terça-feira, 19 de maio de 2009

Masculino e Feminino

ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA DO MASCULINO E DO FEMININO.
1. O igualitarismo em relação ao masculino e feminino.
Em nossa época é difícil, por causa da mentalidade reinante, condicionada pela concorrência capitalista, conceber que possa haver diferentes sem um ser superior ao outro. Surge assim uma tendência muito forte ao igualitarismo, que fecha os olhos das pessoas para as diferenças naturais entre seres diferentes. Esta tendência atual chega a colocar as pessoas humanas no mesmo nível – às vezes inferior – dos animais. Assim também a nossa época é fechada a aceitar diferenças legítimas entre o varão e a mulher. Essa perda de percepção leva a masculinizar a mulher e afeminar o homem, perdendo de vista suas características naturais e acusando todos os que percebem tais diferenças de preconceituosos. De fato, quem vê melhor a realidade tem conceitos que são anteriores à expressão, ou seja, pré-conceitos. Quem não pensa não tem pré-conceitos, aliás, não tem conceito nenhum sobre nada, vive sem razões e sem sabedoria e aceita tudo o que a mentalidade reinante lhe apregoa, numa acomodação covarde. A felicidade da humanidade exige que se conheça melhor a pessoa humana e cada pessoa humana se aceite na sua característica particular, sem uma permanente disputa e comparação com o diferente. Varão é varão, mulher é mulher e a libertação de ambos não estará jamais numa perda de suas características naturais para se assemelhar ao outro. Varão e mulher não devem concorrer um contra o outro, mas complementar-se, e nessa complementação harmônica, na aceitação de suas características em ação de graças ao Criador que os criou tais como são, está sua felicidade.
2. O elemento cultural
Um elemento que entra sempre quando se quer definir as características naturais de varão e mulher é o elemento cultural. De fato, este elemento condiciona a pesquisa das características do varão e da mulher. Esta é muito marcada pela experiência cultural à qual a pessoa está acostumada, que dá determinadas atribuições ao varão e outras atribuições à mulher. Em vez de características naturais cai-se em características culturais, que podem mudar de um lugar para outro, de uma tradição cultural para outra. Este elemento leva a considerar todas as distinções entre varão e mulher como relativas a uma determinada cultura e a considerar as diferenças como relativas, caindo-se de novo no igualitarismo, não reconhecendo nenhuma diferença real, que transcenda as tradições culturais. Nesse caso, não se pergunta por que todas as culturas criam papéis sociais diferentes para mulheres e varões. Se todas as culturas criam papéis sociais e costumes diferentes para varão e mulher, não será porque há uma diferença real entre essas duas realizações da pessoa humana?
3. A “libertação” da mulher e o progresso tecnológico
A nossa época orgulha-se da “libertação” feminina, mas ressente-se de uma forte carência afetiva das pessoas nos ambientes sociais em que a mulher foi “liberada”. Essa liberação da mulher é identificada com a entrada da mulher no mercado de trabalho, em papéis sociais que antes estavam reservados ao varão. Há então hoje corpos femininos nas Forças Armadas, futebol feminino profissional, mulheres na política, no governo, empresárias, taxistas, motoristas de ônibus, halterofilistas etc. Pensa-se que a mulher é liberada se lhe é reconhecido ocupar os lugares em que antes o varão era exclusivo. Isto é hoje possível porque a humanidade passou a dominar muitas fontes de energia que antes não estavam sob o seu poder. A vida nas cidades humanas ficou mais fácil, exigindo sempre menores esforços do corpo humano. Há apenas trezentos anos não tínhamos eletricidade, nem motores de combustão interna de combustíveis fósseis, nem energia nuclear, nem eletrônica analógica nem digital, os exércitos usavam muito menos a pólvora e a esgrima exigia pesadas espadas. A não ser por alguns moinhos movidos a energia dos rios ou dos ventos, a quase totalidade da energia que movia o mundo era animal ou do corpo humano. Não havia estradas pavimentadas, nem outros frutos do petróleo. A mulher, com sua compleição física mais frágil não era adaptada aos esforços necessários e por isso era afastada de funções abertas ao varão. Hoje não faz diferença ser varão ou mulher para dirigir um avião, mas antigamente era necessária força física para conduzir uma diligência por estradas esburacadas. Sem dúvida, o progresso técnico condicionou a “libertação” da mulher. E isto é também um elemento cultural, que pode ser mudado quando tais energias não estiverem mais disponíveis para as pessoas.
4. A diferença fundamental entre varão e mulher
Então que característica pode-se perceber no varão e na mulher que não seja condicionada por nenhuma cultura? O primeiro elemento à nossa disposição para responder a tal questão é o corpo físico da pessoa. Então devemos ter um elemento intelectual que ligue o corpo à pessoa. Como o corpo pode falar da realidade da pessoa? Assumiremos o caráter sacramental do corpo em relação à pessoa. A pessoa é mais do que o seu corpo. O corpo, porém, é o sinal visível da pessoa, é o “sacramento” da pessoa. Então, um sinal no corpo, será entendido por nós como uma característica da pessoa não só no corpo, mas também no seu psiquismo, no elemento espiritual da pessoa que transcende o corpo. Pode-se chamá-lo “alma”.
Observando o corpo do varão e da mulher, o elemento que os distingue é a característica do corpo da mulher todo condicionado para gerar uma nova vida. Útero, vagina, ovários e seios para amamentar a criança nascida. O varão, não os possuindo, tem o escroto com os testículos, que fabricam o sêmen, e o pênis, perfeitamente adaptado à vagina da mulher. Este elemento é humano e universal e supera todo condicionamento cultural. A mulher é fecundada e o varão a fecunda. Esta característica que se percebe fisicamente, assumimos que também seja psíquica. O varão fecunda a mulher fisicamente e esta concebe uma criança, uma nova pessoa humana. O varão, porém, deve fecundar a mulher também no seu aspecto espiritual, admitindo o corpo como um sacramento da pessoa. Essa fecundação se dá pelo exercício do papel do varão no mundo.
Para conhecer melhor esse papel temos que fazer uma análise mais ampla da situação do gênero humano, segundo as categorias de fecundar e ser fecundado. Como pudemos perceber, para nós o que caracteriza o masculino é “fecundar” e o que caracteriza o feminino é “ser fecundado” e gerar frutos.
Abstraindo a diferenciação entre varão em mulher, diante de Deus, o gênero humano fecunda ou é fecundado? Devemos admitir que Deus é Infinito e não pode ser mudado pela pessoa humana. Esta, sim, que recebe d’Ele muitos dons e se realiza com estes dons, especialmente sua graça. E é pelo dom de Deus que a pessoa humana dá frutos. Admitimos então que Deus fecunda a humanidade. Então na relação Deus-Pessoa Humana, Deus tem um papel masculino e a Pessoa Humana tem um papel feminino.
Esta conclusão tem respaldo bíblico. O povo de Israel é tratado no Antigo Testamento como a Esposa (adúltera, por sua adoração aos falsos deuses, baals e astartes) de Iahweh. E no Novo Testamento, a Igreja é a Esposa de Cristo.
Continuando a abstrair a diferenciação entre varão e mulher, em relação à natureza visível, o gênero humano fecunda ou é fecundado? O elemento divino no homem, sua inteligência, faz com que a natureza seja capaz de produzir muitas coisas que sem a inteligência do homem nunca produziria. É verdade que o corpo do homem se alimenta do fruto da terra e seu espírito se alimenta das belezas da natureza também, mas a pessoa humana permanece fundamentalmente a mesma. Quem muda e produz muitos frutos, impossíveis sem a fecundação do espírito humano é a natureza. Então na relação Pessoa Humana-Natureza, a Pessoa Humana tem um papel masculino e a Natureza tem um papel feminino.
Assim, a pessoa humana é feminina em relação a Deus e masculina em relação à natureza. O elemento superior na escala dos seres, de material a espiritual, tem um aspecto masculino e o elemento inferior tem um aspecto feminino. O superior fecunda com seu espírito o inferior.
Na linguagem bíblica o superior é dito “cabeça” e o inferior é dito “corpo”. A “cabeça” é a fonte de vida do “corpo”, fecundando-o com sua potência vital. Assim Jesus Cristo é “cabeça” da Igreja, que é Seu “corpo”. Veremos adiante alguns exemplos sobre isto.
Não queremos dizer que a mulher – feminina – é inferior ao varão – masculino. Nada disso. O postulado que está aqui é a unidade do gênero humano. Nesses raciocínios estamos sempre considerando o gênero humano na sua unidade: feminino em relação a Deus e masculino em relação à natureza.
A diferenciação da pessoa humana em duas realizações, varão – masculino – e mulher – feminino – não estabelece uma hierarquia entre os dois, como se um fosse superior ao outro. É preciso entender que podem ser diferentes sem necessariamente um ser superior ao outro, mas tal diferenciação ser um sinal da semelhança divina (cf. Gn 1,26-27). O varão e a mulher são “pessoa humana” e isto estabelece uma igualdade fundamental entre essas duas realizações da pessoa humana. Mas as diferenciações entre eles fazem parte da imagem divina segundo a qual foram criados e mostram o caráter relacional das Pessoas Divinas e de Deus com suas criaturas.
Vimos o caráter feminino da pessoa humana na relação desta com Deus. E o caráter masculino da pessoa humana na relação desta com a natureza. A relação da pessoa humana com Deus é espiritual. A relação da pessoa humana com a natureza é, em primeiro lugar, material.
Vimos que a pessoa humana é feminina na relação com Deus. Se há duas realizações da pessoa humana, uma masculina e outra feminina, é de se esperar que a relação com Deus é mais desenvolvida na pessoa feminina, na mulher. Ela, por ser feita para ser fecundada é mais aberta ao princípio fecundador. A mulher, por ser na pessoa humana, a imagem da terra, é mais aberta para Deus. É mais espiritual do que o varão.
Vimos que a pessoa humana é masculina em relação à terra, à natureza. Da mesma forma, é de se esperar que a relação com a terra, a natureza e a matéria, é mais desenvolvida na pessoa masculina, no varão. Ele, por ser feito para fecundar é mais aberto àquela realidade que pede para ser fecundada. O varão, por ser na pessoa humana, a imagem de Deus fecundador, é mais aberto para a terra, a natureza e a matéria. É mais materialista do que a mulher.
Aqui temos um elemento presente em outras realidades da natureza: os diferentes se atraem e os iguais se repelem. Assim é com as cargas elétricas e assim é com a natureza humana também. Varão e mulher se atraem e varão e varão se “repelem”, mulher e mulher se “repelem”. A difusão planejada do homossexualismo em nossos dias não poderá negar esse fato. Esse fato se revela também na inclinação da mulher para o espírito e do varão para a matéria. A mulher é imagem da terra, é atraída pelo Espírito, Deus. O varão é imagem de Deus, é atraído pela matéria, pela terra. Assim, se o fato do varão ser imagem de Deus parecer a alguém uma superioridade sobre a mulher, imagem da terra, a sua atração ao material o inferioriza em relação à mulher atraída para Deus. E, se no simbolismo sacramental, há essa diferença entre varão e mulher, na unidade varão e mulher temos a imagem de Deus, participada pelos dois.
5. Explicação da inimizade entre a “mulher” e a serpente.
“14Então o Senhor Deus disse à serpente: ‘Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais e feras dos campos; andarás de rastos sobre o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida. 15Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu ferirás o calcanhar.’ 16Disse também à mulher: ‘Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio.’ 17E disse em seguida ao homem: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida’” (Gn 3,14-17).

