez redescobrir, através dessas ciências, que a pessoa humana que trabalha mais e melhor a médio e longo prazos é a que for mais equilibrada emocionalmente, afetivamente etc. Isso levou a redescobrir, embora com objetivos materialistas e não de perfeição humana, muito menos pela glória de Deus Criador, o caráter espiritual da pessoa humana e da verdadeira liderança e ação humanas. Levou a redescobrir que toda pessoa tem uma contribuição a dar - tem dons a partilhar - se se descobre o lugar e a função correta para cada pessoa. Por causa destas descobertas se faz uma releitura das fontes cristãs e, repetimos, embora com objetivos imanentes, não deixam de manifestar a riqueza humana do caminho cristão. Por exemplo, títulos de livros bem vendidos como ‘Jesus, o maior líder que já existiu’, ‘Jesus, o maior psicólogo que já existiu’, ‘O Monge e o Executivo’, procuram em Jesus e na Regra de São Bento uma perfeição humana que possibilitará alcançar as melhores performances hoje. Muitas outras publicações na área de auto-ajuda vão na mesma direção. Mesmo para o sucesso terreno é necessária a virtude humana. O vicioso, o não-virtuoso, não está preparado para realizar-se nem neste mundo nem no próximo.

Esta constatação leva-nos, porém, a perceber que toda a grandeza da capacidade humana pode ser canalizada para alcançar metas bem abaixo das verdadeiras metas que, só elas, podem realizar plenamente o homem. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a si mesmo?” (Lc 9,25), diz o Senhor.

4. O que determina a perfeição não é só a virtude, mas o destino que a pessoa assume.

Dissemos, no início desta reflexão, que a idéia de virtude moral, em si mesma, não é de origem cristã. Pode haver mesmo um discurso moral cristão que a dispense, como os próprios quatro Evangelhos canônicos. Ao final, constatamos que não falta ao homem moderno o apelo à virtude. Há bastante até. O que falta é aquilo que é específico do cristianismo: a primazia da destinação divina da pessoa humana, a sabedoria divina, a afirmação, pela pessoa humana, da Presença e do Reino de Deus. Sem isso, mesmo a virtude moral humana se torna ambígua e hipócrita. Toda virtude humana, usada só no nível da justiça humana apenas, não tem valor salvífico. Uma pessoa pode ser honesta e corajosa e usar essas virtudes só no nível da “luta” da pessoa para conservar sua vida mortal sobre a terra. A generosidade que leva a “lutar pelos direitos” de uns, mas sem misericórdia pelos seus opositores, não constrói a unidade do Reino dos Céus. Um advogado que defende os interesses de uma pessoa, mas tem por inimigos seus opositores, e não se preocupa que seja feita justiça em seu favor também, pode ser útil no nível da justiça humana, mas não sobe ao nível divino, pascal. Se a Igreja faz uma opção pelos pobres, mas a exerce, na prática, como uma luta de classes, simplesmente, não sendo justa com os proprietários também, como tem acontecido, trai a sua missão divina. Isto quando se procura fazer o bem. Mas a virtude é necessária para se fazer o mal também. Um verdadeiro malandro vigarista só o é, com sucesso, se reunir em si uma série de virtudes humanas muito apreciadas como a tranqüilidade diante da adversidade, a capacidade de comunicação e persuasão, certa prudência e auto-contrôle, e assim por diante. O que caracteriza o cristão não é exatamente já possuir a perfeição da virtude moral humana, mas a sua meta, que é Deus. O verdadeiro perfil moral da pessoa humana não depende tanto da sua virtude moral humana, mas do rumo que dá à sua vida, o Deus verdadeiro, ou ídolo a que serve.

5. As virtudes teologais

As virtudes teologais são desenvolvidas na alma pela não-resistência à ação do Espírito Santo. Acolhendo a Revelação, a pessoa desenvolve a fé. A fé é o conhecimento da verdade revelada por Deus. Para esse conhecimento intervém a razão, que intelige os dados revelados e a vontade que “quer crer”. Como já vimos no início deste nosso tratado, até para aceitar dados científicos, é preciso “querer crer”, dar o assentimento da vontade. Jesus diz que se a vontade da pessoa não aceita a Palavra reveladora de Deus, também não aceitará os sinais ou milagres mais evidentes.

29Abraão respondeu: - Eles lá têm Moisés e os profetas; ouçam-nos! 30O rico replicou: - Não, pai Abraão; mas se for a eles algum dos mortos, arrepender-se-ão. 31Abraão respondeu-lhe: - Se não ouvirem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite algum dos mortos (Lc 16,29-31).

Deus revela, por meio de Jesus Cristo, a Verdade (cf. Jo 1,17) mas a pessoa por causa de interesses ligados à situação de pecado, querendo apoiar-se em seu próprio poder e não em Deus, fecha-se à Verdade e assume a mentira. Por isso, Jesus, que fazia sinais portentosos para mostrar que o Pai dava testemunho de Ele ser o seu Filho, chama os judeus que não querem dar seu assentimento, de filhos do diabo, o pai da mentira.

17Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele. 18Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado; por que não crê no nome do Filho único de Deus. 19Ora, este é o julgamento: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, pois as suas obras eram más. 20Porquanto todo aquele que faz o mal odeia a luz e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. 21Mas aquele que pratica a verdade, vem para a luz. Torna-se assim claro que as suas obras são feitas em Deus (Jo 3,17-21).

“Aquele que pratica a verdade” é aquele que se abre à Verdade revelada por Deus e essa Verdade, conhecida pela razão e acolhida pela vontade, modela sua ações. É aquele que tem fé. Para acolher a Verdade é necessário que a pessoa tenha um grau mínimo de imparcialidade, de desapego de si. Se uma pessoa é por demais apegada ao que quer que seja (dinheiro, poder, fama, prestígio etc.) que é a sua segurança, e não se desliga dessa falsa segurança, não dará o assentimento interior à fé. Às vezes poderá dar um assentimento exterior, que não muda nada no seu interior, sendo até uma hipocrisia. Porque a fé cristã nos leva a não colocar a nossa segurança a não ser em Deus, única fonte ativa de nossa existência e nossa vida, e capaz de nos dar vida eterna. “As suas obras são feitas em Deus” significa que são realizadas segundo a Verdade de que a nossa segurança não está nas coisas, mas sim em Deus. A pessoa usa de todas as coisas, mas não se apega a nenhuma, em total liberdade, não se escravizando a nenhuma realidade, a nenhum dinheiro, a nenhum poder nem prestígio, mas sá a Deus. É a perfeita adoração a Deus, “em espírito e verdade” (cf. Jo 4,24; Rm 12,1) onde não há nenhuma idolatria. A fé está, desta forma, ligada à perfeita adoração ao Deus único. Por isso é necessária para a salvação que é ter a vida segundo a Verdade.

O dinamismo prático da fé é a esperança, virtude teologal mais existencial, que faz a pessoa repousar sua segurança em Deus. No meio das incertezas deste mundo e da instabilidade das seguranças na vida mortal, a pessoa tem uma rocha firme que se apóia na fé, mas é já um dinamismo próprio, a que chamamos esperança, de que o amor de Deus prevalecerá sobre o mal e a morte, como Bem e Vida. Em momentos de “noite escura” (cf. Obras de São João da Cruz) da fé, em que as verdades da fé também sofrem provação em nosso espírito, é a esperança que nos sustenta. Referindo-se à esperança, o Padre Louis Evely tem uma frase muito significativa: “Ter fé é ser fiel nas trevas ao que se viu na luz”. Nas trevas, a clareza da fé se desfaz, mas resta a esperança que fica confiante no reaparecimento da luz e tem certeza de que Deus dará a salvação aos sofredores que se conservem à esperança n’Ele. A esperança é, assim um dinamismo em que a pessoa sabe que nem tudo o que a sua mente lhe sugere é verdadeiro. Vence as tentações contra a fé sabendo que sua mente vê segundo aparências e condicionada por paixões como o medo, o ódio, a vergonha etc. Não se deixa levar pela impressão momentânea sugerida pelas aflições e espera. A esperança é um dinamismo mais profundo e interior do que a fé esclarecida e é esse dinamismo que aproxima de Deus a maior parte das pessoas.

4Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados! (Mt 5,4).

39Um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós! 40Mas o outro o repreendeu: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? 41Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum. 42E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando tiveres entrado no teu Reino! 43Jesus respondeu-lhe: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso. 44Era quase à hora sexta e em toda a terra houve trevas até à hora nona (Lc 23,39-44).

O malfeitor que fala primeiro, nesta perícope, não tem esperança, pois quer que Jesus - Deus - faça a sua vontade. O segundo malfeitor espera a ação de Deus segundo a mente de Deus. Apenas pede um “lembra-te de mim”. Era uma hora de trevas. É a esperança, mais do que a fé esclarecida que move o coração do segundo malfeitor. A esperança faz com que, mesmo não tendo toda a clareza da fé, diante da miséria das desilusões da vida, da doença e da morte, muitas pessoas, que antes colocavam suas seguranças em si mesmas, em suas posses, títulos e poderes, acabem colocando-se sob a dependência de Deus, às vezes muito pouco conhecido por elas, mas buscado pela esperança. No ladrão crucificado estão representadas muito mais pessoas que serão salvas do que na fé explícita de um São Pedro, São Paulo ou Santo Estevão. Deus não deixará de satisfazer a pessoa que tem um fio de esperança.

18Esperando, contra toda a esperança, Abraão teve fé e se tornou pai de muitas nações, segundo o que lhe fora dito: Assim será a tua descendência” (Rm 4,18; cf. Gn 15,5).

Pode-se dizer que a fé de Abraão em Deus, tão louvada na Sagrada Escritura era uma certeza do cumprimento de suas promessas. Abraão não conhecia tão bem a Deus, sua fé era rudimentar; ele é o primeiro ao qual Deus começa a revelar-Se. Mas teve esperança no cumprimento das promessas. É por esse prisma que São Paulo aborda a fé de Abraão, para basear a primazia da fé sobre as obras da Lei (Rm 4,13-14.16.20; 15,8). Abraão esperou o cumprimento da promessa. É não tanto o pai da fé, mais ainda o pai da esperança.

21Em seu nome as nações pagãs porão sua esperança” (Is 42,1-4; Mt 12,21).

Este versículo confirma que é mais pela esperança que pela fé esclarecida que muitos serão salvos.

25Pois dele diz Davi: Eu via sempre o Senhor perto de mim, pois ele está à minha direita, para que eu não seja abalado. 26Alegrou-se por isso o meu coração e a minha língua exultou. Sim, também a minha carne repousará na esperança, 27pois não deixarás a minha alma na região dos mortos, nem permitirás que o teu santo conheça a corrupção. 28Fizeste-me conhecer os caminhos da vida, e me encherás de alegria com a visão de tua face (Sl 15,8-11; At 2,25-28).

Este trecho do Salmo 15, utilizado por São Pedro em sua pregação no dia de Pentecostes revela que Jesus Cristo nos salvou porque não confiou em sua própria auto-defesa (“desça da cruz e acreditaremos”, diziam os judeus), mas esperou no Pai que lhe havia dado a natureza humana mortal e pelo qual é gerado eternamente no seio da Trindade.

A Carta aos Romanos se apresenta como exaltação da salvação pela fé e não pelas obras da Lei, mas pode ser vista também como exaltação da virtude teologal da esperança. Eis algumas passagens entre outras presentes nessa carta que aludem à importância da esperança.

“Por ele é que tivemos acesso a essa graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança de possuir um dia a glória de Deus” (Rm 5,2). “E a esperança não engana. Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). “Porque pela esperança é que fomos salvos. Ora, ver o objeto da esperança já não é esperança; porque o que alguém vê, como é que ainda o espera?” (Rm 8,24). “Nós que esperamos o que não vemos, é em paciência que o aguardamos” (Rm 8,25).

Assim como em Rm 5,5 São Paulo associa a esperança à caridade, também na Primeira Carta aos Coríntios faz o mesmo.

“[A caridade] tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,7). “Por ora subsistem a fé, a esperança e a caridade - as três. Porém, a maior delas é a caridade” (1Cor 13,13).

Também São João faz essa associação entre caridade e esperança. E dá um sentido ativo à esperança esclarecida pela fé. Quem vive a esperança purifica-se e torna-se semelhante a Jesus Cristo. A esperança dos bens eternos nos liberta do apego dos bens temporais que não podem dar vida eterna, embora dêem às pessoas a ilusão de uma segurança terrena.

1Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato. Por isso, o mundo não nos conhece, porque não o conheceu. 2Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é. 3E todo aquele que nele tem esta esperança torna-se puro, como ele é puro (1Jo 3,1-3).

A esperança tem um componente de confiança no amor do Criador, mesmo numa fé pouco esclarecida, como tentamos mostrar. É, portanto associada à caridade de Deus. E é a caridade de Deus que conquista o nosso coração para que possamos também nós termos caridade e amarmos a Deus acima de todas as coisas. São João associa a caridade também à fé, o conhecimento de Deus.

7Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. 8Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. 9Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: em nos ter enviado ao mundo o seu Filho único, para que vivamos por ele. 10Nisto consiste o amor: não em termos nós amado a Deus, mas em ter-nos ele amado primeiro, e enviado o seu Filho para expiar os nossos pecados (1Jo 4,7-10).

Para São João quem não tem caridade não conhece a Deus. Em outras palavras, não tem fé, se essa é justamente o conhecimento de Deus. Aqui vemos a limitação das profissões de fé. Podemos admitir as verdades da fé que a Igreja nos ensina. Mas não interpretarmos toda a realidade a partir da fé e continuarmos a colocar nossa segurança em atitudes egoístas, não reconhecendo que o caminho mais seguro é o que Jesus Cristo percorreu doando-se por inteiro e nada guardando para si. Conhecer o amor com que Deus nos amou e não amá-Lo é, segundo São João, impossível. Para São João o amor de Deus nos atrai e nos imerge n’Ele inexoravelmente.

Há uma busca de salvação que não inclui o amor de Deus. É aquela busca do jovem rico (cf. Mc 10,17-22). Queria alcançar a vida eterna, mais como um medo de condenação do que por amor a Deus. Na lógica do “sola fides” protestante também está esse medo da condenação. Professam que a natureza humana ficou irremediavelmente marcada pelo pecado e que ninguém pode alcançar a santidade, isto é, a perfeição da caridade. Que Jesus Cristo, recebendo sobre si o castigo que recairia sobre o pecador o justifica e salva. Este, então, não é condenado mas se salva. Como salvar-se se não tem a caridade? Como viver com Deus por toda a eternidade sem amá-Lo totalmente? Claro está que essa “salvação” está mais em oposição à condenação eterna do que uma verdadeira comunhão de amor com Deus, na vida da Santíssima Trindade. É verdade que o temor da condenação já é um passo no sentido da salvação, é melhor que a descrença e a indiferença. Mas a caridade supera simplesmente esse medo da condenação e deseja amar a Deus por Deus mesmo e não por medo da condenação, que, em última análise, tem em si por base um egoísmo.

