quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Crítica a Artigo de Vida Pastoral - Paulus

Considerações sobre o artigo

Da Tutela Moral à Soberania Dialógica da Consciência

Fábio Régio Bento

Publicado em Vida Pastoral 248 – maio-junho 2006 – p. 19-24.

O ser humano busca felicidade, plenitude de vida, e nessa busca se autotranscende. Inventa coisas que lhe tornam a vida menos penosa. Assim domina o fogo, inventa a roda, a máquina, a telecomunicação, dominando cada vez mais a matéria e retirando dela recursos inusitados. Na mesma busca, porém, escraviza o seu próximo, guerreia, saqueia, e mata. Tanto desenvolvendo valores positivos quanto negativos, o instrumento que determina a ação do homem em busca de felicidade é a busca de poder. Ao homem parece que a felicidade e a plenitude de sua vida está em ampliar o seu poder sobre a natureza e o seu semelhante. Assim vai o homem em busca de poder e nessa busca vai aumentando sempre a opressão que pesa sobre si. A redenção que os homens esperam é sempre de um Messias poderoso, um filho de Davi que reine numa Jerusalém terrestre e estabeleça a vida plena sobre a terra. Dizem, uma sociedade justa e fraterna sobre a terra. Mas essa “sociedade justa e fraterna” não agrada aos homens em sua sede de poder. A menos que haja uma conversão e o homem não busque mais o poder. Quando o ser humano está sentindo-se oprimido deseja a justiça e a fraternidade. Quando alcança poder acha muito bom estar acima de seu semelhante, “protegendo-o”, “liderando-o”, etc... O Messias verdadeiro rejeitou as propostas de poder que lhe fez Satanás no deserto e o povo, após a multiplicação dos pães. O verdadeiro Messias, que é o próprio Caminho e Vida Plena, não buscou o poder, mas resolveu o dilema da humanidade – buscar felicidade adquirindo poder e terminar sendo oprimida por esse mesmo poder – tornando-se escravo, aniquilando-se até à morte e morte na Cruz. Só então o poder lhe foi dado pelo Pai, não conquistado por sua humanidade. O Pai lhe deu o Nome que está acima de todo nome e todo o poder no Céu e na terra.

Toda busca de poder do homem sobre a terra está marcada pelo pecado – o homem querer ter em si mesmo, sob seu controle, a Vida – e a Verdade está em que só Deus tudo criou e mantém, e o homem só pode ter legítimo poder se lhe é dado do Alto. E este só lhe é dado, como a Jesus Cristo se o homem renuncia a toda conquista ou afirmação de poder.

Dentro do Cristianismo é muito freqüente as pessoas honrarem externamente o Crucifixo, mas adorarem o que o Messias não foi: um rei de justiça nesse mundo mortal. Fazem ladainhas ao Cristo crucificado e acreditam em “construir uma sociedade justa e fraterna” neste mundo mortal. Afirmamos: o Reino de Cristo não é deste mundo, o seu poder sobre este mundo só se manifestará plenamente na Parusia. Até lá satanás terá poder e a mentira e o engano estarão poderosos neste mundo. Enquanto houver a morte, só o Espírito de Cristo, que nos leva a aceitar voluntariamente a morte – participar da Cruz do Senhor –, dando nossa vida pelos outros e não afirmando-a – o que leva à busca de poder – é que nos liberta do poder de satanás. A Missão da Igreja é convidar as pessoas a participar desse Reino escatológico. Os sinais do Reino que já se fizerem visíveis por causa da liberdade dos que renunciaram à busca de poder vivendo o Evangelho, são um testemunho e um acréscimo concedidos pelo Senhor e não um fim em si mesmo, e muito menos o Reino de Deus.

O artigo de Fábio Régio Bento está todo calcado na idéia de disputa humana de poder. Mesmo que quando apela para o caráter batismal do leigo pareça apoiar-se numa ordenação divina. Quer mostrar que pelo caráter batismal o laicado tem poder para estabelecer regras morais na Igreja. e que se o clero se arroga o poder de estabelecer regras morais é devido ao “clericalismo”, é uma usurpação e concentração de poder nas mãos de poucos.

Começa afirmando que todo o poder vem do povo e que não há problema algum quando se afirma que todo o poder vem de Deus. Coloca a questão de se o poder vem de Deus por meio do clero, como se pensava, ou por meio do povo. Apela para a Lumen Gentium 32 e a Dignitatis Humanae 3 para afirmar a igualdade fundamental e a liberdade de consciência moral de todos os batizados. Interpreta-os de forma individualista, como os protestantes, como se Deus fosse obrigado a dar a mesma lucidez à consciência moral de cada cristão – o que é semelhante à doutrina do livre-exame, protestante.

Não dispensa-se de afirmar: a Igreja do Vaticano II se autocompreende como Igreja povo de Deus. E inicia seu artigo trazendo concepções absolutamente estranhas à Revelação, tiradas da revolução francesa e da Constituição brasileira, acerca da concepção moderna de “povo”.