Deus estabelece um ódio entre a serpente – satanás – e a mulher. Por que entre a serpente e a mulher se tanto o varão como a mulher foram criados por ele e ambos igualmente pecaram? A descendência, no Antigo Testamento é muito mais atribuída ao varão do que à mulher. Nas genealogias bíblicas do Antigo Testamento – a de Mateus 1,1-17 é inovadora nesse sentido – não aparecem nomes de mulheres. Por que só aqui a descendência é atribuída à mulher e não ao varão? Podemos responder que aqui, por “mulher” deve-se entender o gênero humano como um todo na medida em que se coloca como criatura de Deus, dependente totalmente da graça de Deus, fecundado pela graça de Deus. O pecado fora instigado pela sugestão de “ser como Deus”, a sugestão de que Deus seria auto-suficiente e independente de qualquer outro ser – a revelação da Trindade nos revela que o Deus auto-suficiente é Pessoas que se fazem dependentes umas das outras. Ora, o varão, como “imagem de Deus” estaria aqui dentro da sugestão do pecado. Na medida em que a pessoa humana é “mulher” e se deixa fecundar pela graça de Deus, torna-se inimiga do demônio, cuja sugestão é o orgulho e a auto-suficiência. A descendência dos que vivem a Aliança com Deus, ao receber a terra e a liberdade e todos os demais dons somente da graça de Deus, aceitando-se como criaturas totalmente dependentes de Deus é que é inimiga do demônio. No orgulho da confiança em seu próprio engenho, como aparece no relato da Torre de Babel (cf. Gn 11,1-9), a pessoa humana torna-se mais amiga do que inimiga de satanás.
Depois Deus promete multiplicar os sofrimentos do parto da mulher e os sofrimentos do varão para retirar o fruto da terra. Aqui também mulher e varão são símbolos do gênero humano considerado como um todo. Os sofrimentos do parto não podem ter sido inventados por Deus para aumentar ainda mais a miséria da pessoa humana, já decaída pelo pecado. É melhor entender que “o espírito é que dá vida” (cf. Jo 6,63) e a mulher é a que é atraída pelo Espírito. Gerar vida se tornará, após o pecado, uma tarefa penosa para a pessoa humana. Na relação com a terra, para viver do trabalho de suas mãos, como se não dependesse da graça de Deus, o relato coloca Deus dirigindo-se ao varão, aquele que tem afinidade com a matéria, em perfeita consonância com a explicação que expusemos. Aqui também o varão que sofrerá para tirar frutos da terra é o gênero humano como um todo.
Muitos poderão argumentar: isto é cultural, porque à mulher, que pare os filhos é dado o trabalho doméstico e ao varão o trabalho produtivo dos campos. É verdade que a cultura os moldou assim. Mas também se deve perguntar: por que a cultura os moldou assim? Não será por uma característica antropológica que antecede a cultura? Por uma característica intrínseca do varão e da mulher? Respondemos: naturalmente que sim. E a cultura moderna, por que dá à mulher tarefas produtivas? Porque a descoberta do controle e o uso das novas energias, as dos combustíveis fósseis, a elétrica, a solar, a nuclear etc. fez com que a máquina fizesse realizasse o trabalho penoso a que o corpo mais delicado da mulher não era adaptado, antes da possibilidade do uso dessas energias. Até então, o corpo mais robusto do varão levava-o a assumir as tarefas produtivas que exigiam maior vigor físico. Até no físico se manifesta que o varão é mais adaptado á vida na terra e a mulher é mais espiritual. No gerar e amamentar há todo um envolvimento espiritual entre a mulher e sua criança, que molda o espírito desta.
Pode-se também ver-se sinal de cultura machista na constatação de que na história universal aparece muito mais nomes de homens do que de mulheres. Também aqui a nossa explicação da diferença entre varão e mulher nos ajuda. A história é feita com base em documentos e os documentos vêm de fatos que envolvem relações materiais entre as pessoas. Assim são os varões que lidam com os fatos materiais, a dura luta da pessoa humana para sobreviver sobre a terra, as lutas, os exércitos, as guerras, as construções etc. Dado que o varão é imagem de Deus e voltado para a matéria é de se esperar que tenha uma inclinação maior para todas essas atividades. Isso não significa que a mulher participou menos da história universal. Em cada varão está capitalizado o elemento espiritual gerado nele pela relação com as mulheres, sejam mães, educadoras, esposas, filhas etc. Atribui-se a Napoleão Bonaparte o dito de que “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher”. Na formação do espírito do varão, que realizou esta e aquela proeza histórica está a influência espiritual e psicológica das mulheres, benéfica ou prejudicial. Assim, as mulheres participaram intensamente da história universal, mas os seus feitos, sendo mais espirituais, nem sempre deixaram documentos que os testemunhassem. Isto é testemunhado pela passagem “teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio” do versículo 16, onde a mulher, na economia da pessoa humana decaída pelo pecado, e lutando contra a morte pelo trabalho, acaba submetida ao varão, na ordem dessa luta. Mas sua índole espiritual, sua inclinação para Deus e sua vocação a ser fecundada pelo amor a atrairá para o varão, imagem de Deus, a Quem a índole espiritual da mulher procura.
6. O “machismo” de São Paulo não precisa ser machista.
Há nas cartas paulinas algumas passagens que são vistas como machistas, desprezando a mulher, e são pouco levadas em conta, tidas como influenciadas pelo ambiente machista onde São Paulo vivia e pregava o cristianismo. Isso pode ser também entendido como certo desprezo por alguns elementos da Palavra de Deus. Este mesmo Apóstolo escreve:

“Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça” (2Tm 3,16).

A nossa explicação da diferença antropológica entre varão e mulher também propõe uma interpretação para essas passagens, que dispensa a acusação de machismo para São Paulo e dá um sentido espiritual a essas passagens.

“3Mas quero que saibais que a cabeça de todo homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem, a cabeça de Cristo é Deus. 4Todo homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta falta ao respeito ao seu senhor. 5E toda mulher que ora ou profetiza, não tendo coberta a cabeça, falta ao respeito ao seu senhor, porque é como se estivesse rapada. 6Se uma mulher não se cobre com um véu, então corte o cabelo. Ora, se é vergonhoso para a mulher ter os cabelos cortados ou a cabeça rapada, então que se cubra com um véu. 7Quanto ao homem, não deve cobrir sua cabeça, porque é imagem e esplendor de Deus; a mulher é o reflexo do homem. 8Com efeito, o homem não foi tirado da mulher, mas a mulher do homem; 9nem foi o homem criado para a mulher, mas sim a mulher para o homem. 10Por isso a mulher deve trazer o sinal da submissão sobre sua cabeça, por causa dos anjos. 11Com tudo isso, aos olhos do Senhor, nem o homem existe sem a mulher, nem a mulher sem o homem. 12Pois a mulher foi tirada do homem, porém o homem nasce da mulher, e ambos vêm de Deus. 13Julgai vós mesmos: é decente que uma mulher reze a Deus sem estar coberta com véu? 14A própria natureza não vos ensina que é uma desonra para o homem usar cabelo comprido? 15Ao passo que é glória para a mulher uma longa cabeleira, porque lhe foi dada como um véu” (1Cor 11,3-15).

Aqui, no versículo 3, “a cabeça” é o princípio de vida do corpo, é o elemento fecundante. Jesus Cristo é a cabeça de toda pessoa humana porque por meio d’Ele é dado o Espírito Santo, a graça de Deus, para dar vida a cada pessoa humana. Assim, em relação à humanidade, Jesus Cristo exerce um papel masculino, é o Esposo (cf. Mt 9,15; 25,1-13; Mc 2,19-20; Lc 5,34-35; Jo 3,29; 2Cor 11,2; Ap 21,2). Ele é a Cabeça do Corpo, que é a Igreja (Ef 4,15; Cl 1,18; 2,10.19).
O varão é a “cabeça” da mulher por ser imagem de Deus que fecunda, física e espiritualmente, a mulher, imagem da terra. Mais tarde veremos em que consiste essa fecundação espiritual.
A “cabeça” de Jesus Cristo é Deus, o Pai, porque Jesus Cristo é o Filho, “gerado, não criado” (cf. Credo Niceno-constantinopolitano) e, tendo-se encarnado, recebe do Pai o Espírito Santo, o sêmen da vida divina para dar vida divina ao seu corpo – físico e místico (cf. Mt 3,16-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22). Em relação ao Pai, o Filho, Jesus Cristo, tem um papel feminino. Por isso, entre as pessoas divinas é só Ele que se encarna e participa da humanidade, que é feminina em relação a Deus.
A questão do véu e dos cabelos, hoje desprezada como um elemento cultural ultrapassado, significa que o varão simboliza o gênero humano como imagem de Deus, e senhor do mundo visível, não tem nenhuma criatura visível acima de si. E a mulher simboliza que o gênero humano enquanto criatura tem acima de si a Deus, simbolizado pela cabeleira e pelo véu, que cobrem, que ficam acima da sua pessoa. Assim o varão simboliza o gênero humano na sua relação com a terra, o mundo visível e a matéria, e a mulher simboliza o gênero humano na sua relação com Deus. Não se pode perder de vista esses simbolismos se queremos entender a antropologia bíblica sobre o masculino e o feminino. “É glória para a mulher ter uma longa cabeleira” (1Cor 11,15) significa que a glória para toda pessoa humana é estar submetido a Deus. A passagem acima ainda mostra como São Paulo evita, contrariamente às interpretações que o acusam de aceitar o machismo, que tem a mulher e o varão no mesmo nível de dignidade (cf. 1Cor 11,11-12).

“31Todos, um após outro, podeis profetizar, para todos aprenderem e serem todos exortados. 32O espírito dos profetas deve estar-lhes submisso, 33porquanto Deus não é Deus de confusão, mas de paz. 34Como em todas as igrejas dos santos, as mulheres estejam caladas nas assembléias: não lhes é permitido falar, mas devem estar submissas, como também ordena a lei. 35Se querem aprender alguma coisa, perguntem-na em casa aos seus maridos, porque é inconveniente para uma mulher falar na assembléia. 36Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio ela tão-somente para vós?” (1Cor 14,31-36).

Por que as mulheres devem estar caladas? Também aqui precisamos ver o simbolismo da mulher como imagem da terra e da humanidade na sua relação com Deus. Nas assembléias devem falar os varões, ou seja, Deus, pois o varão é imagem de Deus. Quando São Paulo diz para a mulher não falar significa que o que é anunciado nas assembléias dos cristãos deve vir de Deus e não dos sentimentos carnais ou terrenos, da política dos homens. A humanidade, enquanto feminina nas relações com Deus deve ficar calada e deixar o Esposo Divino falar. Este é o sentido do contexto, que fala de profecia, que é Deus falando pela boca humana. Como está no versículo 36, a Palavra não sai da assembléia, simbolizada pela mulher, mas vem do alto para a humanidade. A humanidade, a assembléia, a Igreja, simbolizada pela mulher deve ouvir o que Deus fala.

“8Quero, pois, que os homens orem em todo lugar, levantando as mãos puras, superando todo ódio e ressentimento. 9Do mesmo modo, quero que as mulheres usem traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade. Seus enfeites consistam não em primorosos penteados, ouro, pérolas, vestidos de luxo, 10e sim em boas obras, como convém a mulheres que professam a piedade. 11A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. 12Não permito à mulher que ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. 13Pois o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. 14E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de transgressão. 15Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade” (1Tm 2,8-15).