As três virtudes teologais, virtudes infusas pelo Espírito Santo em nós, são nobilíssimas. A fé é voltada para Deus, pois tem no conhecimento de Deus a sua realização. O desejo de conhecer a Deus, que é a Verdade, leva a pessoa humana a Jesus Cristo, que revela Deus (cf. Jo 19,37). A esperança é voltada para a pessoa, no seu anseio de plenitude. E, como vimos pelas passagens bíblicas, se a fé e a esperança são autênticas nos levam à caridade, que é voltada para Deus, é renunciar a si mesmo para amar totalmente e ter toda a vida em Deus. Assim as virtudes teologais tendo seus pólos na pessoa humana e em Deus realizam o caminho que leva da pessoa humana, que anseia por vida plena, para Deus que é o Único no Qual a Vida Plena se realiza. Deus Se revela, a pessoa acolhe tal revelação (fé), passa a esperar nas promessas da revelação a realização de seus anseios mais profundos de plenitude de vida (esperança), daí passa a desejar sempre mais ver Deus, purificando seu coração do amor do mundo e suas concupiscências (cf. Mt 5,8; 1Jo 2,15-17).

6. As virtudes cardeais

As virtudes morais são de uma natureza diversa daquelas teologais, pois estas são infusas, são dons sobrenaturais e as virtudes morais são de ordem natural, adquiridas com o auxílio das virtudes teologais, mas com o desenvolvimento dos dons divinos naturais na pessoa.

Desde antes de Jesus Cristo todas as virtudes morais, que são muitas, percebeu-se que giravam em torno de quatro virtudes que, por causa disso, passaram a ser chamadas de virtudes cardeais (de cardo=eixo de dobradiça, eixo em torno do qual e apoiado ao qual uma coisa gira). Estas virtudes são a prudência, a temperança, a fortaleza e a justiça. Elas já são citadas no Livro da Sabedoria, último livro do Antigo Testamento a ser escrito, no ambiente helenístico de Alexandria, no Egito.

7E se alguém ama a justiça, seus trabalhos são virtudes; ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a força: não há ninguém que seja mais útil aos homens na vida” (Sb 8,7).

A prudência é a virtude da consciência. Dita a reta norma do agir, aplicando ao caso concreto que se apresenta na vida da pessoa os princípios morais gerais conhecidos pela consciência. É iluminada pelo dom do Espírito Santo chamado Conselho à escolha da melhor opção de ação em cada circunstância, aquela ação que seja mais de acordo com a vontade de Deus. No seu exercício prático a prudência se desdobra em duas outras virtudes: a temperança e a fortaleza.

A temperança é a liberdade em relação aos bens que se apresentam ao sujeito, a fim de servir-se deles na justa medida, sem escravizar-se aos bens segundo as inclinações da carne. Evita-se assim a gula, a avareza, a preguiça e muitos outros males que são o apego excessivo a alguns bens. Os alimentos, as posses, o descanso são, respectivamente, em si mesmo, bens, mas o seu excesso é danoso moralmente ao bem da pessoa. A temperança, sendo liberdade em relação aos bens, preserva a pessoa dos vícios, que são males morais.

A fortaleza é a liberdade em relação aos males que se apresentam ao sujeito. Ameaças, tentações, subornos e outros males contra a pessoa não devem levá-la a agir moralmente mal. A confiança em Deus, a coragem, o amor à verdade e ao Bem, a imparcialidade, a veracidade e outras virtudes são preservados pela fortaleza. A fortaleza, sendo liberdade em relação aos males, conserva na pessoa as virtudes, que são bens morais.

Possuindo pela prudência, a temperança e a fortaleza, constrói-se na pessoa a virtude da justiça, que engloba todas as virtudes morais. A justiça consiste em uma relação correta da pessoa com Deus, em primeiro lugar, e também com todas as outras pessoas e todas as outras criaturas, segundo a ordem estabelecida pelo Criador. A justiça traz a harmonia das relações que, nesta vida, deve ser sempre construída, a cada momento, não estando nunca garantida para o futuro, pois o justo é constantemente tentado na virtude da justiça, por causa da presença dos pecadores sobre a terra. A harmonia das relações não é sempre uma paz externa, uma ausência completa de conflitos (cf. Mt 11,12), mas uma paz interna de quem no mundo pecador faz a vontade de Deus.

Citemos, por exemplo, dois homens justos. José era um homem justo (cf. Mt 1,19). Mesmo assim teve conflitos quando da concepção virginal de Maria (cf. Mt 1,19-20), que fugir à noite para o Egito (cf. Mt 2,13-15), e evitar Arquelau (cf. Mt 2,22). Embora tenha tido esses conflitos devido aos pecados dos homens sua relação com Deus e com todas as pessoas foi perfeita, segundo a prudência e a justiça. João Batista também foi um homem justíssimo (cf. Mt 11,11). E não faltaram conflitos em sua vida, seja com os fariseus a quem teve de chamar de “raça de víboras” (cf. Mt 3,7; Lc 3,7), seja com Herodes e Herodíades, conflito que causou sua gloriosa morte (cf. Mc 6,17-29). Mas a relação de João Batista com Deus e todas as pessoas foi perfeita, segundo a prudência, a sinceridade, a coragem e a justiça, falando e agindo sempre em vista do bem de todos.

Assim, a prudência se abre em temperança e fortaleza e essas se unem formando a justiça, completando como que um quadrilátero, mostrando a íntima relaçãntima relaçando a mperança e fortaleza e essas se unem formando a justiça, completando como que um quadrilens. eixo em torno dôoo entre as virtudes cardeais.

Nona Parte: O Pecado

1. A realidade onipresente do pecado no mundo decaído da graça.

13. O Pecado

A realidade do pecado é aquela que se opõe à realidade da graça. Torealidade da graça. do pecado tem o seu paradigma no pecado original. A tentação de “ser como Deus”, isto é, auto-suficiente, não dependendo de ninguém. A sugestão diabólica que está sempre diante de cada pessoa é a de viver buscando a vida por sua própria força e inteligência, sem se submeter a Deus, verdadeira fonte e mantenedor de toda existência e toda vida. A Verdade é que a pessoa humana é criatura e recebeu a existência pela graça de Outro, Deus, e depende d’Ele sempre.

16Porque o justo cai sete vezes, mas ergue-se, enquanto os ímpios desfalecem na desgraça” (Pr 24,16).

A experiência do pecado é tão universal que o sábio anotou nos Provérbios que o justo cai sete vezes (ao dia?), mas se ergue. O ímpio peca mais ainda e não se ergue do pecado. É mais a experiência de arrepender-se e penitenciar-se do que a experiência de não pecar que faz a diferença diante do Senhor. Isto percebe-se ao ler o Evangelho. Dá a impressão que para os fariseus a humanidade se dividia entre justos e pecadores. Jesus Cristo pergunta aos que acusam a mulher adúltera:

7Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes: Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra. 8Inclinando-se novamente, escrevia na terra. 9A essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se foram retirando um por um, até o último, a começar pelos mais idosos, de sorte que Jesus ficou sozinho, com a mulher diante dele (Jo 8,7-9).

Todos se reconheceram pecadores. Para Jesus Cristo, a humanidade se divide entre pecadores que fazem penitência e pecadores que não fazem penitência. A penitência é o sinal de submissão ao Reino de Deus, que predispõe ao perdão, pois embora a pessoa não consiga abster-se plenamente do pecado, devido à fragilidade da vida humana corporal e mortal sobre a terra, ela se coloca sob a dependência da misericórdia de Deus. O anúncio inicial de João Batista, que praticava um batismo exatamente de penitência (cf. Mc 1,4), e de Jesus Cristo é o mesmo e convida a essa submissão ao Reino de Deus decretado.

2Dizia ele [João Batista]: Fazei penitência porque está próximo o Reino dos Céus (Mt 3,2).

15Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho (Mc 1,15).

O Evangelho é justamente a salvação da pessoa humana “de seus pecados”, das conseqüências de perdição que se deveriam ao pecado, por causa da graça misericordiosa de Deus ao pecador que se submete à autoridade divina, à dependência da misericórdia divina.

18Eis como nasceu Jesus Cristo: Maria, sua mãe, estava desposada com José. Antes de coabitarem, aconteceu que ela concebeu por virtude do Espírito Santo. 19José, seu esposo, que era homem de bem, não querendo difamá-la, resolveu rejeitá-la secretamente. 20Enquanto assim pensava, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: José, filho de Davi, não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados (Mt 1,18-21).

O próprio nome de Jesus significa “Javé salva” e o Anjo do Senhor declara a José que Jesus salvará o povo dos seus pecados. Aqui está em germe toda a passagem do regime da Lei, que condenava o pecador, para o regime da graça que é o da Verdade, que é a pessoa humana se colocar sob a total dependência de seu Criador divino.

2. O Pecado, a morte e a destruição do potencial de vida da Criação divina

A graça divina criou tudo o que existe e é sempre promotora de vida. O pecado tem como característica a “luta” da pessoa humana para viver sem a graça, para ter a vida por seus trabalhos, sua força e sua inteligência, numa dependência da criatura. Esta “luta” traz sempre uma insegurança que leva a buscar segurança no acúmulo e no armazenamento dos bens. Este acúmulo e armazenamento torna esses bens estéreis, tirando deles o potencial de geração de vida que está em tudo o que Deus criou. Todas as coisas subsistem no Logos (cf. Cl 1,17) e o Logos de Deus é Vida e transmissão de vida. Pensemos num casal que por medo de passar privações acumula bens e evita filhos. Quanta vida foi rejeitada, nos milhares de casais que vivem essa insegurança. Pensemos nas habitações vazias, adquiridas só para especulação imobiliária, quando há tantos desabrigados. Pensemos no capital imobilizado para fins especulativos e que nada gera de vida. Pensemos nos gastos com arsenais que ficam parados e se tornando obsoletos, justificados só pela insegurança das populações. Quanta energia gasta em atividades egoístas e que não geram vida, mas morte como a produção de tóxicos, de armas, e de supérfluos, que nada acrescentam à vida na terra. A confiança na ciência humana como fonte de felicidade, não segundo os critérios do Criador, mas segundo os caprichos da criatura, leva a congelar uma quantidade imensa de pessoas humanas em estado embrionário; depois a matar essas pessoas como se fossem coisas em pesquisas de utilização de células-tronco para a formação de tecidos em busca de saúde para outros seres humanos. Enquanto alguns seres humanos alimentarem esperanças para si através da morte de outros seres humanos, a morte vai imperar na humanidade e o potencial de vida que a terra pode produzir será desperdiçado pelo pecado da pessoa humana. Pense-se no desperdício das sociedades opulentas dos países chamados “desenvolvidos” que esbanjam e desperdiçam porque tem demais porque exploram as sociedades de outros países, sub-desenvolvidos. Quanta morte é produzida. Quanta gente pensa que come, se veste e se diverte inocentemente, mas esses bens custam a vida dos povos oprimidos. Tudo isso vem da insegurança da pessoa humana após o pecado original, querendo uma “felicidade” na vida mortal que necessariamente é efêmera e ilusória. A população viva do mundo é menos de um terço do que poderia ser se houvesse um verdadeiro amor à vida e as pessoas vivessem na graça de Deus, voltadas para agradecer pela vida e transmitir a vida que receberam. São bilhões e bilhões de pessoas que não chegaram a existir e outras que morreram precocemente na imensa destruição e não-construção da vida devida ao pecado.

3. Pecado venial, pecado mortal, opção fundamental e penitência.

Da distinção entre pecador penitente e pecador impenitente, que faz a verdadeira diferença entre os que se salvam e os que não se salvam podemos entender melhor o que é pecado mortal (que leva à morte eterna, à condenação) e pecado venial (que não leva diretamente à condenação).

A distinção tradicional diz que o pecado mortal é o pecado em que o objeto da ação é de matéria grave, cometido com pleno conhecimento dessa matéria e com plena liberdade, sem coação. O Catecismo da Igreja Católica, n. 1858, identifica a matéria grave pelos Dez Mandamentos, especialmente aqueles citados por Jesus Cristo no diálogo com o jovem rico:

19Conheces os mandamentos: não mates; não cometas adultério; não furtes; não digas falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe (Mc 10,19).

Se faltar um desses três elementos, a gravidade de matéria, a advertência ou a plena liberdade, o pecado seria venial. Essa distinção parece não considerar tanto a pessoa em sua história espiritual. Permanece válida e foi reafirmada pelo Papa João Paulo II na Carta Encíclica Veritatis Splendor, n. 70, repetindo a definição da Exortação Apostólica Reconciliatio et Paenitentia, n. 17. Se levarmos em conta a história espiritual de cada um podemos supor, ao menos numa consideração externa (pois só Deus vê a intenção e a sinceridade dos corações), que não há plena liberdade na recaída no pecado do pecador que está buscando sinceramente deixar determinada atitude de pecado que ficou bastante arraigada nos seus hábitos. A busca sincera de obedecer a Deus não muda a pessoa, a não ser em casos extraordinários, de uma hora para a outra. Muitas vezes a luta contra o pecado é bastante dramática. O pecado venial, segundo a definição tradicional, sem penitência leva, segundo todos os mestres espirituais, ao pecado mortal. Parece-nos, portanto, que a diferença é marcada pela sinceridade da penitência do sujeito. Isto corresponde a um anseio dos teólogos morais de nosso tempo, sensíveis à história espiritual da pessoa em sua luta contra o pecado. Nessa sensibilidade alguns teólogos propuseram a teoria da opção fundamental. Segundo essa teoria a pessoa decide sobre si mesma, em relação ao Bem, a Verdade, a Vida e a Deus, não apenas em seus atos particulares, mas através de algumas decisões atuadas por uma “liberdade fundamental”, que dão forma a toda a sua vida moral, e fora das quais não se poderia compreender nem julgar seus atos. Essa “opção fundamental” é que definiria de forma transcendental o perfil moral da pessoa. Os atos particulares constituiriam só tentativas parciais e nunca definitivas de exprimi-las, seriam sinais ou “sintomas” dela. Um ato particular, dizem se refere sempre a bens particulares e nunca, isoladamente, ao Bem Absoluto, que só poderia ser objeto de uma “opção fundamental” de toda a vida da pessoa. A Igreja condenou esta teoria (cf. Carta Encíclica Veritatis Splendor, n. 65) porque introduz uma distinção entre a “opção fundamental” do sujeito e as escolhas deliberadas dos comportamentos concretos. Isso leva a não considerar o conteúdo moral do objeto dos atos, caindo na tentação da filosofia moderna de desconhecer a verdade (também a bondade ou maldade) objetiva das coisas, para colocar o julgamento moral do ato no sentido subjetivo que a pessoa dê ao ato. E já vimos que a realidade de Deus Criador, e da dependência de todos os seres a Ele, dá aos seres um valor que não nos permite dar, nós mesmos, um sentido a cada um. O valor dos seres está intrínseco neles mesmos pela ordem que Deus deu ao universo. A tentação de a pessoa dar, ela mesma, um sentido às coisas, a partir das situações, é também a tentação de ficar no lugar de Deus, de “ser Deus”, como no pecado original. Pensamos que a nossa proposta de respeitar o elemento subjetivo ao julgar a liberdade do pecador conforme a sinceridade de sua penitência, valoriza a história espiritual do pecador, auxilia o uso do critério tradicional adotado pela Igreja, e não separa o julgamento moral do sujeito da escolha deliberada de seus atos humanos. E traz uma carga de misericórdia para o penitente sincero.