O autor esquece que a Igreja é também um corpo, o Corpo de Cristo. E esquece a natureza carismática da Igreja. De que se todos os batizados participam do múnus régio, profético e sacerdotal de Cristo, participam em graus diferentes segundo os carismas que cada membro recebe para a edificação de todo o corpo. Não é do povo que emana o poder, mas de Deus e o “para-quedas” que tal poder usa para chegar à terra – para utilizar a expressão do próprio autor – é o carisma que Deus dá a cada um em sua liberdade divina e não o “povo” como um todo. Assim, Deus pode, através de determinados leigos, iluminar a sua Igreja, mas cabe ao Papa ou ao Magistério autêntico que nele tem sua autoridade, confirmar essa iluminação discernindo a autenticidade desse carisma. E isso não é clericalismo, porque não é afirmado que qualquer padre ou bispo pode estabelecer normas morais. E nisto, todo bispo ou padre é igual a todo leigo.

A afirmação do “povo” como instância de poder é despersonalizante e massificante. Deus se revela sempre a pessoas particulares em favor de todo o corpo, mas não ao corpo como um todo. Alguém é testemunha de uma determinada verdade para, anunciando e sendo acolhido, essa verdade ser compartilhada pela fé de todos. Assim cada um é um órgão do corpo e o corpo com órgãos diferentes vai sendo enriquecido na verdade.

A própria democracia moderna, tomada como inquestionável pelo autor, tem-se revelado uma mentira. O poder no mundo pertence a oligarquias empresariais e bancárias cada vez mais exíguas, que controlam todos os países, que estão perdendo a sua soberania, justamente pelo instrumento da democracia. Os meios de comunicação social, dominados pelo capital internacional apátrida, vão impondo modelos de comportamento e pensamento e, um deles, é justamente a canonização da democracia de sufrágio universal. Nosso Brasil, por exemplo, nunca foi tão “entregue” ao capitalismo financeiro internacional, contra o sentimento e a vontade popular, como após a “democratização” e as “diretas já”. Veja Collor, Fernando Henrique e Lula, a privatização – internacionalização – de nossas indústrias públicas, o silêncio dos meios de comunicação e a conivência das autoridades eleitas sobre a internacionalização da Amazônia, corrupção crescente e espoliação da coisa pública.

Querer trazer esse modelo massificante e despersonalizante para dentro da Igreja, é fazer da Igreja discípula de um mundo pecador e corrupto, ao invés de sal da terra e luz do mundo. Se há pecados no clero – carreirismo e busca de poder político, por exemplo – isto não inviabiliza a verdade, de que o clero não é só um ministério – um serviço – mas um carisma, uma vocação, que, essa sim, nem sempre é bem discernida, e muitos utilizam o ministério para buscarem poder.

O autor utiliza a categoria da liberdade de consciência para afirmar uma “soberania dialógica da consciência”. Dada a demanda por uma lei moral que oriente a consciência, abre-se o campo para uns poucos arrogarem-se em intérpretes da “vontade do povo”, criando uma permanente incerteza e, aí sim, uma busca desenfreada de poder. Seria o resultado da Igreja copiar o modelo iluminista de democracia. Ou então, como coloca o autor, ao longo de seu artigo, cada um pode seguir o ditame da consciência “soberana” e aí estabelece-se a dúvida e a discussão, o relativismo, o “cada qual faça o que quiser”, em assuntos, como o dos métodos naturais, que acossam a consciência, que busca clareza e verdade.

A Igreja não pode pensar o laicato como uma instância de poder como um todo. Como também o clero, como um todo, não deve ser uma instância de poder. Cada cristão tem o poder que o seu carisma requer. Um leigo, como Bento de Núrsia, Francisco de Assis, Catarina de Sena, Jacques Maritain, uma religiosa como Madre Teresa, tiveram muito mais poder na Igreja que muitos bispos. Isto porque colocaram seus carismas a serviço e não porque reivindicaram poder para si. Cada leigo, sim, pode ser profeta e santo, mas esse profetismo será submetido à prova do Magistério e da história. O “laicato”, considerado como um todo, sempre exigiria um intérprete de sua voz. Quem seria?

E quem é o laicato da Igreja? Os que freqüentam as missas? Os que se engajam nas comunidades em diversos ministérios? Todos os batizados? Quantos batizados não dão a menor importância à fé batismal e vivem segundo outras bases, embora com os lábios professem o credo?

Tendo em vista que os pressupostos básicos do autor são falazes, abstemo-nos de analisar todo o tratamento que dá à questão dos métodos naturais de contracepção. Concordamos que a questão da paternidade/maternidade responsável transcende em muito a simples utilização de métodos naturais. Mas estes e os métodos artificiais de contracepção constituem, por si sós, um problema moral a ser resolvido. Com que bases? De uma situação contingente como a de certos trabalhadores, como quer o autor? Ou numa consideração do significado intrínseco da sexualidade, da genitalidade e do amor humano?

Padre Afonso Henriques Salgado Chrispim

Mestre em Teologia Moral

afonsochrispim@yahoo.com.br

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