Esta passagem também deve ser interpretada segundo os mesmos princípios. A oração do varão, símbolo de todo o gênero humano enquanto imagem de Deus, e vocacionado à vida de comunhão com as Pessoas Divinas e com seus semelhantes, deve ser pura como a relação das Pessoas Divinas, sem movimentos de poder, mas de amor de umas em relação às outras. A mulher, símbolo do gênero humano nas suas relações com Deus, e atraída pelo varão (cf. Gn 3,16), imagem de Deus, de quem o gênero humano tem sede, procura seduzir o varão, sensibilizando seu espírito, com a beleza de seu corpo, penteados, vestes sensuais e adereços. Isto leva a uma relação carnal com o varão. São Paulo aqui, uma vez mais tem a mulher como símbolo de toda a humanidade na sua relação com Deus e como Deus é Espírito, se vai a Ele com boas obras – a caridade, que é a mesma natureza de Deus – e a submissão a Ele, que é a condição de vida do gênero humano, criatura de Deus. A humanidade, representada pela mulher se salva se é mãe, ou seja se recebe a vida de Deus e transmite vida, se reconhece que recebe da graça de Deus e dá de graça (cf. Mt 10,8; Jo 10,10).
7. O relacionamento do varão e da mulher
Hoje em dia pensa-se o relacionamento do varão e da mulher no matrimônio como completamente recíproco. Ambos são considerados totalmente iguais nas necessidades de afeto e apoio e pensa-se que cada um pode e deve buscar no outro o apoio de que necessita. Sabemos também que os casais do tempo atual têm, em média, um relacionamento bastante frágil. A Palavra de Deus diferencia o varão e a mulher, mas a mentalidade moderna, em prejuízo de ambos, insiste em uma paridade completa, fazendo-se cega para as evidentes diferenças que têm o varão, quando assume sua masculinidade, e a mulher, quando assume sua feminilidade. Esses “quando” da frase anterior fazem-se necessários pois as próprias masculinidade e feminilidade já estão desfiguradas no mundo atual e confunde-se masculinidade com machismo e feminilidade com submissão feminina. Segundo a antropologia que pudemos expor, há uma diferença de papéis a ser levada em conta. Cremos que essa diferença, uma vez compreendida, poderá orientar os casais num relacionamento mais sólido e mais de acordo com a natureza humana.
Um casal e uma família são realidades espirituais, de relacionamento de almas, mais do que de corpos. Uma família não é um casal cuja união se apóia na atração física de um pelo outro e que sustenta economicamente os filhos. Esta situação não se mantém por muito tempo e avilta a pessoa humana. Uma família é uma realidade de comunhão espiritual e amor criando unidade de vida e gerando vida espiritual. Ora, se, como vimos, a mulher, e não o varão, é o membro do casal com um ascendente espiritual maior, pois representa a humanidade na sua relação espiritual com Deus, claro está que a mulher-mãe está no centro da estabilidade e do crescimento espiritual da família. Acontece que a mulher vive neste mundo de lutas e inseguranças, e é imagem da terra. Para desenvolver todo o seu potencial espiritual que a leve a dar essa estabilidade e crescimento espiritual á sua família, a mulher precisa ser fecundada. Fecundada fisicamente ela dá à luz os filhos, segundo a parte animal. Gera os corpos dos filhos. Fecundada espiritualmente, ela realiza-se plenamente, e dela brota a vida espiritual do amor familiar. E tanto a fecundação física como a fecundação espiritual da mulher são tarefa do varão, do marido. Ele realiza essa tarefa exercendo plenamente a sua masculinidade. Sendo voltado para a terra deve, mesmo nas dificuldades sociais, transmitir segurança e paz à sua mulher, nunca fazê-la sentir-se ameaçada por seu marido, elevar sua auto-estima, e, em última análise, fazer dela uma mulher bem-amada. Essa realização amorosa fecunda espiritualmente a mulher, dá-lhe segurança psicológica e um grande amor à vida, qualidades que se refletirão nos filhos em segurança e equilíbrio psicológico e espiritual, e no próprio marido, que colhe os frutos que semeou em sua mulher, como Deus colhe os frutos de suas graças nas almas fiéis. Assim, como no dizer do Papa Pio XII, em discurso apresentado a seguir, a mulher é o “sol” da família, o centro espiritual da família. Mas nada pode a mulher se não for fecundada pelo marido no seu espírito e no seu coração. De modo que o papel da mulher é, a princípio mais passivo, como o da terra, que precisa ser semeada, e o do marido é mais ativo. A atividade da mulher se dará em um segundo tempo, após os frutos da iniciativa masculina e dela brotará a felicidade do lar. Em outra imagem, a mulher é como a pólvora que faz explodir a espiritualidade familiar, mas o varão é a espoleta. O melhor presente que um pai pode dar a seus filhos é uma mãe bem-amada, mulher realizada afetiva e espiritualmente.
Uma senhora estava com problemas no seu ambiente profissional. Irritadiça, brigava com todos com muita facilidade, criava conflitos e isso estava perturbando todo aquele setor da firma. Isso foi levado ao conhecimento do pároco da comunidade freqüentada por ela. Este nada falou com a senhora. Buscou conversar com o marido dela, conhecer melhor o relacionamento que os dois mantinham. Aconselhou e orientou o marido a um relacionamento mais sábio com sua esposa. Esta, em pouco tempo, devido à transformação do tratamento recebido de seu marido, sentiu-se bem melhor, mais bem-amada. As irritações profissionais desapareceram e as brigas no ambiente de trabalho não mais se verificaram.
Daí é importantíssima a iniciativa do varão. Foi essa iniciativa que deu origem ao cavalheirismo, mas este caiu de moda há muito tempo. Por isso, o mundo atual exige da mulher que faça uma parte do que cabe ao varão e não lhe dá aquilo a que ela tem direito, sobrecarregando extremamente a mulher. A liberação feminina, na verdade, se transforma em uma escravidão feminina. Só parece libertadora por causa da mentalidade invejosa e de competição, fruto do pecado, que parece promover a mulher ao retirar dela o que o varão devia lhe dar e parecer dar-lhe a força do varão. Se cada um se aceitasse na sua natureza, como Deus fez cada um, perceberíamos que a “libertação” da mulher na verdade a escraviza e sobrecarrega. Esta é uma das causas principais de muita desorientação e fracasso no relacionamento familiar e afetivo dos casais.
A equiparação total do varão e da mulher, a reciprocidade especular que, pensa-se hoje, deva existir entre ambos está sobrecarregando a mulher e sendo uma causa de enorme sofrimento para o mundo inteiro. Varão e mulher são iguais em direitos perante a justiça humana, em dignidade humana, mas muito diferentes em sua espiritualidade e em sua psicologia.

Alocução do Papa Pio XII aos recém-casados em 11 de março de 1942
(segundo a Liturgia das Horas, Comum das Santas, Ofício de Leituras)

A MULHER É O SOL DA FAMÍLIA

A família tem o brilho de um sol que lhe é próprio: a mulher. Ouvi o que dela diz e sente a Sagrada Escritura: “A graça de uma mulher diligente encanta o marido. A mulher santa e honesta é graça inestimável. Como o sol que se levanta nas alturas de Deus, assim a beleza de uma mulher, ornamento da sua casa”.
Sim, a esposa e mãe é o sol da família. É sol pela generosidade e esquecimento de si, pela prontidão constante e pela delicadeza sempre atenta que a faz adivinhar tudo quanto possa tornar agradável a vida do marido e dos filhos. Derrama à sua volta luz e calor da alma. Costuma dizer-se que será feliz um casamento se, ao ser realizado, cada um dos dois está disposto a não procurar a sua própria felicidade mas sim a do outro; todavia, embora este nobre sentimento e propósito seja dever de ambos, constitui principalmente uma virtude da mulher, pelo seu natural afeto materno e pela sua peculiar sabedoria e prudência de coração. Se lhe dão desgostos, oferece contentamento e confiança; se recebe humilhações, inspira dignidade e respeito; tal como o sol que ao raiar alegra a manhã nevoenta, e ao pôr-se tinge as nuvens com seus raios dourados.
A mulher é o sol da família pela limpidez do seu olhar e o calor da sua palavra. Com o seu olhar e a sua palavra penetra suavemente nas almas, vence-as, comove-as, anima-as, conseguindo afasta-la do tumulto das paixões; restitui ao marido a boa disposição e a alegria do convívio familiar, a seguir a longas jornadas de trabalho aturado e muitas vezes esgotante, na oficina ou no campo, ou ainda nas absorventes atividades do comércio e da indústria.
A mulher é o sol da família com a sua sinceridade natural e cândida, a sua simplicidade digna, o seu porte cristão distinto; é o sol da família, com o seu hábito reflexivo e a retidão de espírito, e ainda com a requintada harmonia com que se apresenta, veste e adorna, mostrando-se ao mesmo tempo reservada e afetuosa. Sentimentos delicados, graciosas expressões do rosto, silêncios e sorrisos inocentes, e um condescendente sinal de cabeça, tudo isso lhe dá a graça de uma flor rara mas simples, que, ao desabrochar, se abre para receber e refletir as cores do sol.
Oh! Se compreendêsseis como são profundos os sentimentos de amor e gratidão que desperta e grava no coração do pai e dos filhos uma figura assim de esposa e de mãe!

Contra o sincretismo

Recado a Padres, Bispos e todos os que amam a salvação das almas



Quando os verdadeiros pastores tomam atitudes de falsos pastores, os falsos pastores são legitimados.



Os verdadeiros pastores são os padres da Igreja Católica, herdeiros da verdadeira doutrina, do depósito da fé apostólica verdadeira. Quando abandonam esse depósito para admitir o sincretismo religioso e atirar pérolas aos porcos, tomam vestes de falsos pastores e alimentam a pregação dos falsos pastores das seitas pentecostais. Celebrando a Santa Eucaristia em contexto de cultos pagãos de umbanda e candomblé, como acontece em tradições como as do Senhor do Bonfim, na Bahia, e de São Jorge, os padres legitimam o mais forte argumento dos protestantes com os quais aliciam as pessoas para reconhecerem neles o verdadeiro rebanho de Cristo: “os católicos são adoradores de imagens; só na igreja protestante – que chamam “evangélica” – é que se aceita Jesus Cristo como Salvador”.

É preciso acabar com este escândalo. As devoções a São Jorge e a outros santos associados com divindades de cultos afro-brasileiros denigrem a pureza da fé da Igreja Católica e fazem dela sair milhares de pessoas, confundindo as consciências e dificultando àqueles que não tem já uma boa formação cristã o reconhecimento da verdadeira Igreja de Cristo na Igreja Católica Romana. Este é o principal alimento do protestantismo brasileiro.

Abandonemos a devoção de São Jorge. As paróquias dedicadas a esse mártir pesquisem uma nova imagem dele, que em nada lembre a figura apocalíptica mitologizada do “santo guerreiro” de cavalo branco e dragão. Os santos de Jesus Cristo são homens e mulheres reais e não figuras mitológicas como os orixás da umbanda. Mostremos o testemunho dos heróis de Cristo, a partir de santo Estêvão, por exemplo. Que devoção popular tem o primeiro mártir de Cristo, cujo testemunho está registrado na Bíblia, que contém a Palavra do próprio Deus? Nenhuma. Quantos santos, de cujo testemunho cristão temos tão poucas informações, são sumamente cultuados? Santa Bárbara, São Jorge, Santa Filomena, etc. Acolher esses cultos e promovê-los não é ajudar a manter as pessoas na Igreja. Os que se alimentam dessas devoções quase nunca se abrem para um cristianismo verdadeiramente maduro, de vida interior, de vida sacramental consciente, de busca de santidade e perfeição, apoiado na palavra do Evangelho. E os outros, vendo isso, dão razão aos protestantes, falsos pastores, e se convencem de que os católicos são adoradores de imagens e acabam por crer de todo o coração que o verdadeiro seguimento de Cristo está nas igrejas protestantes.

Preguemos a verdade e não o que achamos que as pessoas querem ouvir ou que vai atrair muita gente ou o que “já é tradição”. Não temos outro compromisso a não ser o testemunho da Ressurreição de Jesus. A doutrina cristã, a que está no Novo Testamento e no Catecismo é que importa. É a única que liberta o ser humano da escravidão da carne, do pecado e do demônio. A religiosidade popular que devemos promover não é o sincretismo, a ignorância, a superstição. É o Rosário, a Via-Sacra, as práticas de amor a Jesus Cristo, ao seu sagrado Coração, à santa Cruz, as procissões do Corpo do Senhor, baseadas numa piedade católica autêntica.

A tolerância com o sincretismo é entregar o rebanho ao lobo voraz e a omissão em combater o sincretismo é pecado mortal também.



Padre Afonso Henriques Salgado Chrispim

Respeitar a fama e a honra

Respeitar a fama e a honra do próximo

São Tomás trata deste assunto dentro do seu tratado sobre a virtude cardeal da justiça, na sua Suma Teológica. Nesse tratado da justiça, Santo Tomás propõe quatro gêneros de bens que a virtude da justiça manda respeitar no próximo:
Respeitar sua vida – aqui se trata do homicídio e de tudo o que se refere ao quinto mandamento do decálogo.
Respeitar seu corpo – aqui se trata da luxúria e de tudo que se refere ao sexto e ao nono mandamentos.
Respeitar suas propriedades – aqui se trata do direito, dos domínios, dos contratos, e restituições, correspondendo a tudo o que se refere ao sétimo e ao décimo mandamentos.
Respeitar sua fama e sua honra – Trata-se aqui da veracidade de tudo o que se comunica e de tudo o que se refere ao oitavo mandamento.

A veracidade

A verdade é a realidade das coisas. Do ponto de vista filosófico, porém, pode-se distinguir três classes da verdade:
A Verdade ontológica ou metafísica – consiste na conformidade das coisas com o pensar divino, que as criou. As coisas são em si mesmas tal como o entendimento divino as conhece desde toda eternidade.
A Verdade lógica ou formal – consiste na conformidade do entendimento humano com a coisa conhecida. Quando o entendimento humano conhece as coisas tal como são na sua realidade ontológica possui a verdade; se não incorre em erro.
A Verdade moral – consiste na conformidade da palavra com a idéia de quem fala, ou seja, a expressão sincera do que a pessoa sente em seu interior.

A filosofia idealista, da qual é máximo representante Emanuel Kant, nega que o entendimento humano possa ter certeza da conformidade de seu conhecimento das coisas com o entendimento divino. Não nega que haja uma verdade ontológica acerca das coisas, mas nega a possibilidade da verdade lógica. A verdade cognoscível pelo homem não é “da coisa”, mas do homem; ele pode saber o que a coisa é “para a pessoa”, não o que a coisa é “em si”.
A filosofia grega, platônica ou aristotélica, e a filosofia cristã, especialmente a escolástica, tomista, baseia-se nesse conhecimento lógico: as coisas podem ser conhecidas “em si mesmas”.
Quanto à virtude da veracidade apenas, interessa principalmente a verdade moral. Mas à Teologia Moral em geral não devemos dizer como às vezes, precipitadamente se diz, que sempre só interessa a verdade lógica, deixando a verdade lógica para a Teologia dogmática ou a Teoria do Conhecimento. Sendo a Teologia Moral a reflexão sobre o agir do cristão, um agir que define o seu ser, um agir que o leva à comunhão divina, que é o seu fim último, devemos perceber que uma das primeiras virtudes que aproximam todo ser humano de Deus é a busca da verdade lógica sobre Deus, a vida humana e o universo. Jo 18,37: Todo o que é da verdade escuta a minha voz. Todos devemos ser discípulos da verdade.