O critério da sinceridade da penitência é o critério evangélico. O “Convertei-vos” de Mc 1,15 ou Mt 3,2 é muitas vezes traduzido por “fazei penitência”. A penitência é a submissão do pecador ao Reino de Deus, ao senhorio de Jesus Cristo. João Batista, para preparar o caminho do Senhor, prega a penitência.

1Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia. 2Dizia ele: Fazei penitência porque está próximo o Reino dos céus. 3Este é aquele de quem falou o profeta Isaías, quando disse: Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas (Is 40,3). 4João usava uma vestimenta de pêlos de camelo e um cinto de couro em volta dos rins. Alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. 5Pessoas de Jerusalém, de toda a Judéia e de toda a circunvizinhança do Jordão vinham a ele. 6Confessavam seus pecados e eram batizados por ele nas águas do Jordão. 7Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera vindoura? 8Dai, pois, frutos de verdadeira penitência. 9Não digais dentro de vós: Nós temos a Abraão por pai! Pois eu vos digo: Deus é poderoso para suscitar destas pedras filhos a Abraão. 10O machado já está posto à raiz das árvores: toda árvore que não produzir bons frutos será cortada e lançada ao fogo. 11Eu vos batizo com água, em sinal de penitência, mas aquele que virá depois de mim é mais poderoso do que eu e nem sou digno de carregar seus calçados. Ele vos batizará no Espírito Santo e em fogo (Mt 3,1-11).

Em outras passagens Jesus também recomenda a penitência.

13Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e Sidônia tivessem sido feitos os prodígios que foram realizados em vosso meio, há muito tempo teriam feito penitência, cobrindo-se de saco e cinza” (Lc 10,13).

32Os ninivitas levantar-se-ão no dia do juízo para condenar os homens desta geração, porque fizeram penitência com a pregação de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas” (Lc 11,32).

7Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um só pecador que fizer penitência do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15,7).

46Assim é que está escrito, e assim era necessário que Cristo padecesse, mas que ressurgisse dos mortos ao terceiro dia. 47E que em seu nome se pregasse a penitência e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24,46-47).

1Neste mesmo tempo contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara com os seus sacrifícios. 2Jesus toma a palavra e lhes pergunta: Pensais vós que estes galileus foram maiores pecadores do que todos os outros galileus, por terem sido tratados desse modo? 3Não, digo-vos. Mas se não fizerdes penitência, perecereis todos do mesmo modo. 4Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais caiu a torre de Siloé e os matou, foram mais culpados do que todos os demais habitantes de Jerusalém? 5Não, digo-vos. Mas se não fizerdes penitência, perecereis todos do mesmo modo (Lc 13,1-5).

O esquema tradicional de pecado mortal e pecado venial fora da consideração da penitência da vida inteira da pessoa, ao considerar só os momentos das ações encontra uma série de dificuldades. Se uma pessoa adquiriu um hábito vicioso pode ser responsável por tê-lo adquirido. Mas mesmo já tendo se arrependido e recebido o Sacramento da Penitência, conserva em si a tendência viciosa. Está perdoada das ações que inocularam nela o vício. Assim, por ser viciada, tem sua liberdade afetada e, ao cometer a falta levada pelo vício não poderá ser acusada de pecado mortal, porque não goza de plena liberdade interior. E continuará pecando. O que fará a diferença? A sua penitência, a sincera busca de meios que a libertem desse vício, a sincera vontade de readquirir a liberdade que a torne capaz de não mais pecar.

O critério da penitência inclui uma relação dialógica com Deus por parte da pessoa, que, mesmo sem conseguir libertar-se totalmente do poder do pecado sobre ela, de sua vontade se submete ao Reino de Deus, quer sinceramente obedecer a Deus. O critério pontual do pecado mortal ou venial realiza o confronto não tanto com Deus que estabelece o seu Reino e convida à submissão a ele, mas com a Lei em si mesma, e só indiretamente, através da Lei, a pessoa estará se submetendo a Deus. Deve-se levar em conta a história espiritual da pessoa (de penitência ou impenitência) e não apenas o ato isolado para poder-se conhecer o perfil moral da pessoa.

Consideremos uma determinada pessoa recebeu uma educação esmerada, inclusive reliogiosa católica, e sabe controlar-se bastante bem. É honesta, dentro dos padrões sociais, e tem uma série de qualidades e virtudes. Seu horizonte de ação, porém, é a busca do sucesso profissional, a vitória na carreira que escolheu e busca tal objetivo com atitudes moralmente aceitáveis. Consideremos também o caso de uma pessoa que nasceu num ambiente moralmente corrompido e adquiriu na infância e na juventude uma série de vícios, aliada à carência de meios materiais, o que a levou a praticar diversos furtos. Esta pessoa, mal-educada e, cheia de pecados, recebeu o anúncio da Palavra de Deus e luta desesperadamente para libertar-se dos males morais que lhe vieram das suas origens. Busca ajuda para libertar-se dos vícios, mas às vezes tem suas recaídas. Quer a conversão, mas carrega o peso de um passado de dores. Qual dos dois agradará mais a Deus? O primeiro que não pratica ações moralmente condenáveis, mas cujo horizonte de vida é materialista e imanente ou o segundo, que teme a Deus, mas se vê vítima da fraqueza humana e de uma educação viciosa?

48Mas aquele que, ignorando a vontade de seu senhor, fizer coisas repreensíveis será açoitado com poucos golpes. Porque, a quem muito se deu, muito se exigirá. Quanto mais se confiar a alguém, dele mais se há de exigir” (Lc 12,48).

Consideramos também aqui, como no capítulo sobre as virtudes, que o que mais determina a pessoa não é tanto sua correção moral em si mesma, mas a direção à qual dirige sua vida. Parece-nos que no exemplo acima, a segunda pessoa, embora moralmente menos desenvolvida, caminha melhor para o Reino de Deus do que a primeira, tal como na parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18,9-14), o publicano que, moralmente, tinha uma vida mais censurável do que a do fariseu voltou justificado para sua casa e não assim o fariseu. O publicano se colocou sob a dependência de Deus. O fariseu apoiou-se em sua própria moral.

4. Os pecados capitais

A experiência cristã, recolhida por São João Cassiano e São Gregório Magno (cf. CIC 1866), identificou sete vícios como capitais, ou seja, as “cabeças”, que eliminados evitariam todos os outros pecados. Nós dissemos neste tratado que a moral cristã se apóia em três princípios, que observados também levariam a conduta humana à perfeição. Convém, pois, relacionar os princípios que citamos com os pecados capitais mostrando a plena harmonia entre os princípios da moral cristã e os pecados capitais, na unidade da sabedoria cristã.

Os vícios capitais são a soberba, ou orgulho, a avareza, a luxúria, a inveja, a gula, a ira e a preguiça.

Os princípios da moral cristã são:

a) A criação ex nihilo, “do nada”, pela qual toda criatura deve agradecer por tudo a Deus e nunca “julgar” a sua existência, pois Deus não cria nada para o mal. É o princípio da ação de graças.

b) A unidade fundamental de todos as pessoas humanas, criadas na unidade de vida, à imagem das Pessoas da Santíssima Trindade, que formam uma perfeita unidade de vida, uma só Essência divina.

c) A destinação de todas as coisas, inclusive as outras pessoas para o bem de cada pessoa humana e a destinação de cada pessoa humana só para Deus, nunca colocando sua glória nas outras pessoas humanas, conforme 1Cor 3,21-23: “21Portanto, ninguém ponha sua glória nos homens. Tudo é vosso: 22Paulo, Apolo, Cefas, o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! 23Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus”.

O primeiro princípio coloca a pessoa totalmente em ação de graças a Deus, mesmo que sua vida apresente sofrimentos e morte, coisas que Deus permite em vista de um bem maior para a pessoa, que é a vida eterna e o não apoiar-se nas realidades criadas como sua fonte, mas só em Deus. Este “saber receber” toda a existência sem julgá-la elimina toda soberba e orgulho. Elimina também a ira, que é uma manifestação da soberba pessoal em oposição ao semelhante. A pessoa sabe-se dependente totalmente de Deus, não se imagina nunca auto-suficiente. A pessoa também vivendo da graça não usurpa para si algo que não lhe seja dado por graça de Deus, num modo socialmente honesto, e isto a separa da avareza (sob o aspecto de ganância), da gula e da luxúria, que são usurpação do que é agradável à carne. Este princípio também faz a pessoa se aceitar diante de Deus com seus dons e características, em ação de graças, evitando toda comparação com outra pessoa, admitindo a liberdade de Deus de dar seus dons como Lhe aprouver, e isto elimina toda inveja. A ação de graças leva a acreditar na potencialidade dos dons que Deus deu à pessoa e isto cria um princípio ativo, de esperança que elimina a preguiça. Deste modo o primeiro princípio da moral cristã elimina os sete pecados capitais.

O segundo princípio da moral cristã faz a pessoa uma só vida com seu semelhante segundo a unidade de vida das Pessoas da Santíssima Trindade. Assim a pessoa se alegra pelo bem da outra, sabendo que o bem da outra pessoa, de certo modo, é bem para si também. Isto já elimina a soberba, a inveja e a ira, que separam as pessoas. Na unidade os meus dons são para o bem de todos, não só meu, e isto leva a um impulso de generosidade que elimina toda avareza (sob o aspecto de egoísmo) e gula, pois o meu excesso pertence ao meu semelhante. Elimina também a preguiça, pois meu impulso me leva a querer fazer bem ao semelhante, pois este é meu bem também. O desenvolvimento de meus dons faz bem ao meu próximo e por meio dele a mim mesmo. E, finalmente, como a unidade das pessoas tem seu paradigma na unidade do homem e da mulher, uma só carne, no matrimônio, isto me preserva da luxúria também. Deste modo o segundo princípio da moral cristã elimina também os sete pecados capitais.

O terceiro princípio coloca-me diretamente destinado a Deus e libera-me de toda idolatria de qualquer criatura, que está em cada pecado capital.

Décima parte: Os dons e os frutos do Espírito Santo

1. Os dons do Espírito Santo: escada de Jacó para a pessoa humana.

Os dons do Espírito Santo são disposições da alma da pessoa cheia do espírito de comunhão com Deus, na vivência das virtudes teologais infusas. São a sabedoria, o entendimento, ou inteligência, o conselho, a fortaleza (que se aproxima da virtude cardeal, mas como dom divino), a ciência, a piedade e o temor de Deus. Seis destes dons estão descritos como atributos do Messias:

1Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. 2Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor. 3Sua alegria se encontrará no temor ao Senhor. Ele não julgará pelas aparências, e não decidirá pelo que ouvir dizer (Is 11,1-3).

Completando o número de sete, a Igreja incluiu o dom da piedade, citado em inúmeras passagens bíblicas em relação com a Sabedoria. Citamos duas.

37O Senhor fez todas as coisas: ele dá sabedoria àqueles que vivem com piedade” (Eclo 43,37).

9Quanto aos que a honram, a Sabedoria os liberta de sofrimentos; 10foi ela que guiou por caminhos retos o justo que fugia à ira de seu irmão; mostrou-lhe o reino de Deus, e deu-lhe o conhecimento das coisas santas; ajudou-o nos seus trabalhos, e fez frutificar seus esforços; 11cuidou dele contra ávidos opressores e o fez conquistar riquezas; 12ela o protegeu contra seus inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no duro combate, deu-lhe vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que tudo” (Sb 10,9-12).

Santo Agostinho afirma que em Isaías a ordem vai da sabedoria ao temor porque a Palavra de Deus vem do céu para a terra, e os dons do Espírito Santo são como degraus de uma “escada de Jacó” para nos levar da terra ao céu. Então devemos principiar pelo temor de Deus, que é o princípio da sabedoria (cf. Pr 1,7; 9,10).

“Para estimular-te por alguns degraus de doutrina, desceu Isaias da sabedoria até o temor, isto é, do lugar da eterna paz até o vale do pranto temporal: para que tu, na confissão da penitência, nas dores, sofrendo, gemendo, chorando, não permaneças na dor, no gemido e no pranto: mas alçando-se deste vale até o monte espiritual, onde a cidade santa de Jerusalém, nossa mãe eterna, tem os fundamentos, gozes de alegria imperturbável.

Por isso ele, ao colocar em primeiro lugar a sabedoria, vale dizer, o lume inextinguível da mente, ajuntou-lhe a inteligência: como para responder aos que perguntassem de onde chegaríamos à sabedoria: a partir da inteligência: de onde chegaríamos à inteligência, do conselho; ao conselho, da fortaleza: à fortaleza, da ciência: à ciência, da piedade; à piedade pelo temor.

Por conseguinte, atingimos a sabedoria a começar do temor: porque o início da sabedoria é o temor do Senhor. Do vale do pranto até o monte da paz.” (Santo Agostinho, Sermão 347,2).

Os dons do Espírito Santo se deve procurar. A Igreja está sempre invocando o Veni Creátor Spiritus, pedindo a vinda do Paráclito que Jesus prometeu.

7Eis o princípio da sabedoria: adquire a sabedoria. Adquire a inteligência em troca de tudo o que possuis” (Pr 4,7).

Deve-se desejar a sabedoria divina acima de todos os bens terrenos. Com ela nos vem todas as coisas (cf. Mt 6,33; Lc 12,31).

11Com ela [a Sabedoria] me vieram todos os bens, e nas suas mãos inumeráveis riquezas” (Sb 7,11).

11Com efeito, ela [a Sabedoria] sabe e conhece todas as coisas; prudentemente guiará meus passos, e me protegerá no brilho de sua glória” (Sb 9,11).

2. Os frutos do Espírito Santo e as virtudes humanas

Os frutos do Espírito Santo são:

22 ... o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, 23brandura, temperança. Contra estas coisas não há lei” (Gl 5,22-23).