Dízimo e NT

O Dízimo não é mais 10%
Uma Doutrina do Dízimo

P. Afonso Henriques Salgado Chrispim

Queremos mostrar que a doutrina sobre o dízimo que vigora em muitas igrejas é veterotestamentária e que uma verdadeira compreensão neotestamentária da contribuição financeira para as igrejas é necessária para se entender mais a fundo a vocação cristã.
Hoje o dinheiro fala muito alto. Não é novidade para ninguém que vivemos numa época muito materialista. O interesse material tudo domina. E na área religiosa nunca se falou tanto em dízimo. É verdade que a Igreja, ou as igrejas, em outras épocas tinham outras fontes de recursos, e hoje cada vez mais dependem dos recursos dos fiéis. Cremos, porém que hoje se fala muito em dízimo não só por causa da nova conjuntura das igrejas, mas também pelo materialismo que envolve a todos. O que mais faz pensar em tal hipótese é a ênfase posta no valor da contribuição, com uma flagrante e suspeita volta ao regime da Lei do Antigo Testamento. Prega-se por toda parte, nas seitas e em muitas igrejas, inclusive católicas, que a Bíblia recomenda o pagamento de 10% de tudo o que se recebe. Diz-se que isso é uma entrega a Deus de uma parte do que Ele, na Sua generosidade nos concede. E, por isso, deve-se pagar, nas igrejas, o dízimo. Quando não é ganância, é, em muitos casos, uma visão funcional e empresarial de igreja, que supõe que os meios da missão da Igreja dependem mais do homem do que de Deus, que mais vale um bom marketing, que muitas horas de oração ou sacrifício escondido. É claro que há uma bem intencionada Pastoral do Dízimo que quer ensinar aos católicos a sua responsabilidade material o sustento do culto, das comunidades e das missões, mas, por falta de esclarecimento também estes muitas vezes caem na doutrina errada do dízimo imposto de 10%.
Porque uma percentagem fixa, para todos, como 10%? Ainda mais em uma sociedade de profundas desigualdades na distribuição da renda, como a nossa? Até o Imposto de Renda, que não vem diretamente do Deus de justiça sabe que uma percentagem fixa para todos pune os mais pobres com um peso maior de sacrifício. A quota do Imposto de Renda, no nosso como em outros países, aumenta sua percentagem à medida que cresce a renda do contribuinte. Cem reais pesam menos a quem recebe mil do que dez a quem recebe cem.
As Sagradas Escrituras
O quinto mandamento da Igreja, que lemos no tradicional catecismo, nos diz que devemos “pagar o dízimo segundo o costume”, com uma abertura e compreensão “inculturada” difícil de se encontrar em muitas determinações eclesiásticas hoje. “Segundo o costume” significa a pluralidade de situações das igrejas e dos fiéis, deixando para a liberdade das comunidades e dos fiéis o estabelecimento do regime mais justo e eqüitativo de colaboração dos fiéis para a manutenção da comunidade e dos serviços religiosos.
Apela-se para as Sagradas Escrituras para justificar que são elas que autorizam o dízimo em 10%. Examinemos portanto as Escrituras, porque nelas encontraremos sempre a vida.
A doutrina sobre os dízimos nas Escrituras confunde-se com a doutrina sobre as primícias. No início da história de Israel, nos relatos mais antigos como no Êxodo fala-se sempre de primícias a ofertar-se a Iahweh (cf. Ex 22, 28; 23, 19; 34, 22.26; Lv 23, 10s.17; Dt 26, 10). Dar a Deus a melhor parte do que se tem, os primeiros frutos da terra e os primeiros produtos do rebanho, exprimia a primazia de Deus, era um gesto de adoração. A consagração a Deus das primícias dos frutos santificava, ao mesmo tempo toda a colheita, porque a parte vale pelo todo (cf. Rm 11, 16). A mais antiga legislação de Israel (cf. Ex 20-23) não mencionava o costume do dízimo. O dízimo parece inicialmente confundir-se com as primícias (cf. Dt 12, 6.11.17; 14, 22). Observa-se porém seu uso já em um tempo bastante remoto, na época de Amós.
O dízimo já era manipulação religiosa na época de Amós
É a partir do culto no santuário de Betel que se entende a passagem de Gn 28, 19-22 em que Jacó promete o dízimo na “casa de Deus” no lugar a que “deu o nome de Betel”. Interessante que essa referência ao dízimo já na boca de Jacó - não havia templo, nem sacerdócio, nem culto regulamentado! A quem Jacó pagaria o dízimo? - se dá exatamente como uma indicação para o pagamento ao futuro santuário de Betel! É nesse santuário que o profeta Amós vai condenar o culto sem conversão de vida. “Entrai em Betel e pecai! Em Guilgal e multiplicai os pecados! Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios, e ao terceiro dia os vossos dízimos! Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor, proclamai vossas oferendas voluntárias, anunciai-as, porque é assim que gostais, filhos de Israel. Oráculo do senhor Iahweh” (Am 4, 4-5). A insistência do profeta em afirmar “vossos” sacrifícios, “vossos” dízimos, “vossas” oferendas, “é assim que gostais” é destinada a frisar que os peregrinos do santuário realizam os seus próprios desejos e não a vontade de Iahweh. E continua Amós: “Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto das vossas reuniões. Porque se me ofereceis holocaustos..., não me agradam as vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afasta de mim o ruído de teus cantos, eu não posso ouvir o som de tuas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso!” (Am 5, 21-24). Em outra passagem Amós vai contra o culto em algum templo que esteja em contraste com a prática da justiça: “Porque assim falou Iahweh à casa de Israel: Procurai-me e vivereis! Mas não procureis Betel, não entreis em Guilgal e não passeis por Bersabéia; pois Guilgal será deportada e Betel se tornará uma iniquidade! Procurai a Iahweh e vivereis! ... Ai daqueles que transformam o direito em veneno e lançam por terra a justiça. ... Eles odeiam aquele que repreende à porta e detestam aquele que fala com sinceridade. Por isso: porque oprimis o fraco e tomais dele um imposto de trigo, construístes casas de cantaria, mas não as habitareis; plantastes vinhas esplêndidas, mas não bebereis o seu vinho. Pois eu conheço vossos inúmeros delitos e vossos enormes pecados!” (Am 5, 4-6a.10-12a). Vemos assim, que já no tempo de Amós, o interesse no dízimo era associado com injustiça e exploração. Por outro lado, em certos textos mais tardios como Ez 44, 30 e Nm 18, 12 vemos que o aspecto sacrifical da oferenda das primícias se atenua sempre mais. A oferta a Iahweh, que deveria ser toda queimada, vai-se tornando sempre mais um imposto sagrado em benefício do clero (cf. Eclo 45, 20; Ne 10, 36). A referência ao dízimo trienal em favor dos mais pobres , que aparece em Dt 14, 28s, é sempre mais deixada de lado. Por fim o espírito das primícias irá se desvanecendo totalmente e restará apenas o dízimo como contribuição de um décimo dos frutos da terra e do rebanho, em favor sempre mais dos sacerdotes e sem sentido sacrifical. No tempo de Jesus os fariseus estendiam a obrigação dos dízimos até aos mais insignificantes produtos (cf. Mt 23, 23; Lc 11, 42; 18, 12).
Abusa-se de uma passagem de Malaquias, e vai-se contra o Evangelho
Devido ao uso abusivo que fazem do livro de Malaquias na pregação do dízimo nas igrejas atuais, este livro merecerá de nós uma atenção especial.
Usa-se sempre para pregar o dízimo nas igrejas o versículo Ml 3, 10: “Trazei o dízimo integral para o Tesouro, a fim de que haja alimentos em minha casa. Provai-me com isto, disse Iahweh dos Exércitos, para ver se eu não abrirei as janelas do céu e não derramarei sobre vós bênção em abundância”. A insistência nesse versículo, deslocado de seu contexto e da mensagem global da Bíblia é suspeita. O paralelo com a segunda tentação de Cristo no deserto ocorre logo. Também satanás cita um versículo bíblico convidando o Cristo a “provar” a proteção do Pai: «Então o diabo o levou à Cidade Santa e o colocou sobre o pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, porque está escrito: Ele dará ordem a seus anjos a teu respeito, e eles te tomarão nas mãos, para que não tropeces em nenhunma pedra.” Respondeu-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás ao Senhor teu Deus.” (Mt 4, 5-7). Uma expressão forte de Malaquias em um contexto em que o culto em geral estava sendo descuidado, prometendo bênçãos de Deus para um povo que se convertesse - um dos sinais da conversão seria o restabelecimento do culto pela contribuição dos dízimos -, é transformada por atuais pregadores de dízimo em uma promessa de recompensa individual para quem der uma determinada contribuição em suas igrejas. Ou seja, Deus passa a ser movido a dinheiro e o mandamento com que Jesus solenemente rebateu a tentação demoníaca é desprezado. Convida-se tranqüilamente o povo a tentar a Deus com a oferta do dízimo, para ver se Deus não vai cobrir de bênçãos o dizimista. Onde está o caráter de graça e misericórdia das bênçãos de Deus?
O livro de Malaquias faz uma dura crítica aos sacerdotes porque ofereciam os piores animais no altar do Senhor. Ou seja, o profeta os acusa de um culto insincero, fonte de muitas desgraças. A seguir o profeta anuncia a vinda do Anjo da Aliança que purificará os filhos de Levi, a classe sacerdotal, para que estes ofereçam uma oferenda conforme a justiça. “A oferenda de Judá e Jerusalém será então agradável a Iahweh” (Ml 3, 4; cf. 3, 1-3). Nós, cristãos, reconhecemos nesse Anjo da Aliança, a Nosso Senhor Jesus Cristo, que “entrará em seu Templo” (cf. Ml 3, 1). Que templo é esse, vemos na carta aos Hebreus. Se diz aí que temos “um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus” (Hb 4, 14; cf. 9, 24). É um sumo-sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (cf. Hb 6, 19). Aqui o autor da carta aos Hebreus reconhece o caráter profético do Salmo 2º e faz uma alusão ao sacrifício eucarístico, pois esse Melquisedec é um misterioso sacerdote que oferecia, nos tempos de Abraão, ao Deus Altíssimo, pão e vinho (cf. Gn 14, 20). A seguir, o autor da Carta aos Hebreus, tratando da superioridade do sacerdócio de Cristo em relação ao sacerdócio dos levitas do Antigo Testamento, que recebiam o dízimo do povo, diz que Melquisedec recebeu dízimos de Abraão. Em Abraão estavam os próprios levitas, seus descendentes, pagando dízimo a Melquisesdec. Ou seja, aqueles que no Antigo Testamento recebiam os dízimos, no Novo Testamento os pagariam!
Mas há um novo sacerdócio, o de Cristo, segundo a ordem de Melquisedec. “Mudado o sacerdócio, necessariamente se muda também a Lei” (Hb 7,12). E, podemos dizer, o sacrifício! (cf. Hb 10, 11s). Assim não devemos mais pagar o imposto de um sacerdócio que já se extinguiu! Nada mais tem a ver com a nova Aliança um imposto para um templo que já acabou! O santuário de Cristo é o Céu! A oferta de Cristo não é aquela dos sacerdotes e levitas judeus, mas o sacrifício de Si mesmo! A passagem de Mt 17, 24-27 é muito interessante a esse respeito. Jesus pergunta: “Que te parece, Simão? De quem recebem os reis da terra tributos ou impostos? Dos seus filhos ou dos estranhos?”. Simão Pedro responde o óbvio: “Dos estranhos”. Então os filhos de Deus, Jesus em primeiro lugar, depois os seus irmãos, que pela comunhão com Ele foram feitos filhos de Deus, estão isentos. Os filhos não pagam dízimos nem qualquer imposto a seu Pai! Que maravilhosa aproximação com Deus nos dá o Novo Testamento, a nova Aliança que Jesus estabeleceu, e que muitos dizem professar, mas se comportando como estranhos, até com impostos de 10%!
O “dízimo” verdadeiro não é 10%, mas 100%!
Então a passagem de Malaquias (cf. Ml 3, 10) não pode ser interpretada no mesmo sentido que tinha originalmente. Não há mais o Tesouro do templo, “que a traça e a ferrugem consomem”, mas o Tesouro está nos céus (cf. Mt 6, 19s), onde Cristo reina.
À mulher samaritana, Jesus já havia respondido: “Crê, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora ¬- e é agora - em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4, 21. 23s). Então se o dízimo e as primícias ofertadas no templo no Antigo Testamento eram parte do culto a Deus, e não é mais no templo e sim em espírito e verdade que se deve adorar, onde iremos oferecer a nossa oferta? Ofereceremos em espírito e verdade, em qualquer lugar. O culto cristão a Deus, nosso Pai, não se interrompe. Não é só no templo, na igreja, mas em todo lugar. A liturgia celebrada na igreja não tem sentido senão como sacramento de uma liturgia que se desenrola a todo minuto na vida do cristão. Cristo não ofereceu ao Pai uma oferenda-coisa, mas ofereceu-se s Si mesmo, sua vida. Então em toda a sua vida o cristão deve oferecer-se ao Pai. E os seus bens, e o seu dinheiro, e o fruto do seu trabalho? Para o cristão, tudo é graça, e tudo que é seu é já do Pai (cf. Lc 15, 31). Ele é irmão de Jesus por cumprir a vontade do Pai (cf. Mt 12, 50). Então, na medida em que tudo é usado de acordo com a vontade do Pai, realiza-se a comunhão filial do cristão com seu Pai Celestial. Pode-se dizer que todos os bens, todos os reais de um cristão, são oferecidos a Deus se são empregados de acordo com a vontade de Deus. Assim se José é um trabalhador cristão e tem saúde para trabalhar e ganhar honestamente o seu dinheiro, isto é dádiva de Deus. Deus quer que José seja um bom pai para seus filhos. Quando José compra leite para alimentar suas crianças está realizando a vocação de pai de família que Deus lhe deu, dando destinação justa para o fruto do seu trabalho na graça de Deus. Está prestando um culto a Deus. Se paga justamente os impostos civís está obedecendo ao que disse “Daí a César o que é de César” (cf. Mt 22, 21), está sendo um bom cidadão, e nessa obediência está dando a Deus o que é de Deus. Cem por cento, todo o dinheiro de cada José, de cada cristão, deve ser utilizado de forma a agradar a Deus. O que o cristão dá a Deus é tudo! O cristão não mede nada para Deus. É tudo ou nada! A exemplo do seu Senhor, ele se oferece todo em cada coisa que faz: “Oferecei os vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1).
O sacerdote levita era o receptor das primícias e dízimos do Antigo Testamento. O sacerdote católico não tem mandato para receber nada em nome de Deus, a não ser o próprio sacrifício do povo, do qual é servo, para oferecê-lo a Deus, na Eucaristia (cf. Rito de Ordenação Presbiteral). Muito menos o pastor protestante tem mandato para tal. No Novo Testamento só o pequenino, “o menor dos irmãos” de Jesus tem autorização para receber algo que se oferta a Deus: “O que fizestes ao menor de meus irmãos, a Mim o fizestes” (cf. Mt 25, 40.45). Assim o filho do trabalhador José é um desses pequeninos, o pobre, o presidiário, o doente e cada pessoa quando tem direito a receber na justiça e na caridade qualquer bem, e é da vontade de Deus que seja socorrida, é esse pequenino.
Dar a Deus é dar à igreja?
A grande falácia da pregação dos dízimos no nosso tempo é a confusão entre “dar dinheiro a Deus” e “dar dinheiro à igreja”. Como vimos o culto cristão não se enclausura, como o hebraico, no templo. Dá-se a Deus em todo lugar, a todo momento. Mas continua-se a fazer pensar que se dá a Deus só aquilo que se dá numa igreja ou comunidade. Prega-se que “se devolva a Deus uma parte do que generosamente nos deu”. Já vimos que Ele não quer uma parte, mas tudo, quer nós mesmos. Dentre todas as obrigações que um cristão tem para usar com justiça os seus bens, além de sua família, sua pátria, os pobres, etc. ele tem também a Igreja de Cristo. Os cristãos, no início, tinham liberdade de dar o que queriam à comunidade (cf. At 5, 4), podiam pôr tudo em comum (cf. At 2, 44; 4, 34) ou não. Nada era imposto, mas tudo era livre, segundo o Espírito, sem taxas nem percentagens. Paulo faz uma coleta de caridade, entre os coríntios, pelos pobres de Jerusalém e em nenhum momento cita obrigações de dízimo (2Cor 8-9). Ele mesmo não quer pesar economicamente para nenhuma comunidade (cf. 1Cor 9, 15-18; 2Cor 8, 1-2; 11, 7-9; At 18, 3; Fl 4, 15).
Quando Jesus diz que o trabalhador merece o seu salário, referindo-se ao anunciador do Evangelho, não está falando de um salário no sentido moderno do termo, mas que deve partilhar da vida e do alimento daqueles a quem anuncia o Evangelho, comer com aquele a quem anuncia, e não receber um pagamento como um mercenário qualquer. Ele mesmo, Nosso Senhor Jesus Cristo, é o modelo.
Conclusão
A Igreja tem necessidades econômicas e o cristão consciente colocará, entre suas responsabilidades, essa de contribuir com bens para a missão da Igreja. Mas nada pode ser imposto a ele. Foi Deus quem lhe confiou os talentos, entre esses a sua condição econômica, e é só a Ele que deverá prestar contas de sua administração (cf. Lc 16, 2; Mt 25, 14-30). À Igreja, como Mãe e Mestra, cabe, como sempre, ensinar e orientar, mas a decisão final vem do coração da pessoa, libertada por Cristo para viver não mais sob a Lei, mas sob o Espírito (cf. Rm 7, 6). Esse é o sentido do quinto mandamento da Igreja, onde a palavra dízimo está apenas pelo costume e não no seu sentido técnico, bíblico, que, como vimos, está ultrapassado.
É lamentável que tantos hoje retornem à tutela da Lei de Moisés, e mesmo assim vivam dizendo que “Jesus Cristo é o Senhor” (cf. Mt 7, 21-23). Ai dos que conscientemente exploram essa ignorância, colocando o seu tesouro (cf. Mt 6, 19-21) no amor ao dinheiro, fonte de todos os males (cf. 1Tm 6, 10). Bem-aventurados os que amam a Igreja e livremente se dão à sua missão com seu corpo e com seus bens, construindo um tesouro nos céus!

Santos desfigurados

A DESFIGURAÇÃO DE ALGUNS SANTOS CATÓLICOS

Dia 23 de abril é feriado, porque é dia de São Jorge. Feriado conseguido não pelos católicos, mas pelos umbandistas, que associam São Jorge a Ogum, um de seus orixás. As festividades de São Jorge são sempre marcadas por um forte sincrestismo religioso, uma mistura de concepções religiosas que seria reprovada por qualquer dos Apóstolos de Jesus Cristo. “6Estou admirado de que tão depressa passeis daquele que vos chamou à graça de Cristo para um evangelho diferente. 7De fato, não há dois evangelhos: há apenas pessoas que semeiam a confusão entre vós e querem perturbar o Evangelho de Cristo. 8Mas, ainda que alguém - nós ou um anjo baixado do céu - vos anunciasse um evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema. 9Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado! 10É, porventura, o favor dos homens que eu procuro, ou o de Deus? Por acaso tenho interesse em agradar aos homens? Se quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo” (Carta de São Paulo aos Gálatas 1,6-10).
A imagem tradicional de São Jorge é mítica. Apresenta-o em um cavalo branco combatendo com sua lança um dragão. Esta imagem se baseia em Apocalipse 6,2 e 19,11, mas está deformada pois em Ap 6,2 ele não traz uma lança, mas um arco. E dragão é um animal mitológico, que não existe. O verdadeiro São Jorge foi um mártir cristão da Síria e nunca combateu dragão (que não existe) nenhum. Os santos da Igreja são pessoas de carne e osso como nós, que carregaram a cruz de Cristo em suas vidas e não são mitos nem super-homens. Os orixás da Umbanda, que nunca existiram a não ser na imaginação das pessoas, como o Pato Donald e o Mickey, são mitos e alimentam a imaginação e o medo dos ignorantes.
Alguns católicos gostam de São Jorge como um “santo guerreiro”. Sabemos que o verdadeiro São Jorge não foi um guerreiro e isso só é sugerido pela falsa imagem pela qual ele é divulgado. O que é um “santo guerreiro”? As pessoas vivem a vida como uma guerra para conseguir objetivos de ambição: dinheiro, posições, cargos prestigiosos, poder etc. E se associam a “santos guerreiros” para conseguir ganhar a guerra da sua ambição. Jesus Cristo ensinou algo muito diferente: “quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem sacrificar a sua vida por amor de mim, salvá-la-á” (Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33). Então os “santos guerreiros” estão a serviço da ambição e do materialismo das pessoas, em franco contraste com o ensinamento de Jesus Cristo. Isto é uma completa desfiguração do culto dos santos, que devem nos conduzir a Jesus e não nos afastar d’Ele.
Os santos cuja devoção está assim deturpada não deveriam mais ser cultuados nas Igrejas católicas ou então suas imagens e o discurso sobre eles deveria ser radicalmente mudado. É preciso ter coragem e querer agradar só a Deus (cf. Gl 1,10 acima) e não aos homens para fazer isso.
Padre Afonso Chrispim