Completando o número doze, baseada em outras passagens bíblicas, a Igreja acrescentou ainda: humildade, longanimidade e castidade. Os frutos do Espírito Santo não são procurados em si mesmos, mas como o nome diz, devem ser frutos, efeitos da ação dos dons do Espírito Santo em nós.

Alguns podem se colocar contra este ponto de vista. Como não deve-se procurar a humildade, a castidade, a paciência e outros frutos do Espírito Santo, que são também virtudes morais? Respondemos com a nossa visão da moral de virtudes, que já expusemos acima. O cristianismo não é uma coleção de virtudes, como a ascese grega ou chinesa. É uma relação pessoal, dialógica, entre as Pessoas Divinas e a pessoa humana. Deus revela a Verdade e a Verdade nos liberta (cf. Jo 8,32). Por isso, achamos que a reta consideração de Deus e da condição dependente da pessoa humana, levará ao temor de Deus e daí aos outros dons do Espírito Santo, até à Sabedoria, numa relação viva da pessoa, não com uma lei, mas com Deus, por meio da realidade. As virtudes aparecerão no comportamento da pessoa mais como frutos desse relacionamento que é realizado pelo Espírito Santo do que como um esforço para ser fiel a uma lei ou uma proibição. A vida moral de muitos cristãos é árdua por falta desse relacionamento de amor pessoal a Deus. Confrontam-se com uma lei que a Igreja propõe e buscam obedecê-la para assim agradar a Deus. Deus aí aparece mais como quem propõe uma lei do que alguém que se encarna para entrar num relacionamento pessoal com a pessoa humana. Muitas vezes é difícil para a fraqueza humana passar da aliança antiga da lei para a nova aliança do Espírito. O cristão maduro vive o relacionamento com Deus invisível como se fosse visível (cf. Hb 11,27).

Décima-primeira parte: Os conselhos evangélicos e as obras de misericórdia.

A tradição catequética católica, inspirada no Evangelho, propôs sempre a vivência dos chamados “conselhos evangélicos” e das “obras de misericórdia”. Um tratado de moral católica ficaria incompleto se não incluísse uma consideração sobre esse tema.

1. Os conselhos evangélicos, caminhos para a liberdade.

Os conselhos evangélicos, que caracterizam a consagração religiosa, são a pobreza, a castidade virginal (que se distingue da castidade matrimonial) e a obediência. A vivência desses três conselhos é vivência da liberdade evangélica que brota da Verdade. A Verdade é que Deus é o nosso Criador e único Mantenedor de nossa existência e de nossa vida, mesmo para além da morte corporal.

A pobreza é a vida livre em relação à dependência de todas as criaturas, não só coisas, dinheiro ou propriedades, mas também pessoas, que apóiam, que aplaudem e que alimentam com afetos a nossa sensibilidade. A pobreza testemunha a Verdade de que Deus só é o sustento da vida da pessoa humana.

A castidade virginal antecipa a realidade de nossa divinização. Somos criados em vista de entrar na comunhão divina na participação da vida da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade pela unidade do Espírito Santo (cf. Ef 1,5; Cl 1,18). Isto é como um “casamento” com Jesus Cristo, uma comunhão eterna de vida com Ele. Todo cristão batizado é, assim, “casado” com Jesus Cristo, para viver essa comunhão de vida na terra e depois, por toda a eternidade. O matrimônio cristão é um sacramento em que um membro de Jesus cristo é dado a outro como sinal visível do Esposo invisível nesta terra (cf. Ef 5,25-32). Por isso se diz que o matrimônio vigora até que a morte os separe. Após a morte, o Esposo invisível não estará mais invisível e não haverá mais necessidade do sacramento. O Esposo Divino será a comunhão de todos, que viverão “como os anjos no Céu” (cf. Mt 22,30). O estado de castidade virginal antecipa a união definitiva, dispensando o sinal sacramental do matrimônio, e amando o Esposo Divino em todo o seu corpo, que é a Igreja (cf. Cl 1,18). Assume assim a realidade eterna para a qual a pessoa humana foi criada, libertando da dependência do amor humano, e seguindo o exemplo da vida terrena do Salvador. São Paulo afirma que a castidade virginal mantém a unidade do coração (cf. 1Cor 7,32-34), ou seja, do projeto de vida da pessoa. Isto também é liberdade.

A obediência faz a pessoa confiar os seus caminhos terrenos à Providência Divina, que atua através de outras pessoas, encarregadas pelas comunidades. Isto é expressão da Verdade de Deus como Mantenedor das criaturas e liberta a pessoa da tentação de prover a si mesma pela sua própria vontade, poderes e inclinações.

2. As obras de misericórdia: a pessoa como instrumento da graça de Deus e o método da Encarnação.

Além dos conselhos evangélicos, a tradição catequética cristã propõe as obras de misericórdia. São quatorze, ao todo, sendo sete chamadas corporais e sete chamadas espirituais.

As obras de misericórdia são expressão do princípio da unidade (segundo princípio da moral cristã) em que a pessoa transmite os dons de Deus que lhe foram dados para o benefício do gênero humano e não para vanglória individual e também do princípio da graça (primeiro princípio da moral cristã): “De graça recebestes, de graça dai” (Mt 10,8).

As obras de misericórdia corporais são:

  1. Dar de comer a quem tem fome.
  2. Dar de beber a quem tem sede.
  3. Vestir os nus.
  4. Dar pousada aos peregrinos.
  5. Visitar os enfermos e encarcerados.
  6. Remir os cativos.
  7. Enterrar os mortos.

As de números 1, 2, 3, 4 e 5 são diretamente sacadas do julgamento final na versão mateana (Mt 25,31-46).

34Então o Rei dirá aos que estão à direita: - Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do Reino que vos está preparado desde a criação do mundo, 35porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; 36nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim” (Mt 25,34-36).

A sexta obra de misericórdia, “remir os cativos”, quisemos colocá-la na sua redação mais antiga e tradicional. Antigamente algumas ordens religiosas, como os mercedários, tinham na remissão dos escravos seu carisma principal. Hoje, pensando banida a escravidão, esta obra de misericórdia é omitida nos catecismos atuais e a quinta é desmembrada em duas, uma só para os enfermos e outra só para os encarcerados, para manter o número total de sete. Discordamos e preferimos a versão mais antiga, pois nos parece que a escravidão continua, sob outras formas na concorrência da sociedade materialista onde as pessoas se aceitam muito tranqüilamente em classes sociais distintas. No nosso caso, remir os cativos é aumentar os ganhos materiais e as oportunidades culturais das pessoas das classes inferiores da sociedade, como fazem professores que dão aulas gratuitamente para alunos pobres buscando possibilitar seu ingresso na universidade e o desenvolvimento de seus dons, que foram dados por Deus para o bem do gênero humano. Também os que defendem a vida não-nascida, seja no útero materno, sejam as pessoas humanas em estado embrionário que se encontram congeladas e muitos usam e desejam usar como material disponível para pesquisas científicas. Os que libertam os reféns de grupos terroristas e guerrilheiros, ou mesmo pessoas seqüestradas. Há pessoas cativas da fome, da doença, da falta de habitação e instrução. Os exemplos podem se multiplicar. Há muitos cativos a serem remidos no mundo de hoje. O fato da escravidão como tal não ser mais reconhecida como instituição no mundo atual, não significa que não há mais cativos a serem remidos no mundo atual. Há e em número enorme.

A sétima obra de misericórdia, “enterrar os mortos”, faz considerar a pessoa mesmo já morta para este mundo como objeto de consideração e caridade. A matéria do corpo humano morto continua associada à pessoa falecida e merece consideração não sendo simplesmente matéria disponível. No mundo atual surgiu a possibilidade de doação de órgãos para transplantes e a cremação. A cremação não deve ser sinal de negação do valor do corpo humano morto nem sinal de negação da fé na ressurreição. Num mundo que tem dificuldade em aceitar a morte corporal, por falta de fé na vida eterna, a cremação pode se tornar popular como uma forma da morte não deixar sinais sociais, o que seria um empobrecimento e reforçaria a alienação, a vontade da pessoa de não considerar a sua realidade, mas procurar uma experiência virtual, longe da realidade que inclui a morte. A doação de órgãos é nobre e está na linha do que apresentamos neste tratado de que o que se recebe de graça deve-se dar de graça. Doar órgãos é um ato de caridade póstumo que a pessoa pode pedir para fazer em vida. E cremos não ser contra a consideração para com os restos mortais da pessoa falecida o sepultamento diretamente na terra, afim de que o seu corpo, alimentado pelos frutos da terra torne-se alimento da terra numa reciclagem total de seus elementos, numa doação não apenas de alguns órgãos, mas de todo o corpo à natureza, coisa impedida nos túmulos de pedra, cimento e tojolos. Achamos que, numa época que valoriza tanto a ecologia e a reciclagem dos elementos naturais, a popularização da cremação é absolutamente anti-ecológica.

As obras de misericórdia espirituais são:

  1. Dar bom conselho.
  2. Ensinar os ignorantes.
  3. Castigar os que erram.
  4. Consolar os aflitos.
  5. Perdoar as injúrias.
  6. Sofrer com paciência as fraquezas do próximo.
  7. Rogar a Deus pelos vivos e defuntos.

Os bens espirituais recebidos são também graças recebidas que devem ser, por sua vez, dadas ao próximo. Quem tem luz, deve iluminar quem não tem. Naturalmente que, para isso, é preciso conhecer profundamente a lógica da Encarnação. A pessoa humana aceita com mais facilidade a obra de misericórdia corporal do que a espiritual. Quem tem fome, aceita bem a comida oferecida e quem tem frio aceita logo a roupa e o agasalho. Mas quem erra, não é com facilidade que aceita a correção. A Encarnação de Jesus Cristo nos ensina que Ele, para nos corrigir e trazer do pecado para a graça, nos amou e suportou o nosso pecado, descendo ao nosso nível humano decaído, sofrendo as nossas tentações, para nos elevar ao nível divino. Ele praticou com perfeição todas as obras de misericórdia espirituais, oferecendo-se inteiramente no Seu ensino – era o Mestre – e na Sua Paixão, perdoando os que o torturavam e suportando a fraqueza e malícia humanas em Sua Carne adorável. Para ensinar os ignorantes e admoestar os que pecam (formulação moderna da terceira obra de misericórdia espiritual) é preciso conquistar o coração da pessoa pecadora e isso é fruto de uma caridade encarnada, que aceita a pessoa antes de tentar corrigi-la, tal como Jesus Cristo fez para conosco. Aqui entra o primeiro princípio da moral cristã, que nos ensina a aceitar toda a realidade que nos circunda como dom amoroso de Deus, e nessa realidade está a presença dos ignorantes e dos pecadores. Só aceitando-os e convencendo-os de serem amados é que conquistaremos seus corações para que acreditem que nossas correções não são um ato de poder e dominação, de superioridade sobre eles, mas o amor em ato.

“Ele não quebrará o caniço rachado, nem apagará a mecha que ainda fumega, até que faça triunfar a justiça” (Mt 12,20).

“Que os mestres amem o que agrada aos jovens e os jovens amarão aquilo que agrada aos mestres ... Que os jovens não somente sejam amados mas que possam saber que são amados” (São João Bosco, Carta de 10 de maio de 1884).

O conhecimento do método da Encarnação é indispensável à realização das obras de misericórdia espirituais, que são aquelas que levam à salvação da pessoa humana. A sua prática exige a vivência de um pleno despojamento de si. É sinal da comunhão do próprio Jesus Cristo que vive na pessoa que pratica tais obras, pela virtude do Espírito Santo.

Décima-segunda parte: Temas de Vida Cristã

1. A Adoração a Deus

Vimos que a vida da pessoa humana expulsa do paraíso terrestre é uma vida insegura, pela presença da morte e de seus sinais. Então surge a possibilidade de adorar realidades que não são Deus. O que a pessoa adora. Não sempre a pessoa adora aquilo que pensa adorar ou diante do qual se prostra em um rito religioso. A pessoa adora aquela realidade que a sustenta contra a sua fragilidade, aquela realidade que faz seu espírito repousar em tranqüilidade e paz. Uma das realidades que mais dão essa tranqüilidade é o equilíbrio financeiro, a garantia dos bens materiais. Por isso, é a essa idolatria que Jesus se refere de forma mais direta no Evangelho.

13Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13).

Há outras realidades que trazem tranqüilidade e paz à pessoa humana e na qual seu espírito repousa. Há uma série imensa de crendices, de coisas que trariam sorte para quem as portassem e de coisas que trariam azar. Por exemplo, ferraduras, trevos de quatro folhas, galhinhos de arruda, números 7, 13 e outros, água benta, imagens de santos etc. Isso constitui o terreno da superstição, que se contrapõe também à adoração a Deus, porque só Ele deve ser a causa da tranqüilidade e da paz da pessoa humana. Alguns afetos humanos também são doentios e quando os perde a pessoa se desespera, passa até do amor ao ódio. Também isso constitui uma substituição da adoração que se deve só a Deus.

Os atos rituais de adoração a Deus só são verdadeiros se a vida do espírito apóia-se verdadeiramente em Deus e a pessoa goza da paz de Cristo. A paz de Cristo é a paz que logo após aparecer ressuscitado no Cenáculo, em Jerusalém, Jesus Cristo oferece: “A paz esteja convosco” (Lc 24,36; Jo 20,19.21.26). Os discípulos estavam a portas fechadas, intranqüilos e com medo dos judeus. Jesus Cristo lhes oferece a paz, como se dissesse: “Para que tanto medo? Não viram o que aconteceu comigo? Torturaram-me e me crucificaram, mas aqui estou Eu. Não estou bem? Não tenham medo”.

28Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena” (Mt 10,28; cf. Lc 12,4).

A paz de Cristo libera a pessoa do medo até da própria morte corporal, em total confiança em Deus. É um fruto do acolhimento do Espírito Santo na alma do cristão. A fortiori a paz de Cristo nos tranqüilizará em outras aflições da vida. A presença da paz de Cristo e de uma certa indiferença em relação às coisas que a maioria das pessoas ambicionam são sinais de adoração verdadeira a Deus. A pessoa como que volta ao estado de Paraíso, pois se apóia totalmente em Deus e só n’Ele.

A perfeita adoração a Deus inclui um maior gozo na realização da vontade de Deus, a Justiça, do que no desfrute da própria existência:

“É coisa certa que o homem justo e bom se alegra muito mais, indizivelmente mais até, com a obra da justiça do que com o deleite e a alegria que ele, ou mesmo o mais excelso dos anjos, tira do seu ser ou de sua vida naturais. E foi por isso que os Santos alegremente entregram suas vidas pela Justiça” (Mestre Eckart, O Livro da Divina Consolação e outros textos seletos, Ed. Univ. São Francisco, Bragança Paulista 2006).