Imanentismo Atual

1. O IMANENTISMO ATUAL, A IGREJA ‘QUE SERVE’ E O CÍRCULO FECHADO DAS NECESSIDADES DOS MORTAIS
A Teologia Moral estuda a ação humana segundo a Revelação do Criador em Jesus de Nazaré. Qual é a especificidade do agir cristão? Esta é uma questão fundamental que a Teologia Moral deve responder. Podemos, para chegar a essa resposta, tentar responder a uma outra questão: qual é a especificidade do agir humano livre e racional? Veremos logo que a especificidade do agir humano livre e racional – o agir que interessa à filosofia moral – é agir em vista de um fim articulado racionalmente com a ação por meio de uma idéia.
Se perguntarmos sobre a ação humana em um terreno específico de atividade que é a atividade religiosa, podemos perguntar: por que as pessoas vão à Igreja? Para obter consolações, paz, alívio para o ‘stress’, curas, sucesso, bênçãos etc. Podemos ver que todas essas metas correspondem a necessidades sentidas de uma ou outra forma. O fim que se busca, até no campo religioso é a resposta a necessidades sentidas, a satisfação das necessidades, e o ser humano vai sempre agindo pressionado por uma carência que parece não ter fim. Não só agindo, mas pensando e vivendo num universo que tende para o utilitarismo, para o pragmatismo. Neste caso, as coisas só têm sentido se ‘servem’ à satisfação de uma necessidade percebida. Todo o resto tende a ser desprezado e ignorado, totalmente desvalorizado. Deve-se observar ainda, que as necessidades são percebidas, em boa parte, no nível do relacionamento humano, na comparação entre as pessoas e o que elas têm. Se alguém tem algo mais prático do que o que eu tenho, o que o outro tem passa a ser uma necessidade para mim, mesmo que eu me tenha servido do meu meio até aqui com muito bom proveito.
As necessidades percebidas como reclamando solução imediata são necessidades ligadas à garantia da estabilidade do desfrute da vida humana: conservação do corpo, segurança financeira, aceitação social da pessoa etc. podemos lembrar o prólogo do Evangelho segundo São João:
“4Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens. 5A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. 9[O Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. 10Estava no mundo e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o reconheceu. 11Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam” (Jo 1,4-5.9-11).
Vemos aqui um desencontro de dois que caminham, um na direção do outro. O homem, nas suas trevas, busca a luz, ameaçado, busca satisfazer as necessidades que sente em vista de garantir a sua vida (v. 4). A Luz, que criou o mundo, e é, também, a Vida, vem ao encontro do homem, mas este, que busca a vida, não A acolhe. Por que não A acolhe?
Para responder a essa pergunta precisamos perceber que a criatura humana tem sede de vida (por isso quer satisfazer suas necessidades) mas coloca a sua busca de vida no nível inferior desta vida mortal. Todos os sonhos humanos são o de tornar esta vida mortal melhor, mas não ousando sair do círculo fechado da mortalidade.
O Verbo, que se fez carne, nosso Senhor Jesus Cristo, trouxe a Vida, Vida real, que não se situa nos limites da mortalidade, mas a supera, e nisso revela a natureza de Deus, que é o Vivente. Deus é Amor que Se doa, relação de Pessoas que vivem para as outras e não para Si mesmas. A vida de Deus na carne humana faz da mortalidade o sinal do amor que se doa e, por isso, sacrifica a sensação de desfrute da vida mortal (que é sempre passageira) em vista de divinizar a vida humana e alcançar a VIDA, no nível superior que é a imortalidade. Não querendo o homem sacrificar a sua sensação de desfrute da vida mortal, a oferta que Deus faz não é aceita pelo homem, pela humanidade como um bloco, mas pode ser aceita por cada pessoa humana em sua liberdade.
“Mas aos que O receberam deu-lhes a capacidade de se tornarem Filhos de Deus” (Jo 1,12). Tal aceitação exige a renúncia ao desfrute da vida mortal como meta de felicidade. Tal renúncia é, ao mesmo tempo, a libertação do homem da necessidade, da obrigatoriedade de satisfazer às necessidades sentidas.
No nível das necessidades, os anseios do homem tendem a levá-lo a fechar-se em si mesmo, a guardar para si, o que leva à não-comunicação com o outro. O homem sente necessidade de comunicar-se, pois isso faz parte de sua natureza, mas essa comunicação lhe custa, é difícil, ameaça o seu desejo de desfrutar a vida mortal e a sua sensação de estabilidade. O acolhimento do Verbo que Se fez carne faz prevalecer a comunicação e sacrifica a estabilidade e o desejo de desfrute.
A humanidade, porém, em suas trevas, não só rejeita o Verbo, não só não recebe o Verbo, mas tenta fazer o Seu Nome servir aos objetivos humanos de mais vida no nível da mortalidade. Os ídolos dos pagãos e as falsas imagens do Deus dos cristãos sempre estão a serviço desses objetivos ao nível da mortalidade. Por isso os judeus querem um messias que seja um vitorioso político e militar e pedem milagres sempre dentro do nível da mortalidade. Até as ‘ressurreições’ de Lázaro, da filha de Jairo e do filho da viúva de Naim, são no nível da mortalidade, pois são reanimações para esta vida mortal. Os gregos querem sabedoria eficaz ao nível da vida terrena mortal. A ciência moderna também é a panacéia, sempre encontrando soluções dentro do nível da vida mortal, da satisfação das necessidades terrenas dos homens. Todos, judeus, gregos e modernos, querem um messias que sirva aos objetivos deles mesmos. Um messias ‘útil’ ao nível da sabedoria mortal. Jesus, porém, não aceita pressões, se ausenta quando querem fazê-Lo rei (cf. Jo 6, 15) e não se deixa manipular. “Nós pregamos Cristo Crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os pagãos, mas que é sabedoria de Deus” (cf. 1Cor 1,17-25).
A clareza desses conceitos nem sempre está presente na consciência dos cristãos, membros de Jesus Cristo, Jesus Cristo presente realmente no hoje da história. Um dos sinais ou meios pelos quais nos é possível viver a auto-doação divina é justamente a caridade e a compaixão para com o próximo em suas necessidades. “Quem tem duas túnicas dê uma a quem não tem e quem tiver comida faça o mesmo” (cf. Lc 3,11). É um dos sinais mais concretos e compreensíveis pelos homens em suas trevas, fechados em suas carências e necessidades. Para o cristão esclarecido, a doação de sua vida – ao doar coisas deve estar doando a si mesmo (cf. Lc 21,2-4) – no nível das necessidades da vida mortal é um sacramento da vida divina onde será como Deus, uma kenose permanente de Amor.
O mundo moderno, marcado por grandes conquistas no nível das respostas às necessidades humanas (tecnologia moderna em todos os âmbitos de atividade), através da ciência e da tecnologia, passa a prezar cada vez mais a eficiência e a utilidade prática, sempre dentro do nível da necessidade. Tudo deve servir no nível da satisfação das necessidades humanas. Os cristãos querem, por sua vez, anunciar e testemunhar o Amor de Deus, e o canal é a sua caridade, o seu sacrifício de suas próprias necessidades, o que lhes permite suprir a muitas necessidades dos pobres e dos deserdados. O terreno fica, assim, preparado. O mundo vai cobrar que a Igreja seja ‘útil’. Vem, por exemplo, o marxismo, proclamando que a religião, ao apontar para uma vida eterna, que se alcança com o recalque das satisfações desta vida, está servindo à injustiça, à dominação e à exploração dos pobres. Muitos cristãos, perdendo a consciência da transcendência do Reino de Deus e da motivação cristã deixar-se-ão cooptar por esta crítica e com certo complexo de inferioridade – como que colocando a carapuça que o marxista lhe apresenta – passarão a militar no nível político e social sem perspectiva transcendente, nível das necessidades e da luta contra a morte corporal, inevitável, proclamarão que estão “construindo o Reino de Deus”, a verdadeira proclamação do Reino de Deus será sempre mais relativizada e incompreendida e o serviço da caridade ao próximo mudará de sentido.
a) Na lógica evangélica é muito menos importante o que recebe o auxílio para uma necessidade do que aquele que dá. O que recebe o auxílio recebe sempre um dom finito, no nível da vida mortal. O que dá torna-se membro divino, pelo qual o Criador age e, por isso, ‘participa’ do Criador, está em comunhão com Ele. O centro é Jesus, que dá, cura etc. e não os doentes e sofredores que imploram. Da mesma forma, no agir cristão, o centro é o agente, não o receptor. Não se busca, em primeiro lugar satisfazer necessidades, mas divinizar pessoas humanas. Se as necessidades são atendidas por um esquema racional de produção e distribuição de bens, mas não há auto-doação, não há um agir especificamente cristão. A ação cristã distingue-se da eficiência humana (cf. Lc 12,41-44). Na perspectiva das necessidades humanas que estamos examinando, ao invés de ser uma expressão do sujeito que o pratica com a renúncia de si mesmo e, assim, anuncia o Reino dos Céus, o ato de caridade tem a sua expressão no receptor que, tendo suas necessidades mortais satisfeitas, torna-se, para o homem fechado no imanente, sinal de esperança de um mundo futuro no qual todas as necessidades mortais serão satisfeitas, mundo esse identificado erroneamente com o Reino de Deus, que passa a ser “deste mundo” (cf. Jo 18,36).
b) a caridade como serviço de um ou mais sujeitos a um ou mais receptores será identificada com um paliativo, uma ação localizada e pequena, incapaz de realizar uma grande transformação que nos aproxime do ideal do mundo em que todas as necessidades serão satisfeitas. Almejar-se-á, por isso, a uma mudança das estruturas do mundo e, portanto, a uma crescente valorização do poder político – que Jesus Cristo rejeitou – como meio “cristão” de apostolado, ou de “construir o Reino de Deus”, concebido como uma realidade humana, fruto de um esforço humano, o que é evidente heresia.
Mas não só o marxismo, com a sua crítica à religião transcendente, conduz a Igreja a caminhos que não são os de Jesus Cristo. Também o capitalismo e o liberalismo, com suas grandes conquistas na área do bem-estar e sua dinâmica interna que gera “ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres” conduz a Igreja no mesmo sentido. Os avanços dos meios de bem-estar se tornam sempre novas necessidades – coisas que antes nem existiam passam a ser indispensáveis – fazendo daqueles que não as desfrutam “pobres cada vez mais pobres”. Isso induz também a uma idealização de um suposto mundo igualitário a ser ‘construído’ como sinal indispensável do Reino de Deus. E a Igreja sente-se omissa, no mesmo complexo de inferioridade já mencionado, se esse suposto mundo igualitário não se torna meta de sua missão.
Vai, então, a Igreja por um caminho que Jesus Cristo rejeitou, o caminho em que a Igreja (ou Jesus Cristo mesmo!) tem que “servir para alguma coisa”, tem que ter uma relevância histórica. É uma grande tentação, já multissecular, do Ocidente cristão.
A Igreja não deve deixar-se julgar pelo mundo (cf. 1Cor 4,3), não precisa ‘servir’ para nada, segundo o julgamento do mundo. Assim como a dignidade de uma pessoa humana não depende de ela ‘servir’ para algo, mas de sua própria natureza, a importância da Igreja vem do Alto e não da consideração dos homens, ainda mais condicionados pela miséria do seu imanentismo.
(Pode-se aqui referir o encontro de Dom Bosco com o ministro Urbano Ratazzi, que o convida a fundar uma congregação – a Prefeitura de Lourdes, segundo a película ‘A Canção de Bernadete’ – a purificação do Templo, por Jesus).
Qual é, então, a missão da Igreja?
Jesus não mudou, nem mandou mudar, as estruturas da sociedade de seu tempo. Ao menos de forma direta, como etapa da “construção do Reino de Deus”. Mas viveu e morreu de forma irrelevante para a transformação da história, ao menos segundo os padrões da força política direta, de qualquer capacidade de exercer violência e impor a própria vontade. Assim deve ser a Igreja, seu Corpo (cf. Mc 4,26-29). Anúncio da Palavra, distribuição criteriosa dos sacramentos da graça de Deus em vista da libertação de cada pessoa do nível da necessidade mortal para o nível da imortalidade, que possibilitará a ela o dom-de-si. Esta transformação interna das pessoas segundo o Espírito e o exemplo de Jesus Cristo age como um fermento historicamente imperceptível na massa humana trazendo benefícios de diversas ordens, não só econômicos, mas culturais e espirituais, mais possibilidades de haver mais vida humana e menos destruição da espécie humana, benefícios esses que são conseguidos de modo totalmente alheio à atividade política, ou seja, sem nenhuma colaboração e até contra a oposição do poder político. “Buscai antes o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo” (cf. Mt 6,33; Lc 12,31; Cl 3,1).
Após refletir sobre esses elementos, voltemos à questão original: qual á especificidade do agir cristão?
Respondamos: é um agir não condicionado, em primeiro lugar, por nenhuma necessidade ou carência em vista da capacidade de desfrute da vida mortal, mas um agir motivado pela certeza do dom gratuito desta vida e da vida futura e que transmite, no nível desta vida mortal, a própria vida. A natureza da vida cristã não é da ordem deste mundo fechado nos limites da mortalidade, lutando sempre contra uma morte corporal que é implacável. A vida cristã não consiste em satisfazer carências ao nível da mortalidade mas de viver já neste mundo no nível divino da imortalidade (cf. Cl 3,1-3). Esse nível divino se dá pelo esvaziamento de si mesmo e pela conseqüente auto-doação da pessoa.
“Ainda que distribuísse todos os meus bens em sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, de nada valeria!” (1Cor 13,3).
“Recebestes de graça, de graça dai!” (Mt 10,8).

Exercícios:
a) mostrar que as pessoas agem pressionadas por uma necessidade;
b) mostrar os valores da amizade, do sacrifício, do amor gratuito, como os que realizam realmente a pessoa humana; a necessidade do desprendimento de si como oposta à sede de satisfação das outras necessidades;
c) de onde surgem as necessidades: do corpo mortal, alimentação, conforto, etc.; da sociedade, que impõe modelos de comportamento e hábitos; das comparações e do medo de não ser aceito por outrem; necessidades artificiais dos supérfluos da tecnologia moderna.
d) aonde leva o desejo de satisfazer as necessidades; aonde levaria a satisfação plena de todas as necessidades terrenas, se é que é possível;
e) a importância da aceitação de si mesmo;
f) a existência de Deus, a Inteligência criadora, a Causa primeira, a entropia do universo.

Em grande parte a necessidade dos homens decorre de sentirem-se dependentes dos juízos dos outros homens. Os fariseus faziam muitas ações “só para serem vistos pelos homens” (cf. Mt 6,1.5;23,5). É uma necessidade de ser valorizado pelos outros. O dinheiro e o ouro só tem poder porque há quem os valorize. Assim, todo poder humano é uma estrutura de troca de apoios segundo um esquema e quem está no topo, no fundo depende de quem o apóia. Qual é a única instância que tem valor em si mesmo, mesmo que ninguém valorize? Que não depende de nenhuma estrutura de significado criada pela mente humana? A Verdade.