É a adoração perfeita porque é a relação que existe entre as próprias Pessoas Divinas, que se esvaziam de si para viver na Outra Pessoa. Assim o cristão quer mais a vontade de Deus do que qualquer desfrute pessoal. Ele vive em Deus, como Jesus no Pai.

2. A vida cristã é relação com Deus e não ação social.

2.1. A relação que há entre «ter fé cristã» e o «Reino de Deus»: quando Deus conta.

«Ser cristão» é quase sinônimo, na maneira comum de entender, de «ter fé». Fala-se de fé, mas muitas vezes de uma forma bastante indefinida. No Santo Evangelho, Jesus fala de ter-se fé na sua Pessoa. E Ele anuncia o Reino de Deus, quer que acolhamos o Reino de Deus. Certamente, entender o que é o Reino de Deus segundo Jesus, ajudar-nos-á bastante a entender o que significa ter fé cristã, aquela fé autêntica que merece a resposta do Senhor Jesus: — A tua fé te salvou! (Mt 9, 22; Mc 5, 34; 10, 52; Lc 7, 50; 8, 48; 17, 19; 18, 42).

O Reino de Deus consiste em uma situação na qual Deus reine. Em certo aspecto podemos dizer que o reino de Deus consiste naquelas situações em que Deus conta. Assim, estar feliz por ter vitórias e sucessos nos empreendimentos é algo que acontece a alguém crendo ou não. Agora, sorrir no meio da derrota e da dor é testemunhar que há outros motivos além dos motivos sensíveis que causam uma felicidade vulgar. Esse motivo é Deus e uma esperança nele que nenhuma derrota nesse mundo pode apagar. Mais ainda que transforma o sentido das coisas deste mundo de modo que uma derrota pode ser vivida como uma vitória, uma cruz como um presente de salvação, a morte como o verdadeiro nascimento.

A parábola do filho pródigo — ou como se prefere intitulá-la hoje, a do Pai misericordioso — não afirma que o pecado do filho que saiu de casa seja exatamente uma vida devassa. Sugere isso nas acusações do filho mais velho, que, aliás não é apresentado como testemunha dos fatos. Para o assunto da parábola o pecado do filho pródigo não foi a vida devassa, mas o querer desfrutar os bens do seu Pai sem o seu Pai. Foi amar a herança e não o Pai. Como alguém que olhasse mais para o que o Pai lhe pode dar do que para o próprio Pai. Como se rezasse assim: “ — Pai meu, dai-me logo o pão da vida inteira para que eu não precise mais de te pedir nada, e eu não precise mais do Senhor”. Mas Jesus nos ensinou a rezar: — Pai nosso, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, para que eu precise de Ti a cada dia, para que o Senhor seja importante para mim a cada dia, para que eu nunca pense que posso não depender de Ti. Ou seja, para que o Senhor conte sempre na minha vida, para que a minha vida não pareça que pode ser vivida sem o Senhor (o que seria uma farsa, uma mentira). Assim, que a minha vida pertença ao Reino, só possa ser explicada pela presença de Deus nela, seja ilógica e impossível de explicar se alguém tentasse narrá-la sem falar em Deus. Assim como não se pode explicar Jesus sem falar do Pai, e não se pode explicar os mártires sem falar de Deus, no qual puseram infinita confiança.

Deus quer ser Alguém na vida dos homens. Há homens que querem viver como se Ele não existisse. O Reino de Deus acontece como um decreto de Deus determinando que vai entrar no mundo para ser Alguém para os homens porque os homens não serão jamais realizados se buscarem sua realização numa vida em que Deus não seja a sua razão de ser. Isto é, a não ser numa vida segundo a Verdade. E a Verdade é que se o homem existe é porque Deus é o Alguém que o mantém na existência, e o homem se realiza na comunhão de vida com esse Deus.

2.2. Em coisas sérias, dá para levar a sério o que diz a religião? A religião «privatizada».

A característica dos séculos XIX e XX foi a perda do sentido de Deus. Foi a tentativa do homem de organizar o mundo como se Deus não existisse. Foi também, — é um aspecto da mesma realidade — a privatização da religião, ou seja, “quem quiser crer que creia no que quiser, mas o mundo, a economia, a política, a educação, a técnica, a ética e tudo o que é sério e conta na vida dos homens, nada disso pode depender dessas “opiniões” religiosas e assim devem ser planejadas e pensadas à margem de convicções religiosas, e a partir desse ponto, Deus não conta mais para nada na sociedade. A religião passa a ser, sociologicamente, para não dizer um folclore, qualquer coisa considerada útil apenas porque alimenta uma esperança num mundo que não oferece esperanças, porque acalma os derrotados, porque é um ópio para o povo não se revoltar. Pouco importa se o que prega é verdade ou não, basta que realize essas funções sociais.

Aliás, como saber se determinada religião prega a verdade? Todos os credos são assim nivelados, de modo que a superstição mais grotesca é colocada lado a lado com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. A luz que fez os povos passarem da barbárie ao Evangelho, principalmente no primeiro milênio cristão, apagou-se. Essa luz que permitiu a muitos povos primitivos do Oriente médio e da Europa distinguir a sublimidade do amor de Deus revelado no Evangelho e a liberdade cristã dos horríveis ídolos e superstições medrosas das primitivas religiões gregas e bárbaras, desapareceu. O homem parece ter perdido a capacidade de avaliar valores espirituais à medida que aperfeiçoou a sua capacidade e o seu poder sobre o mundo material. Sem esse discernimento a Fé virou opinião particular, e Deus não conta. É colocado à margem do mundo. Os países de origem cristã vão eliminando de suas legislações os traços da moral cristã. Os povos de origem cristã vão perdendo os elementos de sua cultura cristã. Entram na cultura de povos anteriormente considerados cristãos a desvalorização da vida, com o aborto, a eutanásia, a mentalidade anti-natalista, o divórcio, as práticas homossexuais consideradas como legítimas e com direitos iguais à sexualidade segundo a natureza, a valorização do capital acima da dignidade da pessoa humana etc. A religião cristã continua a celebrar seus ritos mas não consegue evangelizar as sociedades; evangeliza, sim, algumas pessoas, cujo testemunho é sempre relativizado pela falta de discernimento das consciências em relação ao bem e ao mal, à vida e à morte, ao amor gratuito do Deus de Jesus Cristo e as oferendas interesseiras dos adivinhadores e charlatães da assim chamada «nova era». Não se engendra uma cultura verdadeiramente cristã num povo sem esse discernimento. São pérolas atiradas aos porcos.

2.3. A religião que serve para alguma coisa. A religião «instrumentalizada».

Às vezes até os que se dizem cristãos tem uma concepção instrumentalizada de sua religião. Ser cristão para conseguir alguma coisa. Ir à Igreja para acalmar-se. Ir à Igreja para consolar-se. A Igreja é boa para educar o povo. Para lutar por justiça, etc. Tudo isso pode acontecer independentemente da verdade da religião, e da existência de Deus mesmo. Tudo isso pode ser até um primeiro estágio de crescimento para aqueles que se iniciam no caminho da fé. Mas é só o início. Tudo isso pode acontecer como fenômeno psicológico e social mesmo se Deus não existisse. Há muitos sociólogos da religião que estudam seus efeitos na sociedade, até estimam a religião como fenômeno social e cultural, mas não professam a existência de Deus. Karl Marx, o fundador do comunismo, sem crer em Deus, reconheceu esses efeitos da religião. E a odiou. Os consolos, as esperanças que alimenta, a manutenção da ordem constituída, tudo isso era indesejável para ele, pois, como o ópio, anestesiava os trabalhadores oprimidos. E sua tática revolucionária era de que as classes trabalhadoras sentissem em toda intensidade sua dor e assim não vissem outra solução contra a opressão que sofriam a não ser a revolução violenta. Daí sua famosa frase: — A religião é o ópio do povo.

A religião privatizada para fins particulares é o ópio do povo. Nesse campo o liberalismo capitalista em que vivemos se compara com o marxismo. Para ambos a religião não é verdadeira, mas tem funções sociais «cicatrizantes». A diferença é que o marxismo a odeia por isso e porque quer, a seu modo, a transformação da sociedade; o liberalismo capitalista se serve dela para amenizar as dores que provoca nas classes e povos que explora, diminuir as reações violentas contra a opressão que produz, e manter-se.

2.4. A religião cristã visa a salvação eterna e não objetivos imanentes.

O cristianismo não pode permanecer sem esse discernimento dos valores espirituais de que falávamos acima. Esse discernimento, porém não virá só com palavras. É uma cultura nova que é necessário criar. Será o fruto da nova evangelização das culturas que apregoa o Papa João Paulo II? Mas qual é o ponto-chave então que nos permitirá alcançar esse discernimento? Esse ponto-chave nos é dado por Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Convertei-vos, porque o Reino de Deus está próximo!” (Mc 1,15).

Deus quer entrar nesse mundo e nessa sociedade dos quais vocês o expulsaram! Convertei-vos para recebê-lo, porque Ele já decretou que vem! E o que devemos fazer, então? (cf. Lc 3,10.12.14; Jo 6, 28). Tudo o que Jesus nos disser (cf. Jo 2,5).

“Os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. E lhe enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, para lhe dizerem: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém, pois não consideras um homem pelas aparências. Dize-nos pois, que te parece: é lícito pagar o imposto a César, ou não?” Jesus, porém, percebendo a sua malícia, disse: “Hipócritas! (...) Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 15-18.21).

Aos fariseus que viviam uma religião cheia de muitos interesses complexos — alguns bons, outros não — Jesus chama de hipócritas. Não os chama assim só por causa da hipocrisia de sua pergunta sobre se seria lícito pagar o imposto a César. Chama-os de hipócritas porque o seu culto a Deus — sua religião — era instrumento de muitos objetivos políticos. O culto a Deus era usado conscientemente para manter um poder político ambíguo. Pela religiosidade eram respeitados pelo povo, religioso, e que queria independência. Os fariseus, em tese, também queriam a independência, diferentemente dos saduceus. Com sua liderança religiosa, porém, adquiriam um prestígio que os fazia poder desfrutar das benesses dos dominadores romanos, desejosos de um domínio pacífico, sem revoltas, com a ajuda da influência de fariseus e saduceus. Era esse também o papel de Herodes (cf. Mt 22, 16: herodianos), que, não contando com a religião para obter prestígio, provocava uma revolta maior com sua tirania do que os fariseus com seus privilégios e preconceitos. Desse modo, a religião dos fariseus já tinha toda sua razão de ser nesses objetivos. Estava instrumentalizada para outros objetivos e o culto de Deus mesmo, que é a essência da religião, já não era apreciado a não ser pelas suas “utilidades” temporais, políticas e sociais.

A resposta de Jesus ajuda a separar os objetivos. Os objetivos políticos e sociais, por mais louváveis que sejam, não podem ser nunca a justificativa do culto a Deus. A César pertencem os objetivos desse mundo, por um poder delegado por Deus (cf. Jo 19,11). O Concílio Ecumênico Vaticano II afirma isso ao falar da legítima autonomia das realidades terrestres. A Deus pertence toda a adoração e toda a glória. Dar a Deus o que é de Deus pode ser entendido — e convém que, entre outras interpretações, seja entendido — como prestar adoração a Deus simplesmente porque Ele é Deus e ao homem, criatura, compete adorá-lo. Em outras palavras, religião é uma coisa que “não deveria servir para nada”. A única razão de ser da religião é o fato de Deus existir e o homem poder e dever adorá-Lo, obedecer-Lhe e tratá-Lo como Deus.

“Procurai o Reino de Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33).

Não pregamos uma religião desencarnada, que não se interesse pela justiça social, pelas dores dos filhos de Deus ou pela salvação das almas. Quando dizemos que a religião verdadeiramente cristã é aquela que “não serve para nada”, queremos dar a Deus o direito que lhe compete de ser Deus para nós. Queremos o Reino de Deus. E Deus só reina, só conta, se é reconhecido em Si mesmo como Presença, e não julgado pelos “efeitos” que julgamos nós ou esperamos nós da Sua influência ou do seu culto. Um deus instrumental não seria Deus. Isto nos leva a uma total purificação de intenções.

O militante que se diz católico por amor à causa da justiça social e condiciona sua adoração a Deus a essa luta, está invertendo os fatores e usará a religião de seu irmão em favor da luta. Negará Deus quando isso lhe parecer necessário em sua luta. Se Deus diz para não matar, não obedecerá. Usará a religião só enquanto for conveniente à sua luta. Alguns setores ativistas com inspiração nas filosofias idealistas e nas teologias da libertação assim reagem.

O jovem casal que casa-se na Igreja porque acalentou sempre o sonho do fraque e do vestido de noiva, daquela festa de “cinderela e príncipe encantado”, não estará celebrando com verdade o sacramento do matrimônio, que é um abraçar a cruz de Cristo em absoluta entrega de vida segundo uma vocação divina. O mesmo se diga de muitas missas comemorativas, como algumas de celebração de 15 anos de moças em que menos se quer adorar a Deus do que massagear o próprio ego e o próprio exibicionismo. Nas quais, se o dinheiro dos pais não for suficiente e a festa com valsa e tudo não puder ser realizada, ninguém mais se lembra de celebrar mais missa alguma.

Aquela pessoa que participa da comunidade enquanto tem certa liderança ou goza de certo reconhecimento, mas quando o perde, já não vai nem à missa. O que valia, o culto a Deus mesmo ou a vazão à sua necessidade de afirmar-se? Aquele do ministério de música que não mais freqüenta o culto a Deus se não lhe dão mais esse ministério, adora a Deus ou satisfação de tocar, uma platéia etc.?

Os exemplos poderão multiplicar-se ao infinito. Quanta manipulação do culto a Deus... Cada um só vê o seu desejo, os seus ideais, e Deus mesmo permanece oculto a seus olhos. Porque seus corações, feitos para desejar a Deus, para amar a Deus acima de todas as coisas, estão amando as coisas e não a Deus em Si mesmo. Tem o coração impuro.

“Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus!” (Mt 5, 8).

2.5. A verdadeira religião cristã.

Dar a Deus o que é de Deus é libertar-se de buscar no culto a Deus outras satisfações ou fins que não sejam tão somente a adoração de Deus. Ele e só Ele é o Gozo, a Alegria, o Procurado. Quem ama a Deus prescinde de qualquer outra exigência para participar no culto de Deus. E esse culto a Deus, livre de quaisquer outras intenções, é o único que não poderá jamais ser considerado “o ópio do povo”. Essa religião, aparentemente a mais desinteressada do “mundo” com os seus problemas, é a mais “revolucionária” e justiceira. Porque é a única libertadora.

O homem só é livre quando ninguém lhe pode roubar o que está no seu coração. Quando ninguém pode frustrar os seus desejos. Quando queremos realmente algo que nos pode ser tirado, esse algo torna-se maior do que nós, ficamos condicionados a essa coisa e se no-las tiram, nos derrotam. O medo de perdê-la nos aprisiona nos temores e nos impede estar em perfeita paz e amar plenamente. Tudo fica condicionado a essa posse instável. E o nosso coração fica inquieto. Se nos apegamos à nossa própria vida, aos nossos filhos, à nossa fama, aos nossos bens, tudo isto nos aprisiona. A única realidade que pode estar no nosso coração e que ninguém nos pode retirar é a certeza de ser amado por Deus. Essa é uma boa definição da fé. Tendo essa certeza, nada precisamos temer. Amamos a Deus mais que à nossa própria vida, mais que aos nossos filhos, mais que à nossa fama, mais que aos nossos bens. Tudo isto estamos dispostos a perder porque tendo a Deus nada perderemos. Tudo nos será dado por acréscimo. O homem de fé é insubornável. Não adianta fazer-lhe ameaças. Não tem medo nem ambições. Por isso não trai. Como não realizará a justiça, quem nada reivindica para si? Quem tem assim o seu coração purificado — por saber adorar a Deus, por só ter um desejo, Deus — que chega a “ver a Deus”, como não terá lucidez sobre todas as outras coisas e assim ser justo? Sendo justo, como não será libertador para quem é oprimido?

Quem pensa que elevar o pensamento a Deus aliena o homem de realizar a justiça na terra está muito enganado. Uma religião horizontalista, instrumentalizada, ou privatizada, nunca realizará a justiça na terra. A justiça para os homens só virá quando formos justos para com Deus.

3. Na Nova Aliança não existe mais o dízimo.

A doutrina sobre o dízimo, que vigora em muitas igrejas, inclusive católicas, é veterotestamentária e uma verdadeira compreensão neotestamentária da contribuição financeira para as igrejas é necessária para se entender a vocação cristã.

Não é novidade para ninguém que vivemos numa época muito materialista. O interesse material tudo domina. E na área religiosa nunca se falou tanto em dízimo. É verdade que a Igreja, ou as igrejas, em outras épocas tinham outras fontes de recursos, e hoje cada vez mais dependem dos recursos dos fiéis. Cremos, porém que hoje se fala muito em dízimo não só por causa da nova conjuntura das igrejas, mas também pelo materialismo que envolve a todos. O que mais faz pensar em tal hipótese é a ênfase posta no valor da contribuição, com uma flagrante e suspeita volta ao regime da Lei do Antigo Testamento. Prega-se por toda parte, nas seitas e em muitas igrejas, inclusive católicas, que a Bíblia recomenda o pagamento de 10% de tudo o que se recebe. Diz-se que isso é uma entrega a Deus de uma parte do que Ele, na Sua generosidade nos concede. E, por isso, deve-se pagar, nas igrejas, o dízimo. Quando não é ganância, é, em muitos casos, uma visão funcional e empresarial de igreja, que supõe que os meios da missão da Igreja dependem mais do homem do que de Deus, que mais vale um bom marketing, que muitas horas de oração ou sacrifício escondido. É claro que há uma bem intencionada Pastoral do Dízimo que quer ensinar aos católicos a sua responsabilidade material o sustento do culto, das comunidades e das missões, mas, por falta de esclarecimento também estes muitas vezes caem na doutrina errada do dízimo imposto de 10%.

Porque uma percentagem fixa, para todos, como 10%? Ainda mais em uma sociedade de profundas desigualdades na distribuição da renda, como a nossa? Até o Imposto de Renda, que não vem diretamente do Deus de justiça sabe que uma percentagem fixa para todos pune os mais pobres com um peso maior de sacrifício. A quota do Imposto de Renda, no nosso como em outros países, aumenta sua percentagem à medida que cresce a renda do contribuinte. Cem reais pesam menos a quem recebe mil do que dez a quem recebe cem.

3.1. O que dizem as Sagradas Escrituras sobre dízimos e ofertas.

O quinto mandamento da Igreja, que lemos no tradicional catecismo, nos diz que devemos “pagar o dízimo segundo o costume”, com uma abertura e compreensão “inculturada” difícil de se encontrar em muitas determinações eclesiásticas hoje. “Segundo o costume” significa a pluralidade de situações das igrejas e dos fiéis, deixando para a liberdade das comunidades e dos fiéis o estabelecimento do regime mais justo e eqüitativo de colaboração dos fiéis para a manutenção da comunidade e dos serviços religiosos.

Apela-se para as Sagradas Escrituras para justificar que são elas que autorizam o dízimo em 10%. Examinemos portanto as Escrituras, porque nelas encontraremos sempre a vida.

A doutrina sobre os dízimos nas Escrituras confunde-se com a doutrina sobre as primícias. No início da história de Israel, nos relatos mais antigos como no Êxodo fala-se sempre de primícias a ofertar-se a Iahweh (cf. Ex 22,28; 23,19; 34,22.26; Lv 23,10s.17; Dt 26,10). Dar a Deus a melhor parte do que se tem, os primeiros frutos da terra e os primeiros produtos do rebanho, exprimia a primazia de Deus, era um gesto de adoração. A consagração a Deus das primícias dos frutos santificava, ao mesmo tempo toda a colheita, porque a parte vale pelo todo (cf. Rm 11,16). A mais antiga legislação de Israel (cf. Ex 20-23) não mencionava o costume do dízimo. O dízimo parece inicialmente confundir-se com as primícias (cf. Dt 12,6.11.17;14, 22). Observa-se, porém, seu uso já em um tempo bastante remoto, na época de Amós.

3.2. O dízimo já era manipulação religiosa na época de Amós

É a partir do culto no santuário de Betel que se entende a passagem de Gn 28,19-22 em que Jacó promete o dízimo na “casa de Deus” no lugar a que “deu o nome de Betel”. Interessante que essa referência ao dízimo já na boca de Jacó - não havia templo, nem sacerdócio, nem culto regulamentado! A quem Jacó pagaria o dízimo? - se dá exatamente como uma indicação para o pagamento ao futuro santuário de Betel! É nesse santuário que o profeta Amós vai condenar o culto sem conversão de vida.

“Entrai em Betel e pecai! Em Guilgal e multiplicai os pecados! Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios, e ao terceiro dia os vossos dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor, proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é assim que gostais, filhos de Israel. Oráculo do senhor Iahweh” (Am 4,4-5).

A insistência do profeta em afirmar “vossos” sacrifícios, “vossos” dízimos, “vossas” oferendas, “é assim que gostais” é destinada a frisar que os peregrinos do santuário realizam os seus próprios desejos e não a vontade de Iahweh. E continua Amós:

“Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto das vossas reuniões. Porque se me ofereceis holocaustos..., não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!” (Am 5,21-24).

Em outra passagem Amós vai contra o culto em algum templo que esteja em contraste com a prática da justiça:

“Porque assim falou Iahweh à casa de Israel: Procurai-me e vivereis! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal e não passeis por Bersabéia; pois Guilgal será deportada e Betel se tornará uma iniquidade! Procurai a Iahweh e vivereis! ... Ai daqueles que transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça. ... Eles odeiam aquele que repreende à porta e detestam aquele que fala com sinceridade. Por isso: porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados!” (Am 5,4-6a.10-12a).

Vemos assim, que já no tempo de Amós, o interesse no dízimo era associado com injustiça e exploração. Por outro lado, em certos textos mais tardios como Ez 44, 30 e Nm 18, 12 vemos que o aspecto sacrifical da oferenda das primícias se atenua sempre mais. A oferta a Iahweh, que deveria ser toda queimada, vai-se tornando sempre mais um imposto sagrado em benefício do clero (cf. Eclo 45, 20; Ne 10, 36). A referência ao dízimo trienal em favor dos mais pobres , que aparece em Dt 14, 28s, é sempre mais deixada de lado. Por fim o espírito das primícias irá se desvanecendo totalmente e restará apenas o dízimo como contribuição de um décimo dos frutos da terra e do rebanho, em favor sempre mais dos sacerdotes e sem sentido sacrifical. No tempo de Jesus os fariseus estendiam a obrigação dos dízimos até aos mais insignificantes produtos (cf. Mt 23, 23; Lc 11, 42; 18, 12).

3.3. Abusa-se de uma passagem de Malaquias, e vai-se contra o Evangelho.

Devido ao uso abusivo que fazem do livro de Malaquias na pregação do dízimo nas igrejas atuais, este livro merecerá de nós uma atenção especial.

Usa-se sempre para pregar o dízimo nas igrejas o versículo Ml 3, 10:

“Trazei o dízimo integral para o Tesouro, a fim de que haja alimentos em minha casa. Provai-me com isto, disse Iahweh dos Exércitos, para ver se eu não abrirei as janelas do céu e não derramarei sobre vós bênção em abundância” (Ml 3,10).

A insistência nesse versículo, deslocado de seu contexto e da mensagem global da Bíblia é suspeita. O paralelo com a segunda tentação de Cristo no deserto ocorre logo. Também satanás cita um versículo bíblico convidando o Cristo a “provar” a proteção do Pai:

«Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão nas mãos, para que não tropeces em nenhunma pedra.” Respondeu-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus.” (Mt 4,5-7).

Uma expressão forte de Malaquias em um contexto em que o culto em geral estava sendo descuidado, prometendo bênçãos de Deus para um povo que se convertesse - um dos sinais da conversão seria o restabelecimento do culto pela contribuição dos dízimos -, é transformada por atuais pregadores de dízimo em uma promessa de recompensa individual para quem der uma determinada contribuição em suas igrejas. Ou seja, Deus passa a ser movido a dinheiro e o mandamento com que Jesus solenemente rebateu a tentação demoníaca é desprezado. Convida-se tranqüilamente o povo a tentar a Deus com a oferta do dízimo, para ver se Deus não vai cobrir de bênçãos o dizimista. Onde está o caráter de graça e misericórdia das bênçãos de Deus?

O livro de Malaquias faz uma dura crítica aos sacerdotes porque ofereciam os piores animais no altar do Senhor. Ou seja, o profeta os acusa de um culto insincero, fonte de muitas desgraças. A seguir o profeta anuncia a vinda do Anjo da Aliança que purificará os filhos de Levi, a classe sacerdotal, para que estes ofereçam uma oferenda conforme a justiça. “A oferenda de Judá e Jerusalém será então agradável a Iahweh” (Ml 3, 4; cf. 3, 1-3). Nós, cristãos, reconhecemos nesse Anjo da Aliança, a Nosso Senhor Jesus Cristo, que “entrará em seu Templo (cf. Ml 3, 1). Que templo é esse, vemos na carta aos Hebreus. Se diz aí que temos “um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus” (Hb 4, 14; cf. 9, 24). É um sumo-sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 6, 19). Aqui o autor da carta aos Hebreus reconhece o caráter profético do Salmo 2º e faz uma alusão ao sacrifício eucarístico, pois esse Melquisedec é um misterioso sacerdote que oferecia, nos tempos de Abraão, ao Deus Altíssimo, pão e vinho (cf. Gn 14, 20). A seguir, o autor da Carta aos Hebreus, tratando da superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio dos levitas do Antigo Testamento, que recebiam o dízimo do povo, diz que Melquisedec recebeu dízimos de Abraão. Em Abraão estavam os próprios levitas, seus descendentes, pagando dízimo a Melquisesdec. Ou seja, aqueles que no Antigo Testamento recebiam os dízimos, no Novo Testamento os pagariam!

Mas há um novo sacerdócio, o de Cristo, segundo a ordem de Melquisedec. “Mudado o sacerdócio, necessariamente se muda também a Lei” (Hb 7,12). E, podemos dizer, o sacrifício! (cf. Hb 10, 11s). Assim não devemos mais pagar o imposto de um sacerdócio que já se extinguiu! Nada mais tem a ver com a nova Aliança um imposto para um templo que já acabou! O santuário de Cristo é o Céu! A oferta de Cristo não é aquela dos sacerdotes e levitas judeus, mas o sacrifício de Si mesmo! A passagem de Mt 17, 24-27 é muito interessante a esse respeito. Jesus pergunta: “Que te parece, Simão? De quem recebem os reis da terra tributos ou impostos? Dos seus filhos ou dos estranhos?”. Simão Pedro responde o óbvio: “Dos estranhos”. Então os filhos de Deus, Jesus em primeiro lugar, depois os seus irmãos, que pela comunhão com Ele foram feitos filhos de Deus, estão isentos. Os filhos não pagam dízimos nem qualquer imposto a seu Pai! Que maravilhosa aproximação com Deus nos dá o Novo Testamento, a nova Aliança que Jesus estabeleceu, e que muitos dizem professar, mas se comportando como estranhos, até com impostos de 10%!

3.4. Não há mais o “dízimo” de 10%: tudo o que está em nosso poder já é de Deus.

Então a passagem de Malaquias (cf. Ml 3,10) não pode ser interpretada no mesmo sentido que tinha originalmente. Não há mais o Tesouro do templo, “que a traça e a ferrugem consomem”, mas o Tesouro está nos céus (cf. Mt 6, 19s), onde Cristo reina.

À mulher samaritana, Jesus já havia respondido:

“Crê, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora ­- e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 21.23s).

Então se o dízimo e as primícias ofertadas no templo no Antigo Testamento eram parte do culto a Deus, e não é mais no templo e sim em espírito e verdade que se deve adorar, onde iremos oferecer a nossa oferta? Ofereceremos em espírito e verdade, em qualquer lugar. O culto cristão a Deus, nosso Pai, não se interrompe. Não é só no templo, na igreja, mas em todo lugar. A liturgia celebrada na igreja não tem sentido senão como sacramento de uma liturgia que se desenrola a todo minuto na vida do cristão. Cristo não ofereceu ao Pai uma oferenda-coisa, mas ofereceu-se s Si mesmo, sua vida. Então em toda a sua vida o cristão deve oferecer-se ao Pai. E os seus bens, e o seu dinheiro, e o fruto do seu trabalho? Para o cristão, tudo é graça, e tudo que é seu é já do Pai (cf. Lc 15,31). Ele é irmão de Jesus por cumprir a vontade do Pai (cf. Mt 12,50). Então, na medida em que tudo é usado de acordo com a vontade do Pai, realiza-se a comunhão filial do cristão com seu Pai Celestial. Pode-se dizer que todos os bens, todos os reais de um cristão, são oferecidos a Deus se são empregados de acordo com a vontade de Deus. Assim se José é um trabalhador cristão e tem saúde para trabalhar e ganhar honestamente o seu dinheiro, isto é dádiva de Deus. Deus quer que José seja um bom pai para seus filhos. Quando José compra leite para alimentar suas crianças está realizando a vocação de pai de família que Deus lhe deu, dando destinação justa para o fruto do seu trabalho na graça de Deus. Está prestando um culto a Deus. Se paga justamente os impostos civís está obedecendo ao que disse “Daí a César o que é de César” (cf. Mt 22,21), está sendo um bom cidadão, e nessa obediência está dando a Deus o que é de Deus. Cem por cento, todo o dinheiro de cada José, de cada cristão, deve ser utilizado de forma a agradar a Deus. O que o cristão dá a Deus é tudo! O cristão não mede nada para Deus. É tudo ou nada! A exemplo do seu Senhor, ele se oferece todo em cada coisa que faz: “Oferecei os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1).