2. A PRIMAZIA DO SUJEITO DA AÇÃO EM RELAÇÃO AO RECEPTOR
Na fé cristã deve-se sempre pensar segundo a ordem seguinte: Tudo é para cada pessoa humana considerada e a pessoa humana é para Deus. Destarte, na ação moral o agente é mais importante, sempre, que o receptor da ação. Isto porque o que Deus quis, ao criar o mundo e o ser humano nele à sua imagem foi apenas fazer com que criaturas racionais, criadas à sua imagem, participassem da sua vida divina, no seio da Santíssima Trindade. Assim, o agente, ao agir segundo a razão e a verdade está exercendo uma capacidade divina, está doando-se na ação moral e, assim, o plano de Deus está se realizando nele, ele está “recebendo de graça e dando de graça”, a vida da Trindade está acontecendo nele. Quanto ao receptor, por melhor que seja a ação do agente, este só pode transmitir elementos de vida mortal, não pode criar no outro a vida imortal. Sua doação é uma graça que o receptor só pode divinizar se, por sua vez ele agir, na medida de seus dons, transmitindo graciosamente o que recebeu. Então a importância da doação só atinge seu ápice quando o receptor se torna agente. Até o próprio Deus, ao derramar a Sua graça sobre o homem, se o homem receptor não a acolhe transmitindo por sua vez a graça, torna infrutífera a graça de Deus. Então o que se faz segundo o Espírito de Deus, a ação moral realmente cristã beneficia sempre mais o agente do que o receptor da ação. Por isso, nas comunidades religiosas é comum encontrar em suas regras que o seu fim primário é a santificação de seus membros e só secundariamente a ação caritativa da comunidade segundo seu carisma.
Em vista de que Deus age? Sempre em vista de criar seres capazes de participar de Sua Vida divina e conduzi-los a essa Vida.
Deus ”o Vivente” e é “o que É” (cf. Ex 3,14). Na sua Unidade é “o que É” – tem em Si mesmo toda a sua consistência metafísica – e na sua Trindade Vive, isto é, é relacionamento de Pessoas que não tem em Si mesmas a sua consistência metafísica, mas sim na relação de dom-de-si – Amor – com as outras.
Deus criou seres à Sua Imagem e Semelhança: os seres humanos e os anjos. À semelhança do Deus Uno tem em si mesmos a sua consistência metafísica, isto é, são. À semelhança das Pessoas divinas são pessoas, isto é, tem em sua natureza a vocação de comunicar-se e entrar em comunhão com outras pessoas. Os outros seres vivos que Deus criou, as plantas e os animais, tem também o ser e se relacionam, vivem por uma relação de vida com o meio ambiente que as alimenta e faz delas também alimento para outros seres. Mas não são pessoas porque não participam conscientemente desse processo, não o vivem segundo a liberdade, e, mesmo realizando todo o desígnio divino a seu respeito, não amam. O ser humano é pessoa porque é capaz de livre relacionamento de vida. A vocação do homem é tornar-se divino na relação unificante com a 2.ª Pessoa Divina. Essa relação unificante se dá pela livre doação das Pessoas Divinas. O Pai Se dá ao Homem dando o Seu Filho, e assim amando o homem. O Filho Se dá, encarnando-Se e entrando na unidade da carne humana (cf. Gn 2,24). Ao não proteger sua vida mortal, mas dá-la completamente no serviço aos outros homens e na Sua Paixão, o Filho vive em relação aos homens a mesma relação de dom-de-si absoluto que caracteriza as Pessoas Divinas, ou seja, derrama sobre a carne humana o Espírito Santo, a 3. ª Pessoa da Trindade. Cada Pessoa, acolhendo esse Espírito, dado por graça, torna-se capaz de superar o movimento de auto-preservação da carne humana e de viver o dom-de-si, o Amor, divino. O Filho estabelece assim entre Ele e os homens a mesma relação unificante que existe entre o Pai e Ele próprio, a unidade do Espírito Santo. Isso constituirá a Igreja, o Corpo do Filho, reunindo na unidade os homens que O acolheram.
Deus criou o homem com um ser próprio, distinto do de Deus, para ele poder aderir a Deus livremente, não por uma natureza já divina, como as Pessoas Divinas, o Filho, gerado eternamente do Pai e o Espírito Santo que procede do Pai e do Filho. O homem não é divino porque a sua substância não é a substância única do Deus Uno. É outro ser. Mas é pessoa, para entrar livremente no relacionamento divino. Para entrar no relacionamento divino devem esvaziar-se de si (cf. Fl 2,7) aniquilando o seu ser e afirmando a sua personalidade, a sua relacionalidade, para unificarem o seu ser como o Ser Único de Deus e participarem da comunhão divina, pela participação-comunhão na Pessoa do Filho. Este é o culto em espírito e verdade (cf. Jo 4,20-24; Rm 12,1): aniquilar seu ser mortal para entrar na comunhão do Ser Único de Deus, na comunhão da vida do Pai, pelo Filho, na unidade do Espírito Santo.
Esta foi a missão de Jesus Cristo, que assumiu a nossa natureza mortal para redimir-nos. Aniquilou-Se, fez-Se oferenda para o Pai, na sua humanidade, no Seu Corpo, divinizando-O. Quem com Ele se aniquila torna-se membro do seu Corpo, participa da Sua relação divina com o Pai no Espírito Santo, isto é, se torna santo. A Igreja é o Corpo de Cristo. Por isso, a Igreja é chamada a aniquilar-se também e desse modo divinizar-se. É desse nível a missão da Igreja.
Os homens, criados no ser, para viver plena e eternamente, mas mortais, lutam contra a morte corporal, o que os retém na vida mortal que quereriam eterna; por isso resistem a aniquilar-se na relação de amor-dom-de-si. Querem buscar a afirmação do seu ser na conservação de sua vida mortal e isto os coloca como carentes de uma série de necessidades sentidas: justiça humana, vitória sobre as doenças e a fome etc. que são buscadas como suportes, em si mesmas da vida humana. No nível das necessidades o acento é colocado no efeito da ação e no receptor da ação e não no agente. A pergunta é: para que serve?
A intenção de Deus visa sempre a santificação do agente, isto é, por meio de seus atos a pessoa se aniquila, se oferece, se une a Deus.
A tentação da Igreja é, portanto, querer servir aos objetivos imanentes dos homens, que não são os fins transcendentes de Deus. É querer ser historicamente relevante, na história que os homens escrevem, não percebendo a história de Deus. É colocar o acento no efeito imanente das ações humanas, construir o que é mortal e será destruído pela morte, e não na santificação do agente livre, que permanece para sempre. Assim fazendo a Igreja trai a sua missão; Jesus Cristo só fez a vontade do Pai, e não a do mundo. Afirmou claramente não pertencer a este mundo (cf. Jo 8,23; 17,14.16) e que o seu Reino também não é deste mundo (cf. Jo 18,36).

O mundo criado em função das necessidades da vida mortal é um mundo “virtual”, montado sobre valores criados pelo homem. O dinheiro e o ouro só tem valor porque há quem os valorize. Os títulos de nobreza, de profissão etc. também. Os homens criam uma hierarquia de títulos e poder conforme a capacidade que cada pessoa adquire de satisfazer necessidades suas ou de outrem, segundo o saber, a posse etc., numa palavra, segundo o poder humano que lhe é reconhecido. Esses valores acabam inoculados na pessoa e esta confunde o seu ser com valorações que possui na sociedade, alienando-se da verdade sobre si mesma. Nós somos o que somos diante de Deus, que vê a verdade e é a Verdade. Não somos o que os homens nos consideram presos aos condicionamentos da sua condição mortal e sua sede de satisfazer suas necessidades ‘virtuais’. Por isso Jesus, nos Evangelhos, aconselha a não fazermos as obras “diante dos homens, só para ser vistos por eles”. Há até sacerdotes que prezam muito seus títulos de ‘doutor’… Todo esse mundo dos valores segundo os homens não tem consistência. Jesus Cristo nos diz: “Os chefes das nações as tiranizam. Entre vós não deverá ser assim. Entre vós, o que quiser ser grande seja o servo de todos”. Ou seja, todo o poder e capacidade de uma pessoa deve ser atribuído a Deus como graça recebida para ser transmitida servindo ao próximo, e nunca para a própria segurança e importância (necessidade inata de sentir-se forte e valorizado pelo próximo). A verdade de uma pessoa humana é o seu ‘nada’. Nesse ‘nada’ as obras de Deus são atribuídas a Deus, tudo é graça pura d’Ele, as obras, as ações, são d’Ele e a pessoa humana, na sua liberdade, se faz instrumento dessa ação divina de transmitir sua Vida distribuindo graças. Maria santíssima realiza isso perfeitamente. Nela o Senhor fez maravilhas, porque viu o ‘nada’ de sua serva. Por isso ela é a “cheia de graça”.
O mundo virtual da necessidade é onipresente em nossa mente e em torno a nós. Por exemplo, as comunidades religiosas são muito procuradas por pessoas carentes de afeto, de carinho, inseguras. Muitas vezes, para se inserirem, e por sentimentos de caridade natural, tais pessoas mostram muita disposição para o trabalho, o serviço, e por serem assim dedicadas tais pessoas são tidas por exemplares e santas. Na realidade, porém, o que determina muitas dessas pessoas é sempre a sua carência, a sua dependência de afeto e da aceitação humana, que ‘compram’ com o seu serviço. Os que as julgam santas também são condicionados pelas necessidades que os serviços dessas pessoas satisfazem e o alívio que sentem por se verem servidos. Observa-se a pouca independência e carência dessas pessoas e a fragilidade de sua relação com Deus ao se verificar como sofrem não se conformando com perdas, doenças, dores em geral, ingratidão em relação a esses serviços prestados; por isso, às vezes, são consideradas ‘sensíveis’. Na verdade ainda não superaram o nível das necessidades dos mortais para se abrir ao Espírito Santo imortal, que faz superar quaisquer necessidades pela renúncia absoluta a si mesmos. Ainda não são santas, por mais generosas, prestativas e sensíveis que pareçam.
A missão dos sacerdotes é contribuir para que as pessoas vivam a vida na graça de Deus, como a descrevemos acima. Mas também os sacerdotes estão no nível das necessidades e podem cair na tentação de, ao invés de libertar as pessoas para viver a liberdade evangélica da renúncia e superação do nível das necessidades, criarem máquinas eficientes de pessoas que servem e satisfazem necessidades de outras pessoas também buscando, como mostramos, satisfazer as suas, mas que não chegam nunca a realmente superar suas necessidades e viver livres, segundo a Verdade (cf. Jo 8,32). E essa carência e fraqueza é entendida como sendo ‘humana’ e chega-se a não entender a verdadeira liberdade e esvaziamento de si e achar que é utopia e impossível. Ou seja, os homens, buscando satisfazer suas necessidades criam um mundo ‘virtual’ e acusam a verdade de ser utópica, impossível e não existir. Para eles só existe o que é a fantasia humana. A verdadeira missão da Igreja e do padre é considerada impossível, utópica, inútil. As necessidades são tantas e as cobranças levam muitos a pensar que então a Igreja e os padres devem ser ‘úteis’, devem servir segundo as necessidades humanas e cai-se na tentação de passar a criar também o mundo ‘virtual’ das necessidades humanas. O clero passa então a valorizar mais a atividade política ou profissional do que o sacerdócio e perde sua identidade. Alguns abandonam o sacerdócio, outros continuam oficialmente no ministério mas não sabem mais o que é ser sacerdote católico.
Muitos carismas na Igreja passam da liberdade à necessidade. Ao surgir um carisma, pessoas se libertam, aparecem bons frutos, vem o desejo de continuar o carisma para colher frutos continuamente. Isto leva a estabelecer instituições, como uma ordem religiosa, um instituto ou algo assim. A instituição entra no mundo da necessidade, adquirindo, por exemplo, ao longo do tempo um patrimônio, o que faz aparecer sempre mais necessidades. Perde-se a liberdade inicial e a instituição tende a viver para satisfazer as suas necessidades. Surge o clamor de ‘voltar às origens’. Essa ‘volta às origens’ não significa só ‘atualizar’ o fundador, fazer uma re-leitura do fundador no novo contexto histórico em que se encontra, mas exige uma conversão, uma nova passagem da necessidade à liberdade, o que pode implicar a liquidação do patrimônio da instituição em vista da absoluta liberdade do início do carisma. Por que não?