O sacerdote levita era o receptor das primícias e dízimos do Antigo Testamento. O sacerdote católico não tem mandato para receber nada em nome de Deus, a não ser o próprio sacrifício do povo, do qual é servo, para oferecê-lo a Deus, na Eucaristia (cf. Rito de Ordenação Presbiteral). Muito menos o pastor protestante tem mandato para tal. No Novo Testamento só o pequenino, “o menor dos irmãos” de Jesus tem autorização para receber algo que se oferta a Deus: “O que fizestes ao menor de meus irmãos, a Mim o fizestes” (cf. Mt 25,40.45). Assim o filho do trabalhador José é um desses pequeninos, o pobre, o presidiário, o doente e cada pessoa quando tem direito a receber na justiça e na caridade qualquer bem, e é da vontade de Deus que seja socorrida, é esse pequenino.

3.5. Dar a Deus não é só dar à igreja.

A grande falácia da pregação dos dízimos no nosso tempo é a confusão entre “dar dinheiro a Deus” e “dar dinheiro à igreja”. Como vimos o culto cristão não se enclausura, como o hebraico, no templo. Dá-se a Deus em todo lugar, a todo momento. Mas continua-se a fazer pensar que se dá a Deus só aquilo que se dá numa igreja ou comunidade. Prega-se que “se devolva a Deus uma parte do que generosamente nos deu”. Já vimos que Ele não quer uma parte, mas tudo, quer nós mesmos. Dentre todas as obrigações que um cristão tem para usar com justiça os seus bens, além de sua família, sua pátria, os pobres, etc. ele tem também a Igreja de Cristo. Os cristãos, no início, tinham liberdade de dar o que queriam à comunidade (cf. At 5, 4), podiam pôr tudo em comum (cf. At 2, 44; 4, 34) ou não. Nada era imposto, mas tudo era livre, segundo o Espírito, sem taxas nem percentagens. Paulo faz uma coleta de caridade, entre os coríntios, pelos pobres de Jerusalém e em nenhum momento cita obrigações de dízimo (2Cor 8-9). Ele mesmo não quer pesar economicamente para nenhuma comunidade (cf. 1Cor 9,15-18; 2Cor 8,1-2;11,7-9; At 18,3; Fl 4,15).

Quando Jesus diz que o trabalhador merece o seu salário, referindo-se ao anunciador do Evangelho, não está falando de um salário no sentido moderno do termo, mas que deve partilhar da vida e do alimento daqueles a quem anuncia o Evangelho, comer com aquele a quem anuncia, e não receber um pagamento como um mercenário qualquer. Ele mesmo, Nosso Senhor Jesus Cristo, é o modelo.

A Igreja tem necessidades econômicas e o cristão consciente colocará, entre suas responsabilidades, essa de contribuir com bens para a missão da Igreja. Mas nada pode ser imposto a ele. Foi Deus quem lhe confiou os talentos, entre esses a sua condição econômica, e é só a Ele que deverá prestar contas de sua administração (cf. Lc 16,2; Mt 25,14-30). À Igreja, como Mãe e Mestra, cabe, como sempre, ensinar e orientar, mas a decisão final vem do coração da pessoa, libertada por Cristo para viver não mais sob a Lei, mas sob o Espírito (cf. Rm 7,6). Esse é o sentido do quinto mandamento da Igreja, onde a palavra dízimo está apenas pelo costume e não no seu sentido técnico, bíblico, que, como vimos, está ultrapassado.

É lamentável que tantos hoje retornem à tutela da Lei de Moisés, e mesmo assim vivam dizendo que “Jesus Cristo é o Senhor” (cf. Mt 7,21-23). Ai dos que conscientemente exploram essa ignorância, colocando o seu tesouro (cf. Mt 6,19-21) no amor ao dinheiro, fonte de todos os males (cf. 1Tm 6,10). Bem-aventurados os que amam a Igreja e livremente se dão à sua missão com seu corpo e com seus bens, construindo um tesouro nos céus!

4. A santificação do Nome de Deus.

4.1. O santo Nome de Deus e os juramentos.

7Não pronunciarás o nome de Javé, teu Deus, em prova de falsidade, porque o Senhor não deixa impune aquele que pronuncia o seu nome em favor do erro” (Ex 20,7).

11Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus; porque o Senhor não terá por inocente aquele que tiver pronunciado em vão o seu nome” (Dt 5,11).

Temos aqui duas formulações diferentes do segundo mandamento do Decálogo, que se refere à santificação do Nome de Deus, confiado ao seu povo pela Revelação. Na primeira, no Livro do Êxodo faz-se referência à pronúncia do Nome de Deus em caso de falsidade, certamente proibindo o perjúrio, ou seja o juramento, que é a invocação de Deus por testemunha daquilo que alguém afirma, de uma mentira. A segunda, no Livro do Deuteronômio, não cita o perjúrio, mas proíbe o mau uso do Nome de Deus em todos os casos.

No Antigo Testamento proibia-se o juramento falso, mas não o juramento verdadeiro, em boa consciência. No Novo Testamento, Jesus proíbe todo juramento seja chamando a Deus por testemunha, seja outra realidade qualquer.

33Ouvistes ainda o que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás para com o Senhor os teus juramentos. 34Eu, porém, vos digo: não jureis de modo algum, nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei. 36Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes fazer um cabelo tornar-se branco ou negro. 37Dizei somente: Sim, se é sim; não, se é não. Tudo o que passa além disto vem do Maligno” (Mt 5,33-37).

No entanto, a Igreja pede juramentos e o Estado cristão também. Por exemplo, nos processos de casamento, nos outros processos canônicos, nas formaturas e na administração da justiça, nos depoimentos etc. Não seria uma contradição? Não seria uma desobediência à palavra do Evangelho? Não é. Quando estas instituições pedem o juramento elas o estão fazendo na qualidade de autoridades estabelecidas pelo próprio Deus, a Igreja e o Estado legítimo. A Igreja, a quem foi dado o poder de ligar e desligar na terra o que será também ligado e desligado nos céus. E o Estado que Deus estabeleceu como realidade provisória, necessária à situação da pessoa humana decaída em pecado. Jesus reconheceu a autoridade de Pilatos como dada do Alto (cf. Jo 19,10-11). Então, ao exigir o juramento estas autoridades o fazem lembrando à pessoa que deve fazer o juramento, que estão diante de autoridades estabelecidas por Deus e desrespeitar essas autoridades é ir contra a ordem estabelecida pelo próprio Deus. A pessoa não faz o juramento por iniciativa própria, mas por convite da própria autoridade que a lembra por esse meio diante de Quem ela está fazendo declarações. Isto conserva a palavra de Jesus no Evangelho. Por iniciativa própria, ninguém deve fazer juramentos. E só as autoridades estabelecidas pela própria ordem divina podem exigir declarações sob juramento. Claro está que se a pessoa declara algo mentiroso, após ser convidada a juramento pela autoridade legítima, comete perjúrio e fere a santidade do Nome de Deus.

4.2. A abrangência do segundo mandamento da Aliança.

Além do caso do juramento, este mandamento é, às vezes, interpretado como se o Nome de Deus não pudesse ser usado muitas vezes na vida cotidiana, mesmo em expressões verdadeiras como “Graças a Deus” ou “Se Deus quiser”. Isto parece um pudor que Deus rejeita. A noção do sagrado, para a mentalidade de muitos, é tornar rara a presença do que é sagrado, para evitar certa vulgarização. Uma expressão desse sentimento está já no Livro dos Números.

24Moisés saiu e referiu ao povo as palavras do Senhor. Reuniu setenta homens dos anciãos do povo e os colocou em volta da tenda. 25O Senhor desceu na nuvem e falou a Moisés; tomou uma parte do espírito que o animava e a pôs sobre os setenta anciãos. Apenas repousara o espírito sobre eles, começaram a profetizar; mas não continuaram. 26Dois homens tinham ficado no acampamento: um chamava-se Eldad e o outro, Medad, e o espírito repousou também sobre eles, pois tinham sido alistados, mas não tinham ido à tenda; e profetizaram no acampamento. 27Um jovem correu a dar notícias a Moisés: “Eldad e Medad, disse ele, profetizam no acampamento.” 28Então Josué, filho de Nun, servo de Moisés desde a sua juventude, tomou a palavra: “Moisés, disse ele, meu senhor, impede-os.” 29Moisés, porém, respondeu: “Por que és tão zeloso por mim? Prouvera a Deus que todo o povo do Senhor profetizasse, e que o Senhor lhe desse o seu espírito!” 30E Moisés retirou-se do acampamento com os anciãos de Israel” (Nm 11,24-30).

O pensamento de Deus não é manter sua santidade por pouco se mostrar às pessoas, mas estabelecer um relacionamento autêntico com elas, chamadas a viver a comunhão divina por toda a eternidade. Os poderosos deste mundo é que querem manter a sua autoridade afastando-se dos súditos para estes não perceberem que são pessoas fracas como eles. Deus não tem o que temer. Quer elevar os homens à sua intimidade. Então, num ambiente que acolhe Deus, o Nome de Deus é citado com freqüência e nunca se vulgariza. Então a idéia de que não se deve falar muitas vezes o Nome de Deus é falsa. Qual é então, a mente desse mandamento?

Devemos lembrar-nos que este é o segundo mandamento da Aliança. Não pode referir-se só a aspectos particulares do comportamento. Está unido indissoluvelmente ao primeiro mandamento, em que Deus Se revela o Único e exige o Amor maior. Este segundo mandamento, ao se referir à pronúncia do Nome de Deus, está referindo-se à Revelação, pois se o fiel pode pronunciar o Nome de Deus, é porque esse Nome lhe foi revelado. Deste modo significa que o fiel deve valorizar a Revelação e a Aliança que lhe foi dada pela misericórdia divina e nunca torná-la vã por uma rejeição pessoal. Este tema está onipresente nas Sagradas Escrituras, nos profetas e até no salmo que o Ofício Divino nos convida a rezar todos os dias:

6Vinde, inclinemo-nos em adoração, de joelhos diante do Senhor que nos criou. 7Ele é nosso Deus; nós somos o povo de que ele é o pastor, as ovelhas que as suas mãos conduzem. Oxalá ouvísseis hoje a sua voz: 8Não vos torneis endurecidos como em Meribá, como no dia de Massá no deserto, 9onde vossos pais me provocaram e me tentaram, apesar de terem visto as minhas obras. 10Durante quarenta anos desgostou-me aquela geração, e eu disse: É um povo de coração desviado, que não conhece os meus desígnios. 11Por isso, jurei na minha cólera: Não hão de entrar no lugar do meu repouso” (Sl 94,6-11).

Neste salmo recorda-se a ingratidão e resistência do povo de Israel a Deus em Massá e Meribá. Toda a ação reveladora de Deus é desprezada e o povo não se deixa conduzir por Deus, preferindo confiar em suas próprias forças, tornando vã a ação divina. Em outras palavras, pronunciando em vão o Nome de Deus que lhe tinha sido revelado. Formulações neo-testamentárias do mesmo mandamento temos em:

“Eu vos digo: no dia do juízo os homens prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido” (Mt 12,36).

“Por ele sereis salvos, se o conservardes como vo-lo preguei. De outra forma, em vão teríeis abraçado a fé” (1Cor 15,2).

“Na qualidade de colaboradores seus, exortamo-vos a que não recebais a graça de Deus em vão” (2Cor 6,1).

“Se alguém pensa ser piedoso, mas não refreia a sua língua e engana o seu coração, então é vã a sua religião” (Tg 1,26).

“Se, porém, padecer como cristão, não se envergonhe; pelo contrário, glorifique a Deus por ter este nome” (1Pd 4,16).

A pessoa pode desperdiçar toda a ação divina feita em seu favor se resiste à graça de Deus e não recebe o Espírito que Deus oferece para sua salvação. O segundo mandamento é, assim, fundamental e poderia ser formulado assim: Não tornareis sem efeito toda a ação realizada por Deus para vos salvar. Tem, pois, uma abrangência em toda a nossa vida e não só quando verbalizamos o Nome de Deus. Tendo sido objetos do amor de Deus, nós carregamos sempre conosco os Nomes santíssimos de Deus e de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não tornemos vã a nossa condição de cristãos.

5. A santificação do Dia do Senhor

8Lembra-te de santificar o dia de sábado. 9Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. 10Mas no sétimo dia, que é um repouso em honra do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu animal, nem o estrangeiro que está dentro de teus muros. 11Porque em seis dias o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que contêm, e repousou no sétimo dia; e por isso. o Senhor abençoou o dia de sábado e o consagrou” (Ex 20,8-11).

Esta primeira formulação do terceiro mandamento do Decálogo traz a motivação do descanso de Deus após os seis dias da criação. Traz uma idéia de imitação das realidades celestes, idéia platônica, mas também presente na Sagrada Escritura (Ex 25,40; At 7,44; Hb 8,5). Não trabalhar para imitar o repouso de Deus após a obra da Criação. Se admitirmos que Gn 1,31, “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o sexto dia” coloca no sexto dia a contemplação que Deus faz da sua obra, já como antecipação do sétimo dia, podemos associar a esse descanso divino à contemplação das obras de Deus, o que enriquece sobremaneira o significado do sábado no contexto do Êxodo. O sábado como dia de “contemplar as obras de Deus”, traz para a nossa atual cultura um valor importante, uma vez que está prevalecendo o “homo faber”, o fazer sem uma devida atenção ao que é bom e ao que é mal. No seu cada vez mais ansioso “fazer” o homem não quer submeter-se à natureza, revoltando-se contra ela, por ter perdido a capacidade de contemplá-la. Como é impossível o homem não querer submeter-se às leis físicas da natureza, revolta-se contra as leis antropológicas evidentes da natureza como a que determina o sexo entre pessoas de sexos diferentes e a que estabelece uma nova vida após a concepção.