O diálogo de Jesus Cristo com a mulher samaritana junto ao Poço de Jacó, em Sicar, na Samaria, é particularmente esclarecedor do conflito entre o mundo da verdade e da liberdade e o mundo da necessidade (cf. Jo 4,5-38). A cena se desenrola no mundo da necessidade. Os discípulos de Jesus tinham ido comprar alimentos – denunciando uma das necessidades mais básicas, a necessidade paradigmática que, dominando o homem o afasta dos caminhos de Deus. A primeira fala de Jesus adulto no Evangelho é justamente “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4,4; Lc 4,4; Dt 8,3). Jesus está com sede e pede de beber, revelando em sua humanidade o condicionamento humano pela necessidade. Diante da resposta da mulher, fruto das concorrências entre judeus e samaritanos e das dominações do homem sobre a mulher, tudo isso resultado dos condicionamentos que a necessidade deixou na civilização humana, Jesus fala de uma água viva que elimina para sempre a sede, isto é, fala não da satisfação constante da necessidade, perseguida pela ciência humana, mas da superação do nível da necessidade. E diz ainda (v. 14) que quem passa da necessidade para a liberdade torna-se fonte dessa mesma transformação para outros: “a água que eu lhe der virá a ser nele fonte de água, que jorrará até a vida eterna”. Isto traz como conseqüências:
a) a pessoa libertada do nível da necessidade é capaz de satisfazer a necessidade de outros com mais facilidade;
b) a pessoa libertada ainda é capaz de libertar outros do nível da necessidade, o que significa que a pessoa que faz apostolado, que é enviada a libertar os outros da escravidão da carne, do nível da necessidade, deve ela mesma estar libertada sob pena do seu apostolado ser só aparente;
c) a liberdade que alguém goza por receber a ‘água viva’ que Jesus lhe deu já é antecipação da vida eterna, e vai crescendo na pessoa, impelindo-a num impulso crescente em direção à comunhão divina e a vida eterna.
A samaritana, sem entender o sentido simbólico da água viva, pede então da água viva para libertar-se do peso da necessidade (v.15). Jesus volta ao tema da necessidade, que é fruto do pecado original (cf. Gn 3,16b) que faz a mulher carente e dominada pelo marido. A mulher é conduzida por Jesus em direção ao mundo da verdade e da liberdade pelo reconhecimento e aceitação da miséria de sua condição. Confessa seus cinco maridos e seu concubinato. Jesus confirma que é verdade que ela não tem marido (v.17). Aquilo que satisfaz nossa necessidade não entra em comunhão conosco. A mulher não tem marido. “Ter marido” é ter uma relação de amor gratuito, livre e verdadeiro, que leva à comunhão de vida (cf. Gn 2, 22-24). A mulher, representando a humanidade inteira, não tem marido, não vive a comunhão divina, porque sua relação é no nível das necessidades mortais, que é voltada para o ‘eu’ e impede o verdadeiro amor-dom-de-si livre. É preciso “falar a verdade” e a primeira verdade é reconhecer que no nível das necessidades mortais não amamos, dele não saímos se não formos socorridos pela graça do que dá a ‘água viva’, que devemos pedir essa libertação a Quem pode nos libertar, nos dar a ‘agua viva’, o Espírito Santo, o novo nascimento do Alto (cf. Jo 3, 3-6).
O relato passa então a considerar a construção humana e a construção divina no âmbito da relação humana com Deus. A samaritana pergunta se é no Monte da Samaria (Garizim) ou no Templo de Jerusalém, no Monte Sião, que se deve adorar Deus. Ambos são santuários construídos pela mão do homem nos quais se oferece sacrifícios, obras humanas que imploram a Deus atender às necessidades mortais dos homens. Jesus rejeita as duas alternativas (v.22) como adoração verdadeira a Deus e proclama uma nova: “Vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,23-24). Em Espírito: segundo o Espírito, que liberta o homem da carne, da escravidão das necessidades da vida mortal; em verdade: segundo a ação criadora de Deus que é verdadeira e não segundo o mundo ‘virtual’ que os homens constroem sob escravidão de suas necessidades. Este culto é o mesmo que São Paulo explica em Rm 12,1. Não sendo mais escravo, pelo novo nascimento no Espírito Santo, da necessidade do corpo que luta contra a morte, o corpo é oferecido no serviço ao próximo e o cansaço, a dor e a morte ‘voluntária’ de um é fonte de vida para o outro, realizando a nível dos corpos mortais o mistério de amor-dom-de-si que rege entre as Pessoas Divinas e as unifica numa só Vida.
Os discípulos de Jesus voltam e querem que Jesus coma, ou seja, satisfaça suas necessidades humanas. Jesus fala de um outro alimento que lhe dá Vida, que é seu Pai Celestial. A resposta de amor ao Pai na obediência à sua missão ‘alimenta’ Jesus (v.34). Jesus tem fome dos homens (v.35-38) que quer resgatar para a vida divina, comparados com os trigais que fornecem o alimento da necessidade mortal de que os homens tem fome. Jesus tem sede (cf. Jo 19,28) de homens também. Ele se vai fazer alimento e bebida, dando seu Corpo e seu Sangue (cf. Jo 6), realizando assim o culto em espírito e verdade, o dom-de-si, para que os que “recebem de graça, dêem também, de graça” (cf. Mt 10,8) e vivam a Vida Divina. “Um é o que semeia, outro é o que colhe” (cf. Jo 4,37-38): os discípulos, oferecendo seus corpos na obra divina, formam uma unidade, como se fossem um só agricultor, embora sejam pessoas diversas).
3. O CRISTIANISMO E AS VIRTUDES HUMANAS
A Vida Moral Cristã não é construída simplesmente numa aquisição de virtudes morais.
O Cristianismo sempre incentivou os que ouviram sua mensagem à aquisição das virtudes morais.
Podemos dizer que a virtude é a capacidade que uma pessoa possui de assumir comportamentos convenientes à consecução de determinado fim. Quando o fim é a coerência interior da pessoa ou a harmonia social a virtude é considerada virtude moral. Por exemplo, a honestidade, a veracidade, a generosidade. Quando o fim é a comunhão com Deus em Si mesmo pela graça, temos as virtudes infusas ou teologais: a Fé, a Esperança e a Caridade. Quando o fim é a perfeição profissional temos as virtudes profissionais: a competência, a laboriosidade, a pontualidade, a assiduidade etc. As virtudes teologais têm uma natureza diversa das virtudes humanas. São geradas no homem a partir da autocomunicação de Deus ao homem e não de um esforço de desenvolvimento da pessoa. Por isso podemos dizer, mesmo se o cristianismo, como dissemos, usou sempre um discurso de virtudes, que a vida cristã em si mesma não se desenvolve como uma aquisição progressiva de virtudes, mas como uma iluminação que a Revelação Divina provoca, fazendo a pessoa reconsiderar a sua pessoa, o mundo, o seu destino, a partir de Deus e aí passa a viver segundo essa que é a realidade verdadeira que conheceu pela Revelação e acolheu pela fé, pela esperança e pela caridade. O caminho da aquisição progressiva das virtudes provém das filosofias grega, oriental etc. e não do cristianismo mesmo. Este absorveu esse caminho, não sem prejuízo de sua compreensão, de sua pureza e natureza original.
Essa assimilação da vida moral brotada da filosofia fez com que o cristianismo aparecesse, para a grande maioria das pessoas como um difícil aperfeiçoamento moral e não como uma iluminação sobre a Verdade, deformando o próprio conceito de fé, que se afastou do acolhimento e conhecimento da Verdade revelada, para se confundir com uma certa confiança em Deus, confundindo-se com o conceito de esperança. Isto também está na origem da atual separação entre fé (sentimentos religiosos) e vida (comportamento moral) e na pouca valorização do conhecimento religioso, concebido secularmente como algo necessário somente para pessoas especiais, ministros ordenados etc. Para que conhecer detalhes sobre a Revelação se a pessoa pode sentir confiança (confundida com a fé) em Deus, mesmo sem conhecê-lo em detalhes? A ignorância religiosa abre espaço também para o sincretismo religioso, pelo uso da linguagem e dos símbolos cristãos para um culto que, em sua lógica interna, é fundamentalmente pagão. (Explicar que o homem decaído pelo pecado original não é nem conhecedor do deus verdadeiro, nem ateu, mas pagão).
Por que o discurso sobre as virtudes cresceu tanto no ensino da fé cristã?
Mesmo que a vida cristã seja, em sua natureza própria, a vida segundo a Verdade revelada, e a visão da Verdade mude o homem, o cristão é um homem encarnado, inserido em seu contexto vital, sua cultura, e sofre diversos condicionamentos que lhe vem desse ambiente onde vive. Certamente foi pela denúncia contra os ambientes moralmente corrompidos que influenciavam os fiéis e a necessidade de fortalecê-los nos bons costumes, unida à natural dificuldade dos convertidos de viver a partir somente do Espírito, que levou a Igreja a acentuar o caminho da aquisição das virtudes morais.
A atual crise moral que abrange as sociedades no mundo inteiro tem sua razão de ser no condicionamento que o ambiente exerce sobre cada pessoa. Mas esse condicionamento tem raízes em transformações profundas que, mudando a civilização, afetaram profundamente a alma humana.
Uma dessas transformações foi o extraordinário progresso tecnológico com o uso de novas energias e a descoberta da origem das doenças com a conseqüente cura, que caracterizou as idades moderna e contemporânea. O ser humano, que era refém da natureza, sentiu-se poderoso sobre ela. A impotência diante da natureza, levava as pessoas a uma busca de recurso no mundo sobrenatural. A descoberta das curas e o domínio de novas energias (vapor, elétrica, combustíveis fósseis) fez diminuir muito o impulso à busca de salvação sobrenatural e aumentou o sentimento de auto-suficiência, ou seja, o orgulho do homem. Enfraquecendo o impulso sobrenatural, atrofiou também o temor de Deus, que era uma das colunas mestras que sustentava o exercício da virtude. O impacto do progresso do domínio sobre a natureza foi tal que as filosofias atéias, que em Demócrito jamais haviam conseguido ser populares, começaram a encontrar acolhimento no meio popular em muitos países, junto com um cientificismo ingênuo.
Outra grande transformação foi a implantação dos meios de comunicação social eletrônicos, o desenvolvimento da imprensa e o surgimento da cultura de massas, provinda, não da alma popular, mas das minorias materialistas e atéias, mas poderosas financeiramente, que controlam esses meios. Criou-se uma cultura sem Deus e foi se perdendo de vista, paulatinamente, as razões que sustentavam o comportamento virtuoso, que, animando a razão humana, levavam o espírito humano a controlar e dominar os impulsos da carne. Os valores morais passaram a ser considerados ‘tabus’ a serem derrubados e foi implantada uma cultura de satisfação dos instintos da carne, na qual a razão tem pouco espaço. Os lemas dessa ‘revolução’ eram, por exemplo, “É proibido proibir”, “Não se reprima” etc.; essa cultura enfraqueceu a vontade das pessoas, tornando-as incapazes de se controlarem a si mesmas, descendo a níveis sub-animalescos de que é sinal a enorme quantidade de dependentes de drogas, com um exorbitante índice de consumo e violência pública em todos os lugares. O homem, orgulhoso de ser senhor da natureza percebeu que não era senhor nem de si mesmo e se tornou incapaz de conviver socialmente em harmonia. Tornou-se um homem sem virtude.
Concomitantemente com essa evolução dos fatos, a cultura tornou-se também performática. O importante passou a ser superar metas, alcançar maiores índices, seja no caso de um atleta que busca estabelecer novo recorde, seja no caso de uma empresa que quer conquistar uma fatia sempre maior do mercado. Esta busca de objetivos e auto-superação leva a pessoa a desenvolver em si determinadas virtudes, submeter-se a uma verdadeira ascese, em vista de aumentar sua capacidade de alcançar tais ‘performances’. Isto mostra que a busca de virtudes não é algo do passado, mas é muito exigida pelo mundo moderno, haja vista, por exemplo, o rigor das exigências que se faz na seleção de candidatos para um emprego. E quanto mais excelente o emprego, maiores virtudes se exige. A busca da excelência e da produtividade nas empresas fez desenvolver ciências como a psicologia do trabalho, as relações humanas no trabalho e fez’ redescobrir, através dessas ciências, que a pessoa humana que trabalha mais e melhor a médio e longo prazos é a que for mais equilibrada emocionalmente, afetivamente etc. Isso levou a redescobrir, embora com objetivos materialistas e não de perfeição humana, muito menos pela glória de Deus Criador, o caráter espiritual da pessoa humana e da verdadeira liderança e ação humanas. Levou a redescobrir que toda pessoa tem uma contribuição a dar – tem dons a partilhar – se se descobre o lugar e a função correta para cada pessoa. Por causa destas descobertas se faz uma releitura das fontes cristãs e, repetimos, embora com objetivos imanentes, não deixam de manifestar a riqueza humana do caminho cristão. Por exemplo, títulos de livros bem vendidos como ‘Jesus, o maior líder que já existiu’, ‘Jesus, o maior psicólogo que já existiu’, ‘O Monge e o Executivo’, procuram em Jesus e na Regra de São Bento uma perfeição humana que possibilitará alcançar as melhores performances hoje. Mesmo para o sucesso terreno é necessária a virtude humana. O vicioso, o não-virtuoso, não está preparado para realizar-se nem neste mundo nem no próximo.
Esta constatação leva-nos, porém, a perceber que toda a grandeza da capacidade humana pode ser canalizada para alcançar metas bem abaixo das verdadeiras metas que, só elas, podem realizar plenamente o homem. “De que vale ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a si mesmo?” (Lc 9,25), diz o Senhor.
Dissemos, no início desta reflexão, que a idéia de virtude moral, em si mesma, não é de origem cristã. Pode haver mesmo um discurso moral cristão que a dispense, como os próprios quatro Evangelhos canônicos. Ao final, constatamos que não falta ao homem moderno o apelo à virtude. Há bastante até. O que falta é aquilo que é específico do cristianismo: a primazia da destinação divina da pessoa humana, a sabedoria divina, a afirmação, pela pessoa humana, da Presença e do Reino de Deus. Sem isso, mesmo a virtude moral humana se torna ambígua e hipócrita. Um verdadeiro malandro e vigarista só o é, com sucesso, se reunir em si uma série de virtudes humanas muito apreciadas como a tranqüilidade diante da adversidade, a capacidade de comunicação e persuasão, certa prudência e auto-contrôle, e assim por diante. O que caracteriza o cristão não é exatamente já possuir a perfeição da virtude moral humana, mas a sua meta, que é Deus. O verdadeiro perfil moral da pessoa humana não é tanto a sua perfeição moral humana, mas o rumo que dá à sua vida, o Deus verdadeiro, ou outro deus a que serve.