Alguns catecismos tradicionais, como o Catecismo de São Pio X, proibiam as obras servis nos domingos[1], obras “em que o corpo tem mais parte do que o Espírito”. Isto parece ter uma influência grega, na distinção estabelecida por Aristóteles entre o trabalho braçal dos escravos e o trabalho intelectual dos filósofos. O trabalho intelectual era chamado, na tradução latina, “otium”, o que deu origem à palavra portuguesa “ócio”, desocupação, que lembra o descanso do sábado. Não nos parece ser esta a verdadeira distinção entre as atividades permitidas e proibidas para o dia do Senhor. Para percebermos a verdadeira distinção devemos continuar a examinar as fontes desse mandamento.

12Guardarás o dia do sábado e o santificarás, como te ordenou o Senhor, teu Deus. 13Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras; 14Mas no sétimo dia, que é o repouso do Senhor, teu Deus, não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem tua serva, nem teu boi, nem teu jumento, nem teus animais, nem o estrangeiro que vive dentro de teus muros, para que o teu escravo e a tua serva descansem como tu. 15Lembra-te de que foste escravo no Egito, de onde a mão forte e o braço poderoso do teu Senhor te tiraram. É por isso que o Senhor, teu Deus, te ordenou observasses o dia do sábado” (Dt 5,12-15).

Aqui a justificação para o repouso sabático não é mais o descanso de Deus após a Criação, mas a ação de Deus de libertar Israel da escravidão do Egito com a implícita doação da terra de Israel, sem a qual o trabalho humano do israelita nada produziria.

5Dirás então em presença do Senhor, teu Deus: meu pai era um arameu prestes a morrer, que desceu ao Egito com um punhado de gente para ali viverem como forasteiros, mas tornaram-se ali um povo grande, forte e numeroso. 6Os egípcios afligiram-nos e oprimiram-nos, impondo-nos uma penosa servidão. 7Clamamos então ao Senhor, o Deus de nossos pais, e ele ouviu nosso clamor, e viu nossa aflição, nossa miséria e nossa angústia. O Senhor tirou-nos do Egito com sua mão poderosa e o vigor de seu braço, 8operando prodígios e portentosos milagres. 9Conduziu-nos a esta região e deu-nos esta terra que mana leite mel. 10Por isso trago agora as primícias dos frutos do solo que me destes, ó Senhor. Dito isto, deporás o cesto diante do Senhor, teu Deus, prostrando-te em sua presença. 11Depois, alegrar-te-ás por todos os bens que o Senhor, teu Deus, te tiver dado, a ti e à tua casa, tu e o levita, e o estrangeiro que mora no meio de ti” (Dt 26,5-11).

A terra é um dom, pelo qual Deus dá vida às suas criaturas vivas. O Deuteronômio coloca-se em oposição à condenação de Gn 3,17-19.

«17E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. 18Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. 19Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás de tornar» (Gn 3,17-19).

A condenação de Gn 3,19 fazia o homem ter a vida pelo seu trabalho, num sentimento de solidão e abandono, de depender de si e de suas (poucas) forças. O dom da terra “onde corre leite e mel” (Dt 26,9) contrasta com a terra que “produz espinhos e abrolhos” (Gn 3,18). È a mesma terra, mas considerada em Gn sem a graça divina, e em Dt como graça divina. A diferença está na relação do coração do homem com Deus, que é também a relação do homem com a morte, ou seja, com a realidade da sua vida mortal.

Aceitar a cruz cada dia (cf. Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23) é aceitar a realidade, ciente da bondade e da permanente Providência de Deus, e de uma Sabedoria Divina superior às nossas idéias. O trabalho, com a graça, deixa de ser uma luta contra a morte (que gera a exploração do trabalho alheio e a escravidão) e passa a ser “sinergia”, cooperação entre Deus que faz crescer e o homem que semeia (cf. Mc 4,26-27). Parar de trabalhar no sábado é confessar que a vida não vem do trabalho somente, mas do Doador divino, sem o qual nenhum trabalho humano pode ter fruto. “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra (criadora, sempre) que sai da boca de Deus” (cf. Gn 1; Dt 8,3; Mt4,4; Lc 4,4).

Jesus Cristo diz que seu Pai “trabalha sempre” (cf. Jo 5,17). O repouso não é mais a lógica do sábado, mas o é a comunhão do homem com Deus. O Pai trabalha sempre, pois eternamente é gerador de vida. E quer que o homem, criado à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26), seja gerador de vida. A geração de vida provém do caráter íntimo de Deus, que é Amor (cf. 1Jo 4,8.16), isto é, quenose (cf. Fl 2,7), esvaziamento de si e auto-entrega a outro. Jesus é Deus, Pessoa Divina, mas vivendo uma verdadeira natureza humana. Assim é Pessoa, que se esvazia de si, e Se dá na Cruz e no Mistério do Pão e do Vinho eucarísticos, verdadeiramente Seu Corpo e Sangue. Esvaziando-Se e dando-Se gera a unidade de Ser com as pessoas que O acolhem. Dá-se entre Jesus e os que o acolhem a mesma unidade que existe entre o Pai que Se dá e Jesus que O acolhe plenamente: a unidade do Espírito Santo. Jesus acolhe o pai porque acolhe o seu dom sem impor nenhuma condição, em total obediência e disponibilidade. O dom do Pai é a existência, com toda a sua realidade (a “cruz”). O cristão O acolhe assim, sem rejeitar nada do que Jesus diz e exige (cf. Mt 11,6; Lc 7,23), acolhendo a providência do Pai sem reparos (a cruz de cada dia, até o dia de sua morte). Então aceitar os meios de vida como graça de Deus, como o israelita descrito no Deuteronômio, é apenas uma passo, dentro dos limites da vida mortal.

O cristão aceita a morte como graça de Deus, no movimento divino de esvaziar-se de si mesmo e dar-se aos outros; e, na condição mortal, isto é gastar-se, morrer voluntariamente, dar a própria vida no serviço a Deus em benefício dos outros, “para que todos tenham vida” (cf. Jo 10,10); isto realiza a unidade do homem com Deus, pois a pessoa age como “mão” de Deus que doa vida e a unidade de vida entre o doador humano e aquele que recebe o serviço gratuito. Assim é que a carne humana é divinizada. O Pai trabalha sempre, pois vive sempre esse processo criativo. Então, não sendo a morte mais a destruição da pessoa humana, mas o meio para a sua divinização, toda a vida humana terrena deve ser esse esvaziar-se de si mesmo para dar-se aos outros. O trabalho é serviço ao próximo, é meio de divinização para quem trabalha e é providência de Deus para quem recebe os frutos do trabalho. Não é mais condenação, mas participação em Deus, que trabalha sempre. Por isso, quem dá, é mão de Deus que tudo dá, a uns através de outros e isso diviniza o ser humano. Essa vivência divina do homem é o “culto em espírito e verdade” (cf. Jo 4,20-24) em um “sábado”, ou melhor “domingo” permanente. Nessa perspectiva todo dia é “do Senhor” e a igreja celebra todos os dias esse mistério, oferecendo a Eucaristia.

São Paulo afirma que teve revelações do Mistério de Cristo (cf. Ef 3,3). Uma das cartas mais reveladoras do conhecimento desse Mistério, sua absoluta novidade em relação às concepções religiosas tradicionais e sua profundidade nos é dada na Epístola aos Colossenses. Nela São Paulo afirma claramente: a realidade é o Corpo de Cristo. Todas as práticas religiosas sagradas do judaísmo e até do paganismo eram apenas uma sombra, toleradas como uma paciente pedagogia divina em vista da revelação desta verdade: o Corpo de Cristo, isto é, a unidade de todos em Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado como verdadeiro homem, que viveu, e também assim revelou, a relação divina de Amor-doação total de si em relação ao Pai Celestial e aos homens, estabelecendo entre si e os homens a mesma relação divina que tinha desde toda eternidade com seu Pai, a unidade do Espírito Santo (cf. Cl 2,8-23). Esta relação é a verdadeira relação do homem com Deus e com o próximo, é a verdadeira religião. O Corpo de Cristo, constituído pelos que, crendo nEle como Caminho Único de salvação, esvaziam-se de si mesmos, dão-se aos outros, criando vida e unidade. Este é o sentido da Eucaristia. Então ninguém se deixe perturbar por críticas e cobranças a respeito de festas religiosas e de sábados (cf. Cl 2,16).

Por que, então, a Igreja Católica celebra um dia semanal? Jesus Ressuscitado aparecia (cf. Mt 28,1; Mc 16,2; Lc 24,1.13.34.36; Jo 20,1.19.26) sempre “no primeiro dia da semana” entre seus Apóstolos. Os cristãos compreenderam, iluminados pelo Espírito Santo (cf. Jo 14,26; 16,12-13), que Jesus Cristo era o novo Adão (cf. 1Cor 15,22.45), o primeiro de uma nova criação, o mundo dos ressuscitados em que Deus é tudo em todos (cf. 1Cor 15,28). Então, mesmo vivendo o “culto em espírito e verdade” num domingo permanente, os cristãos devem celebrar visivelmente esse culto, reunir-se visivelmente, manifestando visivelmente a unidade do Corpo de Cristo e oferecer juntos o culto que cada um oferece no seu dia-a-dia quando estão dispersos, manifestando que tudo é um só oferecimento a Deus Pai, o de cristo em sua vida mortal e no Calvário, e o dos cristãos, membros vivos de Seu Corpo, unidos com a Cabeça, Jesus de Nazaré, que também Se oferece. Por isto a Missa com o seu oferecimento “por Cristo, com Cristo e em Cristo” é o sacramento do “culto em espírito e verdade”, o sinal sacramental dessa unidade de ser e de oferta dos cristãos entre si e com Jesus Cristo. A noção de sacramento é, exatamente, a de um sinal visível de uma realidade invisível, mística. O culto cristão é permanente. O domingo é um dia sacramental, para anunciar visivelmente o mistério vivido de forma oculta (cf. Mt 6,1-18) o tempo todo.

Dizíamos acima não reconhecer a real distinção entre as atividades que caracterizam o domingo e as que o descaracterizam na realização ou não de trabalhos servis, corporais. Agora já nos será mais fácil entender que a verdadeira diferença está na gratuidade com que é praticada a ação e não tanto se é uma atividade corporal ou mental. A característica do domingo cristão está não é o descanso em si, mas o encontro gratuito de pessoas e a gratuidade das relações pessoais. O importante é testemunhar a libertação recebida da condenação de Gn 3,19, “comerás o pão com o suor do teu rosto” e não agir em vista de lucros e proventos por mais justificados que sejam se são para proveito pessoal e não para serviço do próximo e a doação-de-si. Os serviços públicos que funcionam aos domingos devem ter esse espírito. O domingo é, desse modo, pedagogia para toda a vida do cristão, que deve viver da graça de Deus, celebrada no sacramento do domingo, a semana inteira.

A sociedade moderna transformou praticamente todas as atividades humanas em negócios de investimento e lucro. Em busca de novas performances de produção e consumo cria muitos trabalhos aos domingos e as “folgas” dos empregados são meros descansos, para não consumir completamente a pessoa. E, sem nenhum caráter celebrativo são colocadas em qualquer dia da semana. Isto proporciona menos encontros, por exemplo, na mesma família, entre grupos de amigos etc. Por outro lado, o tempo livre também passa a ser ocasião de lucro e consumo. As pessoas não se encontram mais num clima de gratuidade, consomem juntos produtos e diversões e desaparece gradualmente a criatividade que surge do encontro gratuito e livre das pessoas. Isso leva a um gradativo empobrecimento cultural. Se a cultura passa a ser produzida por profissionais trabalhando em vista de lucros sobre pessoas que buscam consumir tais produtos em seus tempos livres, a tendência é a diminuição da obra do Espírito, que, por natureza, se comunica na gratuidade. A cultura autêntica nasce da gratuidade e do encontro desinteressado, da “perda de tempo” se podemos expressar-nos assim. É expressão do Espírito, que sempre aflora na alma da pessoa humana quando esta está “desinteressada”, está isenta da “luta” por qualquer objetivo pragmático, de qualquer auto-defesa. Está aberta para manifestar-se nela os frutos da contemplação do ser, que é por natureza, belo. A diversão-consumo tende a ser produzida numa linha de eficiência e rapidez, onde “time is money” (o tempo é dinheiro) e tende a agradar a carne, tendendo progressivamente a rebaixar as pessoas e não a elevá-las espiritualmente. Talvez muitos não concordem com estas proposições, diante de muitas belas manifestações da cultura moderna produzidas profissionalmente, mas é preciso lembrar que ainda somos herdeiros de muitos produtos culturais surgidos da gratuidade e do encontro desinteressado que havia na Idade Antiga e na Idade Média, épocas em que não havia o afã produtivo que existe hoje. Por exemplo, a música das grandes orquestras e do cinema, as tramas teatrais do cinema, a maior parte – incluindo os mais belos - dos ritmos musicais, tudo isso é herança da cultura popular espontânea surgida do tempo livre e do encontro gratuito das pessoas antes da Idade Moderna. O que o mundo comercial e monetário atual criou de realmente novo e belo? É difícil responder porque é quase nada e isso porque da satisfação da carne – o interesse do lucro, na “luta” contra a morte, em vista de ter mais e poder mais – não pode surgir uma obra do Espírito. Esta só surge da gratuidade. “Da boca dos meninos e das crianças de peito tirastes o vosso louvor” (Sl 8,3).

Precisamos de uma cultura que não busque produzir sempre mais ou gozar sempre mais, mas contemple mais a natureza e expresse a alegria de ser, de existir, de ser criatura de Deus que nos provê.



[1]Do Catecismo maior de São Pio X

395.- Que nos proíbe o terceiro mandamento? - O terceiro mandamento nos proíbe as obras servis e outras quaisquer que nos impeçam o culto a Deus.

396.- Quais são as obras servis que se proíbe nos dias festivos? - As obras servis que se proíbe nos dias festivos são as obras que se chamam manuais; a saber, os trabalhos materiais em que o corpo tem mais parte que o Espírito, como as que de ordinário executam os criados, operários e artesãos.

397.- Que pecado se comete trabalhando no dia de festa? - Trabalhando no dia de festa se comete pecado mortal; mas se desculpa de culpa grave a brevidade do tempo que se emprega.

398.- Há algumas obras servis que se permite nos dias de festa? - Se permite nos dias de festa as obras que são necessárias à vida ou ao serviço de Deus e as que se fazem por causa grave, pedindo licença, se possível, ao próprio pároco.

399.- Por que fim se proíbe nas festas as obras servis? Se proíbe nas festas as obras servis para que possamos atender melhor ao culto divino e à salvação de nossa alma e para descansar de nossas fadigas. Por esta razão não se proíbe algum honesto entretenimento.

400.- Que outras coisas devemos evitar principalmente nas festas? - Nas festas devemos evitar principalmente o pecado e tudo o que possa induzir-nos a ele, como são as diversões e reuniões perigosas.